(Miguel Carqueija)

conclusão da aventura de Denise/Ginger

III


ESPECTATIVA


    Na manhã seguinte Denise ainda tinha em mente aquela entrevista quando se aproximou de Meneguetti, o auxiliar que Gnatalli elogiara desdenhosamente. A excursão à floresta de luxo seria comandada por ele, naquele dia. Duas vezes por semana, apenas! Inflexível regulamento: antes de admitir qualquer hóspede, Gnatalli obrigava-o a assinar a concordância àquele regulamento. O bosque era ultra-protegido: visitas só programadas ou conduzidas e autorizadas pessoalmente pelo anfitrião (como no caso da reportagem). Para Denise, olhar de perto as árvores era condição sine qua non para a sua investigação.
    Com bermudas jeans e tênis sem meias, Denise era uma jovem e típica turista, mas por dentro continuava a ser a máquina de investigar em que se tornara.
    Meneguetti, à sua frente, era mesmo um homenzinho aparentemente insignificante, com rosto chupado e cabelos desalinhados. Olhou para Denise e exclamou:
    — Muito bem! Você é pontual! Mas cadê os outros?
    — Suponho que estejam chegando.
    — Ah, lá vem a outra estudante! Estudantes são sempre mais pontuais.
    Denise fazia-se passar por universitária. Encarou Iolanda, e pensou absurdamente que esta podia ser outra agente enrustida...
    O grupo não demorou a se completar. Todos os hóspedes, que eram poucos (a diária não era propriamente barata), lá estavam.
    — E você, quem é?
    Denise olhou surpreendida para o recém-chegado. Um japonês ou coisa parecida, com antiquados óculos.
    — Chamo-me Denise... não o tinha visto.
    — Hospedei-me hoje. Bem em tempo para participar da excursão. Sou Matsumoto, inspetor-chefe da Scotland Yard.
    Denise ficou espantadíssima, lembrou-se logo porém que o policial nipo-britânico tinha todo o direito a férias. Aliás ele estava com a esposa, Rose, que imediatamente apresentou a Denise.
    Não houve tempo para maiores comentários: Meneguetti já comandava o início da excursão.
    A distância era curta, naturalmente. Denise caminhava junto à fileira de ananases, e a seu lado seguia Iolanda, apetrechada, como quase todos, com uma multi-registradora laser.
    — Você está ansiosa? — perguntou a Denise. A autodisciplina que a transformara, com o passar dos anos, numa esfinge ambulante, ordenava a Denise cautela extrema em não revelar aos outros o seu íntimo.
     — Não. Mais ou menos já sei o que iremos ver.
    — Mas sempre é outra coisa ver com os próprios olhos!
    — Eu sei...
    Jairo disse: — Eu quero ver se essas árvores também falam! Pelo visto é a única coisa que lhes falta!
    — Não me surpreenderia muito, depois de tantas maravilhas que ouvi falar — respondeu Iolanda.
    Jairo seguia despreocupado, cantarolando uma congada. Iolanda ia mais concentrada. Súbito Wagner apareceu como um corisco na frente das duas moças:
    — Sorriam, sorriam! Isso! Tenho que acabar o meu filme!
    — Mas antes de chegarmos lá, homem? Tenha dó! — sentenciou Jairo.
    — Senhoras e senhores — pronunciou Meneguetti, com ridícula solenidade — chegamos ao Bosque de Luxo!


