ELMAR CARVALHO

Assim como o craque envelhecido deixa de jogar futebol, e pendura as chuteiras, resolvi, metaforicamente, pendurar a minha caneta de aprendiz de crítico literário, que tenho sido algumas vezes, ao longo de minha vida literária. Assim como a velha meretriz, que vai perdendo a clientela para as mais jovens e mais bonitas, começa a fazer os serviços de arrumadeira e criada, e fica em paz em seu canto ou quartinho, comecei a fazer os serviços mais humildes de recolher os meus textos dispersos, de coligir os esparsos, de enfeixar os avulsos, e de tentar rever os extraviados. Oportunamente, pretendo reunir em volume os meus pequenos ensaios sobre literatura e mais alguns dos prefácios e apresentações que escrevi.

 

A crítica literária sempre me foi um mister algo penoso ou que me exigia certo esforço intelectual e de pesquisa, de modo que me dava a sensação de um quase exercício físico, de disciplina espartana. Aliás, só fiz texto de crítica quando movido por alguma injunção, ou quando me senti praticamente no dever de fazê-la, em atenção ao merecimento da obra e do seu autor. Portanto, posso dizer que só as fiz quando achava que os textos analisados mereciam meu esforço. Adotei o critério de que não deveria malhar a produção de meu semelhante, mas que também não deveria fazer elogios que entendesse descabidos, exceto os verbais, que a polidez e a relação social recomendam, mas sem ênfases e superlativos.

 

Sem dúvida considero a crítica e a teoria literária da mais alta importância para o desenvolvimento da arte literária, sobretudo para a formação de bons leitores e escritores, dando-lhes maior discernimento crítico, para que saibam separar o joio do trigo, mormente numa época internética em que todos se metem a escrever e a publicar. Por isso mesmo lhes dei a minha modesta contribuição, e delas extraí lições que ainda hoje me são de grande valia. Ademais, a boa crítica, a crítica justa e imparcial, contribui para divulgar as boas obras literárias, e para deixar no seu devido lugar as obras menores. Pode provocar o salutar debate, que venha a manter viva a verdadeira literatura, arejando-a com novas ideias, recursos e possibilidades, unindo sempre a tradição e a invenção.

 

O poeta Hardi Filho, no prefácio à primeira edição de meu livro Rosa dos Ventos Gerais, UFPI, 1996, asseverou que: “Criou-se até, entre nós, a mítica dos 'opinantes de plantão' os quais, de tão assediados, seriam obrigados a ter já grafado ou de memória o que dizer de um que sirva para muitos; se o trabalho não merece, a pessoa do autor recebe elogios e fica contente”. O texto seria uma espécie de carimbo, que, mutatis mutandis, aplicar-se-ia a todos os prefaciados. Um desses prefaciadores contumazes era sempre laudatório. Contudo, a seu modo, era sincero; se o seu texto fosse lido com a devida atenção, o leitor perceberia que o elogio era apenas aparente, porquanto era dirigido ao autor ou ao tema, mas nunca à qualidade ou ao estilo do escritor ou poeta.

 

Certa feita um amigo, cujo nome jamais irei declinar, ensinou-me como eu deveria proceder para obter elogios dos medalhões da literatura nacional, e, de forma humilde e sincera, me confessou que procedia da maneira como me recomendava. Eu deveria fazer uma carta, exaltando a obra literária do destinatário, encaminhando-lhe um exemplar do livro a ser elogiado; deveria prometer-lhe que o texto encomiástico seria publicado em jornais e revistas, e sairia na próxima edição do livro, que já se avizinhava. Agradeci-lhe o conselho, mas devo confessar que nunca o segui.

 

Vejo, aqui e alhures, encarapitados nas orelhas, nas folhas de rosto, nas contracapas, os mais descomedidos panegíricos a certos livros; a gente fica até na dúvida se desaprendeu o que sabia, ou se o elogiador escalado é quem teria perdido o juízo. Todavia, se esses aplausos forem lidos com cuidado, verifica-se que eles são uma tremenda ironia ou gozação, pelo exagero dos qualificativos e retumbância das palmas, ou são apenas metáforas pomposas, que nada dizem de concretamente sobre a obra a que se referem. O fato é que ficamos com a sensação de que a “estátua é bem maior do que o modelo”.

 

Muitos anos atrás, uma poet(is)a me deu um poema para que eu o lesse em sua presença. Porém, antes de me repassar o papel com o texto, foi logo me advertindo de que se tratava de sua obra-prima; que estava muito inspirada quando a escreveu, e que ficou muito feliz com o resultado final dessa peça. Devo dizer que me senti muito pequeno para merecer tamanha deferência e consideração, e cheio de espectativa comecei a ler essa arte supostamente tão esmerada. Não sei se foi pelo excesso de espectativa que a autora me passou, ou se foi porque sempre fui um leitor muito exigente, mas o certo é que não vi nenhuma qualidade excepcional no poema; na verdade, o texto era repleto de trivialidades, lugares comuns e ejaculações discursivas balofas, sem nenhum lampejo de talento, quanto mais de genialidade.

 

Ao devolver-lhe o papel, com a cortesia de praxe, que a civilidade recomenda, para não lhe ferir o inflado ego e a delicada suscetibilidade, falei:

- Muito bem... Está bom.

Como ela notasse, pela expressão de meu semblante que eu ficara decepcionado e também pela falta de efusão em meu “elogio”, retrucou-me com ênfase, em que mal dissimulava certa irritação:

- É, pode não estar bom para os outros, mas para mim está excelente!

       

Sorri, e nada mais acrescentei. É por causa de fatos desse tipo que tomei a deliberação de me recolher a meu canto, para me dedicar apenas a produzir os meus textos, sem ilusões de glória, posto que sei, mais do que ninguém, de que o renome através da arte literária, nunca vem, ou só vem após demorado, árduo e penoso esforço. Irei, aos poucos, sem pressa e sem alarde, publicando os meus “dispersos, esparsos e reencontrados”. Finalizo com o que disse o pregador de Eclesiastes (1:2), que se aplica também e talvez principalmente a mim: “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade”.