Bráulio Tavares: O miniconto
Em: 18/11/2017, às 06H01
[Bráulio Tavares]
Que tamanho deve ter um conto? Os critérios editoriais definem a extensão de um texto pelo número de palavras. (Como ponto de referência, este artigo tem exatamente 979 palavras).
O mercado literário norte-americano, mais industrializado e preciso do que o nosso, define quatro faixas de extensão:
Conto (“short story”), até 7.500 palavras
Noveleta (“novelette”), entre 7.500 e 17.500 palavras
Novela (“novella”), entre 17.500 e 40 mil palavras
Romance (“novel”), de 40 mil palavras em diante
Dica: não tentem achar uma equivalência entre os termos ingleses e os termos cognatos em português (novela, romance). Usamos palavras parecidas para falar de coisas diferentes.
Edgar Allan Poe definiu o conto, de maneira pragmática e intuitiva, como uma "narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia-hora a uma ou duas horas."
Poe tinha em vista o que ele chamava de unidade de efeito. O conto deveria ser curto para não ser interrompido. Deveria ser uma experiência mental única, contínua, do começo até o fim, para que não se diluíssem as tensões, e o desfecho tivesse toda a carga emocional preparada pelo autor.
Curiosamente, a duração que ele preconizava para o conto é aproximadamente a que tem um filme de longa-metragem no cinema comercial. E qualquer espectador de cinema mais exigente sabe que a experiência de ver um filme na TV “quebra o efeito”, por causa dos intervalos comerciais. Tanto um conto quanto um filme devem ser, idealmente, uma experiência mental ininterrupta.
Isto se torna mais fácil quando praticamos o que chamamos de “miniconto” (“short-short story”). Para este não há um limite específico, mas em geral podemos considerar como minicontos aqueles de duas páginas ou menos. Algumas experiências vão mais além. Revistas literárias de língua inglesa promovem de vez em quando concursos para contos com apenas seis palavras. O modelo para isto é um texto famoso atribuído a Ernest Hemingway, que diz: "For sale: baby shoes, never worn" (“Vende-se: sapatos de bebê, sem uso”). Há toda uma história de tragédia familiar por trás deste minitexto.
O miniconto procura sugerir, já que não pode descrever ou narrar muita coisa. Em oficinas literárias ou de roteiro, vez por outra os alunos recebem esta tarefa: “Conte sua história em uma frase. Depois, em dez linhas. Depois, em trinta linhas; depois em 200 linhas”.
Quem for capaz de manter a precisão e a coerência ao longo destas etapas provavelmente será capaz de escrever um roteiro de 120 páginas.
A concisão é uma virtude em declínio nesta época do mundo eletrônico e seu espaço aparentemente sem limites. Antigamente, escrevíamos pensando no número de toques por linha (eram 70) e no número de linhas por lauda (eram 30). Compactar qualquer história em seis palavras nos traz de volta um pouco dessa antiga disciplina.
A revista Wired promoveu certa vez um concurso de contos fantásticos e de ficção científica em seis palavras. Uma tarefa difícil, uma vez que é preciso sugerir, além de uma história, uma ambientação com a qual o leitor, a princípio, não tem familiaridade. Mesmo assim, houve tentativas bem sucedidas. Como esta, de Eileen Gunn: “Computador? Trouxemos baterias? Alô! Computador? Computador?…” Não precisa mais nada para imaginarmos uma nave silenciosamente à deriva no espaço, cheia de astronautas congelados.
Gregory Maguire propôs: “Nos arranha-céus calcinados, homens criaram asas”. É um cenário pós-catástrofe, que lembra os quadrinhos de super-heróis. Viagens no tempo são um caminho interessante para estas narrativas super-rápidas. Harry Harrison propõe esta hipótese: “MÁQUINA CHEGA AO FUTURO. Ninguém lá...” Um recurso mais operacional, meio clichê dentro do gênero, mas eficaz nas curtas dimensões do miniconto, é a historieta de Alan Moore: “Tempo. Sem querer, inventei máquina do.” E tem a humorística hipótese de David Brin: “Dinossauros retornam. Querem petróleo de volta”.
O interessante nestas experiências é o fato de que o autor conta com a imaginação do leitor, sua capacidade de recorrer a um banco-de-dados comum para preencher as lacunas, as partes não explicadas (não dá para explicar muito em seis palavras).
As seis palavras funcionam como um cartum, criando uma unidade de sentido que se percebe de um só relance, sem precisar ficar esmiuçando “comos” e “por quês”. São como um título de livro ou uma manchete de jornal: exigem que a gente seja capaz de “já saber” e também de imaginar.
Outra publicação, a revista online Smith, lançou para seus leitores um desafio parecido: contar em seis palavras a própria vida. As respostas foram muitas e variadas. O quesito verossimilhança ficou um pouco fora de questão, pois os editores não poderiam checar se o que cada colaborador afirmava de si próprio era verdade ou não – mas isto é o que menos importa. Algumas sínteses foram cronológicas e bem-humoradas, como a de Dick Hadfield: “Feto, filho, irmão, marido, pai, vegetal”. Outras foram visualmente eficazes: “Cabeça entre livros, pés sobre flores” (Heather Thomson). Outras foram pessimistas até a medula, como a auto-avaliação de Patsy Wheatcroft: “Época errada. Classe errada. Sexo errado”. Outras otimistas, como a de Peter Elvish: “Companheira fiel, amor, risadas... e agora?”
Tem uma que dá um calafrio incômodo: “Quatro casamentos, três filhos, depois câncer” (Gillian Johnson). E outra com um sabor de volta-por-cima: “Atropelada duas vezes, felizmente ainda viva” (Trudi Evans). Steve MacMullen impressiona pela sobriedade e ausência de ambição: “Desposei namorada de infância. Filhos. Contente”.
Na verdade não se trata de esperar dos colaboradores uma pequena façanha literária, apenas um poder de síntese satisfatório. Um tal de Patric se resume: “Nasci londrino, vivi fora, morri dentro” (no original: “Born London, lived elsewhere, died inside”). Jane Kirk demonstra bom humor: “Príncipe no cavalo branco nunca apareceu”.
O desabusado C. North afirma: “Nenhuma nota dez, mas virei milionário”. O esperançoso Sunny Tailor pergunta: “Alguma chance de começar de novo?” E John Ball confessa com resignação: “Trabalhei toda vida, ainda pago impostos”. E Alexandra Lackey diz: “Nada de romance tipo Jane Austen”.
Mas há um grande romance latente em cada meia-dúzia de palavras, desde que bem escolhidas.
(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, em julho de 2009)