IV


ESPANTO


    Um escaravelho dourado passou voando, com seu corpo pesadão, um metro à frente de Denise. Pouco além, um tronco amarelo mostrava-se absurdamente liso. Poderia ser uma nogueira, que dava nozes cor de mel. À direita havia uma palmeirinha marrom, cor de cobertura de bolo, folhas imensas, azul-claro. Uma raflésia roxa esparramava-se mais além. Entretanto, esses primeiros exemplos pareciam quase banais se comparadas com o que vinha a seguir. Como o espetacular eucalipto cor-de-rosa e a majestosa tília prateada, cujo revérbero chegava a ofuscar a vista.
    — Vamos, Hortência! Não fique aí olhando embasbacada. Tire logo as fotos!
    Denise olhou com desdém a matrona equatoriana e sua submissa filha. Havia ali muito mais que simples curiosidade para turistas!
    — A nogueira é bífera — ia explicando Meneguetti. — Denise não prestava muita atenção. Aproximou-se como em transe do eucalipto e tocou-o de leve. Era frio e liso. Então ela fez uma rápida massagem no tronco.
    Estaria sonhando ou a gigantesca árvore reagira, como se sentisse cócegas?
    — Por favor, moça. Olhe o regulamento.
    Habib, que acompanhava Meneguetti, servia apenas para lembrar a toda hora os visitantes:
    — Não toquem! Não danifiquem as árvores de luxo! Não pisem nas raízes! Cuidado, o patrão não admite danos! Limitem-se a olhar, fotografar e filmar!
     Denise afastou-se do vegetal. Aproximou-se de Meneguetti, que prosseguia dando explicações pedantes e incompreensíveis sobre os exemplares:
    — Essa é uma variedade adaptada da “Lagenaria vulgaris” ou porongo, que é uma planta da família das cucurbitáceas, como essas cucúrbitas ao lado, roxas como vocês estão vendo. Não são comestíveis.
    Denise reconheceu abóboras, que Meneguetti chamava de cucúrbitas, e indagou de chofre:
    — Algumas dessas plantas de luxo se come?
    Meneguetti pareceu receber um choque elétrico.
    — É claro que não! Já pensou? Seria o mesmo... o mesmo... que transportar lixo com uma limusine último tipo!
    — Perdão, mas não entendi a sua comparação.
    Essa última observação partira de Matsumoto. O inspetor. Denise cravou-lhe os olhos. Pescara qualquer coisa, ainda inidentificável, naquela troca de palavras.
    Meneguetti respondeu: — Bem... pense bem... não seria um desperdício gastar tantos recursos para realizar essa maravilha de engenharia genética vegetal, para criar plantas comestíveis?
    — E por que não? Qual é a utilidade dessas árvores e plantas a não ser como atração turística? Se não se pode fazer nada com elas, como aproveitar a lenha...
    — Santo Deus! O senhor está brincando. Não se esqueça do valor científico delas.
    Talvez o inspetor estivesse apenas se divertindo, mas por que, pensou Denise, o outro empalidecera tanto? Seriam aquelas criaturas vegetais tão intocáveis assim para os seus proprietários?
    A voz tonitruante de Loreana fez-se ouvir, quebrando a tensão.
    — É claro, o senhor tem razão!o podemos pensar em derrubar coisas tão bonitas? E agora vamos andar que eu quero ver aqueles fetos enormes!
    O general Othis subitamente pôs-se a rir estrepitosamente, sacudindo as banhas agora bem visíveis já que vestia camiseta e bermuda:
    — Ah! Ah! Ah! Vejam só, nunca imaginei ver uma coisa dessas antes! Oh! Oh! Oh! Esses cocos, meu Deus! Esses cocos!
     E apontava, tremendo de tanto rir, um coqueiro branco, cor de matéria plástica, ostentando cocos de cor azul marinho.
    — Por que é que esse homem vive rindo? De que é que ele acha tanta graça afinal? Dá vontade de apertar-lhe a garganta!
    Denise e Iolanda fitaram o autor da observação: Enrico Quilici. Iolanda riu e concordou com ele, verbalmente. Denise limitou-se a concordar mentalmente.
    A expedição prosseguia. Denise registrava, observava e analisava. Quando Habib ficou fora de sua vista — coisa fácil num grupo que anda por veredas de mato — aproximou-se de uma planta trepadeira de caule cor-de-rosa e puxou-lhe um ramo cheio de folhas cinzentas.
    O galho deu um súbito repelão, como uma pessoa livrando-se de alguém que lhe segura o braço.
    Denise arregalou os olhos e sentiu arrepiarem-se os pelos do seu braço. Apressou-se a voltar para bem perto dos outros, verificando que ninguém, salvo engano, percebera o incidente.


V


INTROMISSÃO


    Naquela noite Denise tinha dificuldade em conciliar o sono. Melhor dizendo: nem sequer tentava.
    Custava a admitir, para si mesma, que estava mortalmente apavorada. Crescia no seu íntimo a convicção de que havia puxado naquele dia a ponta do véu de um tenebroso mistério. Embora não soubesse exatamente o que tanto temia, excogitava e tornava a excogitar como, onde, quando e porque aquele homem desenvolvera tamanho poder. E mais, o que é que ele pretendia fazer com o mesmo. O que realmente pretendia Nicola Gnatalli? Como um pano de fundo a todas aquelas sombrias reflexões, a indagação mais alarmante de todas: até onde iria realmente o poder de Nicola? Qual a parte que ele não revelava?
    Toda a atitude de habib e de Meneguetti traduzia-se em contínua vigilância sobre os visitantes. Animais como cachorros aparentemente nunca transitavam pelo Bosque de Luxo. Espécies normalmente comestíveis, como abóboras, lá já não o eram. A lembrança daquelas plantas alvinitentes, roxas, douradas, carmesins e de outras tonalidades inverossímeis, povoava a sua mente. Não podiam ser comidas nem cortadas. Podiam mover seus membros e até seus caules. Que eram aqueles seres, afinal?
    Que aconteceria, que poderia acontecer se alguém tentasse serrar uma daquelas árvores?  
      

