CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIM: À OPINIÃO PÚBLICA

À OPINIÃO PÚBLICA
5 DE MARÇO DE 1867.
 
Dizem alguns que V. Excia. não existe; outros afirmam o contrário. Mas estes são em maior número, e a força do número, que é a suprema razão moderna, resolve as dúvidas que eu porventura possa ter. Creio que V. Excia. existe, em que pese aos mofinos caluniadores de V. Excia. Se não existisse, como se falaria tanto em seu nome, na tri­buna, na imprensa, nos meetings, na praça do comércio, na rua do Ouvidor? Das criações fabulosas não se fala com tanta insistência e generalidade, salvo se houvesse uma conspi­ração para asseverar aquilo que não é, e isto repugna-me acreditar.
 
Também por muito tempo se duvidou da existência de Mr. Hume, aquele célebre mágico que transformava os ovos em carvão, mas, se bem me lembro, apareceu um dia o dito mágico, e daí em diante ninguém mais duvidou dele. O mesmo há de acontecer com o judeu errante, de quem falam todos, e que eu creio que existe, sem ser a cholera-morbos, e que há de aparecer mais dia menos dia, tenho essa esperança.
 
É a maioria da gente que tem razão, e quando falo em maioria suponho ter pro­duzido um desses argumentos invulneráveis, até mesmo no calcanhar, apesar de quanto possa ter dito o visconde de Albuquerque.
 
Assentado isto, receba V. Excia. esta carta que é a primeira da série com que eu preten­do estrear na imprensa.
 
É costume entre a gente trocar os bi­lhetes de visita a primeira vez que se encon­tra. Na Europa, ao menos, é tão necessário trazer um maço de bilhetes, como trazer um lenço. V. Excia. terá desejo de saber quem sou. Di-lo-ei em poucas palavras.
 
Se a velhice quer dizer cabelos brancos, se a mocidade quer dizer ilusões fracas, não sou moço nem velho. Realizo literalmente a expressão francesa: Un homme entre deux âges. Estou tão longe da infância como da decrepitude; não anseio pelo futuro, mas também não choro pelo passado. Nisto sou exceção dos outros homens que, de ordiná­rio, diz um romancista, passam a primeira metade da vida a desejar a segunda, e a se­gunda a ter saudades da primeira.
 
Não sou alto nem baixo; estou entre Thiers e Dumas, entre o finado marquês de Abrantes e o visconde de Camaragibe. Cito os dois para dar cor local à compa­ração, e ficar logo às boas com a crítica literária. Além disso, há um ponto de contato entre o orador francês e o orador brasileiro; ambos obtiveram um apelido quase idênti­co pela semelhança da eloqüência parlamen­tar. Onde não há nenhum ponto de contato é entre os outros dois: nem o Sr. Camaragibe faz romances, nem Alexandre Dumas faz política, e creio que ambos se dão bem com esta abstenção.
 
Não sou votante nem eleitor, o que me priva da visita de algumas pessoas de consideração em certos dias, gozando, aliás, da es­tima deles no resto do ano, o que me é so­bremaneira agradável. Ao mesmo tempo poupo-me às lutas da igreja e às corrupções da sacristia.
 
Não privo com as musas, mas gosto delas. Leio por instruir-me; às vezes por consolar-me. Creio nos livros e adoro-os. Ao domingo leio as Santas Escrituras; os outros dias são divididos por meia dúzia de poe­tas e prosadores da minha predileção; con­sagro a sexta-feira à Constituição do Brasil e o sábado aos manuscritos que me dão para ler. Quer tudo isto dizer que à sexta-feira admiro os nossos maiores, e ao sábado durmo a sono solto. No tempo das câmaras leio com freqüência o padre Vieira e o padre Bernardes, dois grandes mestres.
 
Quanto às minhas opiniões públicas, te­nho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a republica de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobre­tudo como brasileiro que me agrada esta úl­tima opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocra­cia que o sol jamais iluminou..
 
Não freqüento o paço, mas gosto do im­perador. Tem as duas qualidades essenciais ao chefe de uma nação: é esclarecido e ho­nesto. Ama o seu país e acha que ele me­rece todos os sacrifícios.
 
Aqui estão os principais traços da minha pessoa. Não direi a V. Excia. se tomo sorvetes nem se fumo charutos de Havana; são ridiculezas que não devem entrar no espírito da opinião pública.
 
Agora que me conhece, perguntará V. Excia. por que motivo esta primeira carta é dirigida à sua pessoa, e que lhe quero dizer com esta dedicatória. Nada mais simples. Entrando numa sala, cumprimenta-se logo a dona de casa; entrando na imprensa, dirijo-me a V. Excia. que é a dona dela, segundo dizem as gazetas, e eu creio no que as gazetas dizem.
 
Consinta V. Excia. que eu não lhe faça cor­te. De todas as pessoas deste mundo é V. Excia. a mais cortejada desde que um italiano escreveu estas celebres palavras: — de l'opi­nione, regina del mondo, talvez para contra­balançar o título que as ladainhas da Igreja dão à Virgem Maria, regina angelorum. Não será V. Excia. igual à Virgem Maria, mas creio poder compará-la a Santa Bárbara, e real­mente é uma Santa Bárbara, que a maior parte da gente invoca na hora do temporal e esquece na hora da bonança. Eu serei o mesmo em todas as fases do tempo, e se vier a cortejá-la algum dia, será em silêncio, silentium loquens, como dizia S. Jerônimo, outro advogado contra as borrascas.
 
