Leia trechos das cartas entre Mário de Andrade e Pio Corrêa

 

Ubiratan Brasil, de O Estado de S . Paulo

 - Araraquara, 11 de março de 1922

 

Mário:

 

Eu já li mais de uma vez a sua carta de domingo de carnaval. Repeti a leitura para me certificar bem se ali havia algum requerimento, se V. queria alguma coisa de mim. Vi que não; a carta é puramente noticiosa, e vale por um relatório pormenorizado dos sucessos da famosa semana, e dos sentimentos que eles criaram ou alteraram na sua consciência. Esta resposta não é mais, portanto, do que um recibo. Ou, melhor dito, não devia passar além dos termos de recibo. Mas... podemos aproveitar a sobra do papel para conversa.

 

Na divisão do trabalho humano, a que obriga a eterna e universal Lei da capacidade de cada um, a mim me tocou plantar batatas e matar formigas. Em arte (já V. o sabia) sou simplesmente um by stander, um mirone, um badaud, um basbaque. De toda essa nomenclatura internacional, escolha V. a que mais me convier. Como plantador de batatas, não percebo essa coisa de se meterem batatas, digo, palavras avulsas - by standers - no meio do discurso; como matador de formigas, não me cabe na mioleira um verso sem metro, sem rima, sem leis. Considero isso tudo arte dos soviets. Também já V. o sabia. Mas continuo a plantar batatas, sem me interessar pela sorte dos soviets.

 

O pior é que nem todos continuam a plantar batatas: alguns vão ao Municipal atirar batatas! Que se lhes há de fazer? Aturá-los, e deixá-los.

 

Entrementes, aceite um abraço que Zulmira acaba de encomendar-me, e outro do

tio Pio

 

 

 

São Paulo, post, 20 de agosto de 1927

 

Tio Pio

 

Desculpe este papel semostrador. Não tenho outro no momento.

 

Recebi as duas notas sobre "acochar" e "bocório". Esta última hei de aproveitar um dia destes por Diário Nacional é só ter tempo e falta de assunto. Por enquanto ando com falta daquele e abundância deste.

Quero lhe pedir um favor. Ando metido mesmo nessa coisa de folclore e já estou com matéria abundando pra mais dum volume. Como o caso me parece sério, estou com vontade de principiar um trabalhinho que talvez dura aí pra uns cinco anos sobre o populário. Sei bem que no tempo de farrear e colher dessas coisas o sr. foi mais praceano que sertanejo, porém imagino que pode me ajudar nalguma coisa.

Escarafunche bem a memória e veja se tira dela algum provérbio, abusão, frase-feita, quadrinha, superstição que imagine não recolhida e vá mandando. Por enquanto estou no trabalho penoso de colheita e catalogação. Mas desconfio que mais uns fundos que me prometeram ontem entre uma coisa e outra já possuo pra mais de mil documentos! Não parece coisa séria mesmo?

 

Sobretudo pro momento, veja se lembra de qualquer espécie de documento folclórico referente a boi. No ano que vem publico um voluminho bem interessante sobre as "Melodias do Boi". O primeiro capítulo ou parte do livro é mostrando a obsessão que o brasileiro tem pelo boi. Nessa parte é que cito desde frases-feitas que nem o "Vá amola(r) o boi" até o ciclo dos grandes romances nordestinos sobre o Boi Espácio e outros tão conspícuos fantasmas da rítmica nacional. A segunda parte ou capítulo do livro apresenta músicas em que se fala de boi, cantos de pastoreio sulino etc. Na terceira afinal entra o "Bumba meu boi" com descrição, texto, filiação histórica, baile e música. Quero ver se me esforço pra fazer um livro bem completo. Então veja se me ajuda.

 

Com um abraço do  Mário

 

Lembrança pra Zulmira