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    Não sabia a que horas conseguira conciliar o sono. A certa altura o pesadelo tomou conta de seu espírito: via-se num bosque escuro e fechado, onde estranhas e ameaçadoras luzes dançavam ao seu redor, acompanhando uma melodia sinistra. Logo as luzes pouco a pouco deixavam entrever corpos grotescos e gigantescos, com membros desproporcionados e estranhas garras. Denise tentava fugir mas, a cada direção que tomava, tinha o seu caminho barrado por um daqueles monstros que afinal não eram senão as ominosas árvores de luxo, agora ostentando bocas medonhas e olhos luminosos, de uma luminosidade aterrorizante, e que tentavam agarra-la com seus galhos móveis e abomináveis...


................................................................

    A madrugada ia avançada (a noite de Éden era um pouco mais longa que a da Terra) quando Denise despertou com um zumbido peculiar em seu ouvido.
    Alguém estava em seu quarto.
    Com o sangue frio que desenvolvera, Denise abriu os olhos e observou o intruso. Um homem baixo, com rosto de bebê e não obstante, têmporas grisalhas. Sentado à escrivaninha, com o auxílio do quebra-luz, lia diversos documentos.
    Denise pulou da cama.
    — O que deseja, inspetor?
    Poucos homens terão tido algum dia choque semelhante. O inspetor da Scotland Yard ergueu-se de chofre e olhou-a, perturbado por trás de suas grossas lentes:
    — Você... como pode ter acordado?
    — Por que julga que o meu sono é tão pesado?
    — Eu coloquei um gás anestésico!
    — Qualquer coisa que você possa ter vaporizado, não me atingiu e curiosamente nem a você, inspetor.
    — Eu uso um filtro no nariz!
    — Pois é, inspetor.
    Deixa ele pensar que eu uso filtro, pensou Denise. Não precisava chegar ao ponto de sabe que ela era vacinada contra gases venenosos ou dormitivos.
    Matsumoto sentou-se.
    — Penso que teremos de jogar francamente — declarou.
    Denise puxou uma cadeira e enfrentou o policial:
    — Não sei a que você se refere, a respeito de “jogar”. Que veio fazer aqui, como entrou, o que está olhando e com que direito?
    Não passou despercebido ao inspetor ser chamado de maneira descerimoniosa.     
    — Eu sou policial — respondeu, como se com isso tudo se explicasse.
    — E daí?
    — Daí, quero saber por que razão você se encontra neste local.
    — Mas que espécie de louco você é?
    — Cuidado com suas palavras, menina! Posso levá-la à prisão por desrespeitar minha autoridade.
    Denise riu-se em seu íntimo de semelhante ameaça. Provavelmente ser-lhe-ia mais fácil, a ela, uma agente secreta especial, remeter o inspetor para o xadrez.
    Mas não estava disposta a aturar desaforos. Ergueu-se e esforçou-se para manter baixo o tom de voz:
    — Cuidado, inspetor. Que autoridade você tem aqui, tão longe de Londres? Aliás eu nem vi as suas credenciais. Explique-se de uma vez que o meu tempo é precioso. Caso contrário eu o porei para fora e o denunciarei à administração do hotel.
    O tira pareceu ficar perturbado.
    — Bem, na verdade... creio que terei de falar claro.
    Denise tornou a sentar.
    — Fale — disse incisivamente.
    — Pois bem. Existe algum segredo no negócio do Gnatalli, e você sabe disso tão bem quanto eu. Esse homem tem antecedentes criminais em Londres e por isso a Interpol me pediu para investigá-lo e descobrir provas que possam levá-lo às barras do tribunal.
    — E o que é que eu tenho com isso? Sou apenas uma turista e não sou a única!
    — Mas você é a única que se fecha em copas, que observa tudo sem falar e cujas informações prestadas ao hotel são falsas.
    — E como sabe disso, se você não tem acesso ao fichário do hotel?