Terá V. Excia. a indiscrição de pedir-me um programa? Acho que este uso parla­mentar não pode ter aceitação nos domínios da musa epistolar, que é toda incerta, capri­chosa, fugitiva. Demais, sei eu acaso o que há de acontecer amanhã? Posso criar uma norma aos acontecimentos? Deixe que os dias passem, e o sucessor com ele, os sucessos imprevistos, as coisas inesperadas, e a respeito de todos direi francamente a minha opinião.
 
Ou, se quiser absolutamente um programa, dir-lhe-ei que prometo escrever com pena e tinta todas as minhas cartas, imitando deste modo o programa daquele ministério que consistia em executar as leis e economizar os dinheiros públicos. Profun­da política que toda a gente compreendeu de um lance. Perdoe-me V. Excia., creio que V. Excia. apoiou esse ministério; ao menos assim dizem os amigos dele; e creio que também lhe fez oposição; ao menos, diziam-no os parlamentares oposicionistas. Coisas de V. Excia.
 
É nisto que ninguém pode vencê-la. O dom de ubiqüidade é V. Excia. quem o tem de uma maneira prodigiosa. Agora, por exem­plo, não anda V. Excia. de um lado trajando se­das e agitando guizos, alegre e descuidada, pulando uma valsa de Strauss, dando a mão à tísica dos pulmões e à tísica das algibeiras, e de outro lado envergando uma casaca pre­ta, e distribuindo pelos candidatos políticos a palma eleitoral? Ajuizada e louca, grave e risonha, entre uma urna e um cálice de cham­panhe, na esquerda o tirso da bacante, na direita o estilo do escritor, olhar de Cícero, calva de Anacreonte, eis aí V. Excia., a quem todos adoram, os velhos e os mancebos, os boêmios e os candidatos.
 
A verdade é que V. Excia. tem às vezes caprichos singulares; gosta da cor vermelha, e a pretexto de eleição, inspira não sei que maus ímpetos ao leão popular, que a tudo investe e tudo desfaz. Nessas ocasiões V. Excia. não tem cetro, como rainha que é, tem um cacete, que é um teorema infalível. Mas nem assim perde o caráter de opinião: é esse o parecer dos seus escolhidos.
 
Enfim, são ímpetos. O pior é quando, em vez de ímpetos, apenas se emprega o meio da corrupção das urnas, da sedução do vo­tante, da intervenção do fósforo, — pasmo­so invento que eu coloco entre a obra de Fulton e a obra de Gusmão, vulgo Montgolfier. Isso é que é pior. Francamente, eu creio que V. Excia. desconhece todos esses meios, e os condena, e se acaso os sofre é por honra da firma. Em todo caso, por que não protesta V. Excia.? É deste silêncio que algumas pessoas tiram a conclusão de que V. Excia. não existe.
 
É amanhã que V. Excia. tem de escolher definitivamente os deputados; começam duas quaresmas, uma religiosa, outra política. Ama­nhã os católicos e os candidatos vão receber a cinza, e todos recebem a cinza, — ainda os que não forem eleitos, — uns na testa, outros nos olhos. Alegrias e decepções, dores e flores, todas as exaltações, todos os abatimentos, todos os contrastes. Eu creio que há em todo o império uma soma de políticos capaz de formar cinco ou seis câmaras. É que não há outra classe mais numerosa no Brasil. Di­vide-se essa classe em diversas secções: políticos por vocação, políticos por interesse, políticos por desfastio, políticos por não terem nada que fazer. Imagino daqui o imenso trabalho que há de ter V. Excia. em escolher os bons e úteis dentre tantos. E esse é o meu desejo, essa é a necessidade do país. Mande-nos V. Excia. uma câmara inteligente, generosa, honesta, sinceramente dedicada aos interesses públicos, uma câmara que ponha de parte as subtilezas e os sofismas, e entre de fren­te nas magnas questões do dia, que são as grandes necessidades do futuro, de que de­pende a grandeza, ia quase dizer a existência do corpo social.
 
Mas eu que falo assim obscuro e rude, quem sou eu para dar conselhos à opinião, regina del mondo? Perdoe-me V. Excia. É natural nos homens, e eu sou homem, homo sum. Ao menos veja nisto a minha boa von­tade e o grande amor que lhe tenho.
 
Creio que esta carta vai longa; tenho-lhe roubado demasiado tempo. Vou pôr aqui o ponto final, e recolher-me ao silêncio, a fim de pensar nos diversos assuntos com que me hei de ocupar, se Deus me der vida e saúde.
 
Devia ir vê-la hoje divertindo-se e pu­lando, mas não posso. Consagro o dia de hoje a S. Francisco de Salles, apropriado à estação de penitência que começa amanhã. Preparo assim o meu espírito à meditação. Além de que, o bom do Santo é um dos me­lhores amigos que a gente pode ter: não fala mal nem dá conselhos inúteis. Se V. Excia. cuida que é um homem de carne e osso, en­gana-se; é um maço de folhas de papel metidos numa capa de couro; mas dentro do couro e do papel fulge e palpita uma bela alma.