Barras do Marataoã no Dia dos Mortos

        [Dílson Lages Monteiro]    

        Ainda se confunde a noite com o dia, mas nos paralelepípedos o caminhar converge para o alto do morro, no Matadouro, onde o indício da existência encontrou o porto derradeiro. De velas em mãos e pensamentos no após, os cristãos misturam o passado e o porvir e rendem homenagens ao tempo e à brevidade do ar que respiram.

       É esse também o meu percurso, neste dois de novembro, quando paro para “celebrar” os dias cuja memória conservou na imaterialidade do que é morto. Subo o morro de trajeto muitas vezes melancólico ou saudosista, na redimensão das ausências que o tempo vai moldando ou sufocando, à proporção do tamanho da juventude e da certeza do cavalgar uniforme das horas.

       Paradoxalmente, o momento também significa luz. O brilho do olhar se reflete no ideal da longevidade; na satisfação de recordar dos tios-bisavós, cujas famílias numerosas de outras eras conseguiam gerar. Helena Carvalho olhando para o adro da igreja; Chico Luiz, ainda guiando a C10 numa Barras quase desprovida de automóveis; Maria Alice rumo ao Porto do Fio, onde o Marataoã cabia na palma dos olhos.

       A reinvenção do olhar regozija-se também na casa de Dasinha. Lá, o presépio da bisavó aduba o sonho e estar em Belém ou na sala, pequena para tantos enfeites, é similar, porque presépio e sala se somam às cores de uma fé que apaixona. Dasinha, invadida pelo gosto de jasmins, pela casa de frondosas goiabeiras, cujo cheiro gruda-se à pele e acompanha o menino rua afora. Dasinha, de cadeira em mão, a caminho da igreja em dia de procissão.

       O menino amadureceu, mas o ontem é hoje O avô Manuel, na estrada dos Tipis, admirando o horizonte. O avô e os netos, nos banhos no Tanque ou no Açude. O avô e os netos, atentos ao dominó à luz de lamparinas ou à energia barulhenta com hora marcada para apagar. O avô e os netos, no terreiro da fazenda, com brincadeiras de toda sorte, a dividirem a semi-escuridão do céu esculpido com a arte de  Deus. Os lampíões suspensos na soleira das janelas, brilhando longe no fundo da alegria.

       O ontem é hoje. Os tios-avós, também. Dr. José Lages na LBA. José Lages na madrugada da criança em febre ardente a tremer por inteiro. Quantas crianças teria socorrido em iguais condições? José Lages de conversas norteadas de lições para a vida inteira. Assim como ele, ainda caminha imaginariamente pela cidade Alcides, de cabeça raspada (disse-me um dia, de sorriso de uma ponta a outra do rosto, que foi uma aposta). Alcides estendendo a mão a dar o dinheiro para os bombons, a contar a história da avó Maria da Assunção Pires Ferreira, a exaltar as façanhas de prefeito.

        Ainda caminham os vizinhos mortos. Pedro Alves Furtado, quem descobri ser, além de poeta, o marceneiro que lapidou o próprio caixão, para esperar o dia final; Luizinho do Carmo, na manobra da máquina de costura; Antônio Maria pedalando em disparada para o rio. Mortos; materialmente, mortos. Porém, vivos no sangue e no afeto dos que multiplicam a história ou, de repente, interrompem-na.

        A cidade, cotidianamente, alimento vital para o sentir, é neste amálgama de tempos uma casa fechada. A cidade e seu cemitério. As reminiscências mais ternas do pai, já vencido pela brevidade do ser. Os passeios de bicicleta e no Marataoã. A atenção de quem nasce para ouvir. O nome que também era bom senso. O despertar na madrugada para encarar a natureza como gente. A sensibilidade maior que si. Tudo em cinzas se verteu. Em pó e adubo.

        Ficaram essas lembranças e os nomes que a Gonçalo antecederam. Os nomes e destinos entre Jerumenha e Água Branca. Agostinho da Costa e Silva, no Baixão do Coco, em Amarante, parte antecipadamente e se enfileira no Cemitério da Cruz das Almas, onde, talvez, Raimunda Soares Ribeiro repouse depois do parto mal-sucedido. Umbelino do Rego Monteiro e Raimunda Soares de Neiva, entre o Jardim do Mulato e o Tanque dos Umbelinos, alongam o céu. Manuel Barbosa do Rego Monteiro e Laudelina Soares Ribeiro, a fotografia no armário. Nomes e destinos que a poeira vai congelando e arquivando para sempre, no vazio do desaparecimento.

        As formas da ausência são as recordações de nomes distantes, cujas orações tratam de lembrar: os bisavós Alfredo Pires Lages e Rosa Rebello do Rego no cemitério do Candeia, na velha Esperança, a 56 quilômetro de Barras do Marataoã. Um baú de muitas histórias que a memória recria na imaginação. É Finados, mas o vento da madrugada traz para a copa da árvores o ânimo de que tudo é celebração e vida!

       Subo o morro de trajeto melancólico. O morro que também é celebração e vida! No campo santo, Trasíbulo é o túmulo esquecido, mas é narrativa. Filomena Rosa, fragmento de mármore atirado ao sol. Mas é, ainda, a narrativa de uma mulher adiante de seu tempo. Os taratavós e sua íntima essência são o silêncio do desconhecido. Mortos e esquecidos na aparência do efêmero. Mas vivos, eles e todos de minha linhagem, quando subo o morro, enquanto viver, para deles me lembrar. Nem que seja apenas por um instante. Para deles me lembrar, se não pela dor da saudade, pela certeza de que existiram um dia, porque eu existo. 

       O Dia dos Mortos em Barras do Marataoã é também Celebração e Vida!