    — Para um policial da minha envergadura, não é uma jovenzinha como você que vai enganar. Para mim é fácil remeter um cosmograma secreto para conferir as suas informações... as que estão na agência do astroporto e que devem ser as mesmas que prestou no hotel. Você não estuda na Faculdade Glenn Schott. Isso e outras coisas. Você aqui se encontra sob falsa identidade e com algum objetivo secreto.
          Uma cólera surda começou a tomar conta da moça. Levantou-se, foi até a mesa e olhou de relance os papéis que o inspetor estivera a manusear. Nenhum deles revelaria o que quer que fosse, mas Denise juntou-os e recolocou-os na gaveta, sem temer objeção. Depois voltou-se para Ideo Matsumoto.
       — Imbecil!
    — Não tolerarei ofensas, lhe aviso!
    — Cale-se! Fale o mais baixo possível, vou lhe mostrar a besta que você é. Dê-me um minuto.
    Ela já manipulava o seu relógio de pulso, que começou a piscar. Matsumoto olhava-a assombrado. Um estranho e baixo silvo partia do relógio. Denise encostou-o na parede de acrílico, que se rompeu de súbito e por uma pequena abertura saltou uma caixa presa em fios, e já em estado de fusão.
    — Todos nós somos escutados. Eu já tinha localizado esse ouvido há muito tempo. E você, seu burro, acaba de alertar aos donos do lugar, que já sabem a essa altura que aqui se encontram dois investigadores.
    — Espere...
    — Podemos apenas contar que eles não se encontrem à escuta, mas nossa conversa foi gravada até a fusão do aparelho.
    — Mas então você é uma investigadora?
    — Sou agente secreta federal. Conheço em pessoa o Primeiro-Ministro da Federação.
    Matsumoto estava arrasado.
    — E agora?
    — Diga-me em poucas palavras o que você suspeita no Bosque de Luxo.
    — A sua opacidade. Coloquei óculos penetrantes mas não consegui nenhuma visão do seu interior. Pode haver um arsenal completo para armar um exército revolucionário por dentro daquelas malditas árvores. Ou jóias roubadas Ou então cocaína. Ou...
     Denise riu sarcasticamente.
    — Oh, se fosse só algo assim!
    — Que quer dizer?
    — Vá para junto de sua esposa enquanto eu me visto.
    — Isso é que não! Quero saber o que é que você sabe!
    — Então vire-se porque eu vou me vestir quer você saia ou não!
    — Mas...
    — Vamos, homem. Vire-se! Afinal eu sou uma mulher! Aliás, se eu fosse homem já lhe teria dado um soco. Vire-se!
    Sem mais ligar para o apatetado policial, a agente abriu o guarda-roupas e começou a separar peças.  Ao ver que efetivamente ela ia começar a se trocar, o anglo-japonês voltou-lhe as costas.
    Denise aproveitou para colocar seus equipamentos especiais, que o homem não chegara a ver.
    — Já acabou?
    — Só um instante.
    Denise agora estava com calça e jaqueta jeans, mochila às costas e botas, além de vários anéis. Matsumoto olhou-a com surpresa, reparando em seu cinturão negro.
    — Para que tudo isso?
    — Já lhe ocorreu que nós corremos perigo de vida? Você está armado?
    — O que! Um policial britânico não usa armas!
    — Santo Deus! Por que um estropício como você tinha quer aparecer nesse planeta, para desarrumar todo o meu esquema? Com quem você pensa que está lidando? Com delinqüentes juvenis? Vá ver sua esposa pelo menos, vá protegê-la! E se a pegam como refém? Se for preciso acorde os outros hóspedes. Olhe, leve essa arma!
    Denise passou-lhe uma pistola de choque tirada de uma gaveta do guarda-roupas. O infeliz inspetor deu-lhe as costas e saiu como um sonâmbulo, ainda sem acreditar no que estava acontecendo. Mas a menção de um suposto perigo contra a sua esposa pusera-o em ação.
    Fechando a porta atrás dele, Denise rapidamente colocou na mochila tudo o que não poderia deixar ao alcance de seus inimigos e abriu a janela.
    O céu estrelado de Éden piscou para ela através de miríades de estrelas. A jovem pronunciou uma rápida prece e monologou:
    — É agora. Tudo se precipitou.
    E assim dizendo ela ligou o aparelho antigravitacional do seu cinturão de utilidades.


