Cambacica
Por Dílson Lages Em: 15/01/2013, às 22H18
[Dílson Lages Monteiro]
Ensina Baktin que a palavra é de natureza psíquica e ideológica, por excelência, mas também de ordem sociológica. Considerando a terceira dimensão da palavra, cabe recuperar, a esse propósito, as explicações do teórico. Para ele, “toda enunciação é determinada, ao mesmo tempo, tanto pelo contexto imediato, quanto pelo contexto social, mais amplo, não havendo, portanto, expressão verbal que não seja socialmente dirigida”. Portanto, a enunciação é o produto da interação verbal entre os indivíduos e realidade fundamental da língua. Cito Baktin para justificar aquilo que é o sentido primeiro nas entrelinhas de Cambacica (Editora Nova Aliança, 2010), de Halan Silva: a crítica social, a literatura-documento.
Apropriando-se de uma trama clássica, o amor que não se consuma, Halan Silva tematiza o conflito de classes e os dramas inerentes a ele, detendo-se em desnudar os preconceitos e fingimentos de estratos sociais favorecidos, ao mesmo tempo em que expõe a angústia de limitações e perspectivas de grupos marginalizados. O personagem Otávio é o rapaz sensível, fascinado por registrar hábitos de pássaros, vivendo à sombra da imobilidade e das angústias do “status quo”. Firmina, a moça que deve manter os valores da família: a tradição, o patrimônio e a posição social. Dr. Ferraz e Dona Bárbara, expressões do preconceito, da insensibilidade e da arrogância de uma sociedade organizada para manter as desigualdades.
Usando como pano de fundo o amor frustrado de Otávio, o narrador passeia pela Teresina da primeira década do século XXI, desnudando impacientemente uma cidade em transformações: a perda do sentido das praças como elemento de socialização; o caos do trânsito num espaço de limitadas vias de tráfego; a precariedade de sistema de saúde pública, incapaz de atender a demanda de pacientes; o assoreamento e morte gradativa do Parnaíba e do Poty.
Retomando o pensamento de Baktin, enfatizo que, em Cambacica, a enunciação conduz o leitor, particularmente o teresinense, a dialogar com um contexto de costumes e problemas que há muito já deveriam estar superados, numa época em que se apregoam a tolerância, os direitos humanos e o fortalecimento das instituições.
Além de envolver o leitor pelo retrato social e humano de Teresina da primeira década do século XXI, a novela prende pela sutilidade das ironias, evidentes no perfil de personagens como Dr. Ferraz, evidentes, por exemplo, na referência ao protagonista. Anota o narrador, numa clara alusão ao título, reiteradamente, ao final da obra, que Otávio é um fura-flor. Cambacica é o pássaro que “perfura” as flores para delas extrair o néctar. Assim é Otávio. Aquele que incomoda as crenças e tradições de um mundo fechado e de aparências.
Em Cambacica, também prendem o leitor várias marcas linguísticas e estratégias bem próprias da literatura contemporânea. Prendem os intertextos, criados com obras clássicas de O. G. Rêgo de Carvalho e Assis Brasil. É perceptível, por exemplo, a ambientação de Rio Subterrâneo, obra maior de O. G. Rêgo, resignificar-se no texto de Halan, para criar atmofera de obscuridade, dúvida e indefinição, atmosfera que também se mostra no texto ogegueriano. Prendem ainda a linguagem fragmentada, concedendo tom cinematográfico às sequências narrativas e desafiando o leitor a completar o sentido do texto. Destaco ainda que o texto de Halan apresenta gosto de crônica; aliás, há em Cambacica a interposição da novela na crônica, produzindo efeito que agrada.
É assim a novela Cambacica: um texto merecedor de recomendação, porque escrito com a consciência de quem busca novas formas e, sobretudo, pelo desvelamento das contradições humanas em uma cidade, apesar da expansão urbana gritante, ainda, antagonicamente, sustentada por valores excludentes e provincianos.