As veleidades e vaidades humanas no ser acinzentado de Matheus Peleteiro
Por Décio Torres Cruz Em: 30/06/2024, às 16H45
As veleidades e vaidades humanas no ser acinzentado de Matheus Peleteiro
Décio Torres Cruz*
O recém-lançado livro O ser acinzentado (P55, 2024), de Matheus Peleteiro, faz parte da nova série “Cartas bahianas” sobre a qual já escrevi um artigo para o jornal A Tarde após o seu recente retorno à cena literária baiana.
Como característica de alguns livros desta série (que se destacam pelo cuidadoso e belo tratamento gráfico dos editores André e Marcelo Portugal e de Howfenns Cavalcante, neste), é também difícil classificar o texto de Peleteiro. Ele não se enquadra em um gênero específico aos quais estamos acostumados, embora os críticos tendam a classificar todo texto que se esquiva a uma classificação como pertencente ao gênero pós-moderno e toda sua ambiguidade e amplitude classificatória. Mas sabemos que não é bem assim. O ennui/spleen existencial atual e a recusa a uma classificação precedem nossa era há séculos.
Na dedicatória a mim endereçada, o autor classificou seu livro como “monólogo apaixonado pelo sentimento cinza da cidade”, sem especificar qual delas e que depois descobriremos que, apesar de ele partir da cidade específica onde vive (Salvador), este sentimento pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo, pois ele está impregnado nos seres humanos/urbanos que vivem em metrópoles.
Em seu prólogo, o autor apresenta seu livro como algo “que se materializa como uma espécie de solilóquio, resultante do sóbrio delírio de um ser acinzentado” e como “uma confissão excessiva, assinada por um homem assumidamente concretizado pela cidade”. Suas palavras nos remetem tanto ao espírito da modernidade do século XIX (textos baudelairianos [posteriormente analisados por Walter Benjamin] sobre a atração delirante da cidade, ou, até mesmo, ao homem da multidão e sua solidão, de Edgar Allan Poe) quanto aos textos contemporâneos sobre cidades invisíveis e solitárias, como encontrados na escrita de Ítalo Calvino ou de Paul Auster, ou em textos fílmicos de Wim Wenders.
A partir daí, Peleteiro apresenta este ser acinzentado ao leitor como alguém que “assume nada mais ser, senão aquele que condena a si por ter se apaixonado por aquilo que é doente, vil, estúpido e profundamente excitante”, “aquele que deixou o cinza da cidade tomar conta de suas entranhas até que impregnasse a sua pele e se unificasse a ela”, como se um desiludido Jean Genet assumisse as rédeas do seu texto, embora encontremos a presença de Tagore Suassuna, Cora Coralina, Camus e Bukowski nos créditos de suas citações.
Mas não nos enganemos: o que vem a seguir assume o tom do comentário analítico-crítico-literário-filosófico, como reflexões, pensamentos soltos, ponderações e considerações a respeito de determinados assuntos, como costumavam fazer os tratados filosóficos de antigamente e como nos mostram os títulos das seções que dividem o texto, todos iniciados pela palavra “sobre”: o ser acizentado, o ser-urbano, valores e seriedade, a liberdade, o riso e o circo de horrores, a descoberta da cidade, o ser-urbano e a arte, os escritores e a literatura moderna, os seres urbanos e as pessoas que os cercam, o suicídio e a morte, escravos e gênios, e as flores e o concreto. E alguns trechos saboreamos com pitadas de poesia.
Então, caro leitor, você deverá se preparar para uma série de críticas ácidas a comportamentos humanos/urbanos com os quais convivemos no dia a dia porque o autor parece não querer deixar nada escapar com sua luneta e bisturi precisos. Peleteiro critica tudo aquilo que nos cerca, principalmente em relação à vida burocrática e artístico-literária.
Com o olhar agudo e arguto que nos lembra aquele de um adolescente maduro que começa a descobrir o verniz superficial que cobre as relações e comportamentos humanos, o narrador vai nos fazendo observar aquilo que de tão absurdo e óbvio se solidificou em nossa percepção dos seres e das coisas, principalmente nesta era do fake e do espetáculo em que vivemos.
Difícil continuar a leitura sem interrompê-la para sublinharmos ou destacarmos frases ou trechos do livro para depois a elas retornarmos, como esta: “As grandes obras morrem todos os dias, asfixiadas em bibliotecas empoeiradas e são substituídas por resumos disponibilizados em plataformas de compartilhamento de vídeos”. Ou esta: “O vigor é o privilégio dos jovens, mas a carne dura menos que qualquer madeira”.
O autor não poupa nem os escritores que vivem em busca de prêmios nem aqueles que os invejam, assim como não perdoa a era atual das redes sociais onde pessoas que nunca leram um livro passaram a ser escritores:
“Escritores que nunca leram um mísero livro por não gostarem de escutar ninguém além de si próprios”. [...] “Agora os livros parecem diários; escritos-terapia, nos quais pessoas remoem seus traumas e frustrações em narrativas desinteressantes.” [...] “Um livro, quando lido, é sempre escutado, por isso é tão desgostoso pensar na quantidade de árvores que são derrubadas para a produção de descartáveis diários, a respeito de vidas monótonas, dessas que são publicadas dia após dia”.
E há muito mais do que pensamentos e tiradas críticas nas 51 páginas deste livro no qual nos deparamos com um narrador sagaz o suficiente para ser crítico de si mesmo e que nos convida a refletir, de forma bastante despretensiosa, sobre as veleidades e vaidades humanas. Ao mesmo tempo, nos afaga ao dizer que “todo livro é também uma canção de afago a servir de companhia para solidões” e que “a única condição capaz de justificar a falta de vitalidade de um homem é a velhice da alma”, pois “não há poema mais triste do que o envelhecimento”. Fica o convite para a leitura de um texto diferente, muito bem escrito, e que vai além de nossas expectativas.
Matheus Peleteiro, autor de O ser acinzentado (P55, 2024)
Sobre o autor
O escritor, advogado, editor e tradutor Matheus Peleteiro nasceu em Salvador em 1995. Publicou o seu primeiro romance Mundo Cão pela editora Novo Século em 2015, relançado em 2022 em edição do autor. Em seguida, lançou oito obras, dentre as quais se destacam, além de O ser acinzentado (P55, 2023), as coletâneas de contos Nauseado (ÊCOA, 2021) e Pro inferno com isso (Edição do autor, 2017; ÊCOA, 2021); a distopia satírica O ditador honesto (Edição do autor, 2018; ÊCOA, 2022); as coletâneas poéticas Tudo que arde em minha garganta sem voz (Penalux, 2016; ÊCOA, 2022), Nossos corações brincam de telefone sem fio (Edição do autor, 2019; ÊCOA, 2022) e Caminhando sobre o fogo (ÊCOA, 2021); e a novela Notas de um megalomaníaco minimalista (Giostri: 2016; Edição do autor, 2019). Entusiasta da arte de descobrir e revelar escritores, é curador da coleção “Poesia55”, editada pela Editora P55, e produz o podcast “1Lero”, onde realiza entrevistas com expoentes da literatura contemporânea.
* Membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de: A poesia da matemática (2024), Histórias roubadas (2022) e Paisagens interiores (2021).