Foto: Greg Lobinski
Foto: Greg Lobinski

[Carlos Castelo]

Os dois capatazes enxugavam bem. Mas era o dia do Miro, Euvaldo ficou eclipsado.

Tudo começara há uma semana. No sítio existia um pequeno bosque. Certo caçador de tatu, passando de madrugada pelo lugar, vira um vulto escuro, sobre duas patas, se esgueirando pelos pés de pau. Enregelado de medo e frio, se quedou por um tempo observando o estranho ser. Seria lobisomem, boitatá? Mula sem cabeça não era, pois contava com um crânio avantajado.

A notícia correu pelo Carambeí como fogo em rastilho. Euvaldo reuniu os três meninos mais velhos, armou-os de cepos e pedras. Em seguida ajeitou a velha garrucha na cinta. Na beira da mata, se posicionaram num local que permitia ver a fera se movimentar.

Durante o tempo de espreita, Euvaldo serviu café aos garotos e mamou uma garrafa de bagaceira, feita por ele mesmo na adega da propriedade. Vieram as horas mortas e os flic-flacs nas plantas. Devia ser bicho grande que lebre, nem alma-de-gato provocavam aquela rangeção em folha.

Euvaldo meneou a cabeça. Era o sinal à prole para deixar tudo nos conformes para o flagra na criatura. Na obscuridade, iluminada apenas por uma luazinha crescente, deu para perceber que o animal desenterrava algo do chão. Aproveitaram a lida da Coisa para se aproximar. Acenderam o facho da lanterna por cima da assombração. Ao apertar o botão da Ray-o-Vac, Euvaldo gritou:

– Ninguém pode mais do que Deus Nosso Sinhô!

Com voz engrolada, o espectro respondeu:

– Ah, pode mesmo, não!

Era Miro. Pego desenterrando as garrafas de branquinha que escondera durante o dia no matagal.

O mistério estava resolvido, mas não a compulsão do capataz.

Foi então que chegou o dia D. Num domingo, antes do almoço, Euvaldo tocava sua sanfona breganhada por dois jacus. A dificuldade era grande, pois tomara outro litro da bagaceira. Apesar dos pesares, tinha prazer em dedilhar os sete baixos. Uns gritos infelizmente ofuscaram as notas musicais.

– O que foi isso, Ristides? – Euvaldo perguntou ao filho.

– É o Miro, pai! Tá no silo das cebola dizendo que pula da janela pra se matá!

Interromper o ensaio de harmônica fez Euvaldo perder a harmonia. Mordido e mamado, recolocou a garrucha na cinta e saiu falando de si para si:

– Esse Miro tá pedino. É enterrano cachaça, é boitatá, agora suicídio! Ará, sô!

Ao ver o colega se achegando, Miro desabafou:

– Óia, Euvardo, num suporto mais ocê me crinticá porque tomo meus piritivo! Vou sartá daqui e é já!

O povo implorava ao vivente que não consumasse a desgraceira. No entanto, ele parecia firme na decisão. Ficou com metade do corpo projetado para fora da janelinha e, quando ia se lançar, Euvaldo gritou:

– Para aí!

Todos aguardaram o que vinha. Euvaldo mostrou a garrucha e desembuchou:

– Óia aqui, lobisome, se ocê pulá daí eu te mato antes! No meio do sarto, te prego fogo!

Miro manteve uma expressão nebulosa por uns segundos. Aí deu início a um pranto convulso e, na sequência, foi implorando:

– Non, non me mate, Euvardo! Em nome de Nosso Sinhô!

Conduziram-no à Santa Casa de Carambeí. Nunca mais foi visto, nem como gente, nem como alma penada.

____________________________________

(Publicado originalmente no Estadão)