VI


CONFRONTO


    Sob aquele céu cor de maravilha planava a esguia figura de Denise.
    A sua tecnologia, aliás a tecnologia do Serviço Secreto, conferia-lhe formidável poder e ela sabia disso. Mas não tinha idéia clara do que iria enfrentar.
    Quando se aproximou mais, pôde notar a cintilação cor-de-rosa que subia em abóbada sobre o bosque de seis hectares. A quase ausência de aves e até insetos não lhe passara despercebida. Tampouco a existência de gramíneas,  plantas diversas e árvores comuns, que os olhos pouco viam, deslumbrados por aqueles portentos multicoloridos.
    “Aberrações da natureza”, pensou a garota. “Árvores não podem ser assim.”
        Oliver fôra terminantemente proibido até de levar os seus cigarros para o bosque. O regulamento, que cada visitante assinava à entrada, previa até multas para quem fumasse ou praticasse outros atos anti-sociais perto daquelas “árvores sagradas”.
    “Não-me-toques. Verdadeiros não-me-toques.”
    Wagner Klemperer, que tentara várias aproximações com Denise (provavelmente em busca de um namoro), dissera-lhe: — É tudo tão estranho aqui. Chego a ter a impressão de que “elas” nos observam.
    Denise acelerou o seu antigravítico e partiu a barreira energética que protegia a floresta de insetos nocivos e outros seres indesejáveis.
    Pousando naquela terra estranha, que agora iluminava com a sua lanterna de testa, Denise olhou para todos os lados, fitando as imponentes e poderosas Árvores de Luxo. Cores, cores. Até nas folhas.
    — Afinal quem são vocês? O que querem? Que espécie de criaturas vocês são?
    A voz lhe saía como em torrente. Já não sentia medo, mas uma crescente indignação contra aquilo que de forma tão ostensiva contrariava as leis naturais. Afastando a tênue suspeita de que tivesse enlouquecido ela continuou a falar, com a voz se elevando em diapasão de cólera:
    — Vocês podem me entender e me ver? Não finjam mais. Que mistério vocês escondem? Revelem-se, porque eu não sairei daqui sem saber.
    Olhou em volta, mantendo cerrada guarda. Os movimentos de tropismo dos galhos, que acompanhavam as chuvas artificiais, pareciam agora se repetir, com mais vigor; segundo o cicerone oficial aquelas plantas tinham também tropismo pela luz das Lucinas de Éden, mas isso agora, a jovem via claramente, não podia ser explicação satisfatória.
    Ouviu-se um baque surdo.
    — Já que você quer saber, eu lhe direi... tudo. Mais do que você gostaria de saber.
    Denise encarou o recém-chegado, que acabara de pousar, ele também portador de um cinturão antigravítico.
    Estava diante de seu Inimigo Metafísico: Nicola Gnatalli.


VII


CONFLITO


    Havia um texto de Glaydes Gurgel que impressionara muito Denise:
    “O Momento Metafísico” é quando alguma coisa toca a corda mais sensível de sua alma. De repente você percebe claramente alguma coisa até então obscura, como numa súbita revelação. O mistério se descortina, e agora você sabe. Dostoievski exemplifica esses momentos metafísicos em dois de seus mais ilustres romances. No “Crime e castigo”, quando Razoumikhine percebe a verdade sobre Raskolnikoff, descobre finalmente que o seu amigo é o assassino das duas velhas. E nos “Irmãos Karamazov” é o “stariétz” quem enxerga num relance todo o destino trágico de Dmitri e, num gesto de compaixão, prostra-se diante dele.
    E agora Denise julgava gozar o seu momento metafísico. Sabia agora, como dois e dois são quatro, que agora teria de enfrentar o seu oposto, o seu adversário metafísico, o seu inimigo mortal: Gnatalli.
         Aproximou-se dele até dois metros. Não queria proximidade maior.
    — Então fale. E diga também o que está acontecendo no hotel.
    — Com o idiota do seu amigo? Nesse exato momento os meus robôs e os meus auxiliares estão detendo a todos os hóspedes, inclusive Matsumoto. Ninguém dará o alarma. E todos receberão uma lavagem cerebral, de modo que esquecerão tudo... principalmente a sua existência.
    — Ah, sim? Qual é o seu plano a meu respeito?
    Gnatalli sorriu maquiavelicamente.
    — Terei simplesmente que matá-la. É pena, uma moça tão bonita, inteligente e corajosa. Mas não adianta fazer-lhe lavagem cerebral: como agente do Serviço Secreto você foi vacinada contra essas coisas, da mesma forma como é imune ao gás anestésico daquele esbirro.
    — Já lhe ocorreu que quem me enviou dará pela minha falta?
    — Há muitas formas de arranjar isso. Posso provar que você jamais chegou ao hotel. Posso fazer o seu corpo aparecer em outro local, nas antípodas, e com uma convincente “causa mortis” que me inocentará. Mas isso é problema meu. O ponto fundamental é que você já não pode permanecer viva.
    — E que você pretende afinal com essas árvores?
    Ele deu de ombros.
    — Já que você vai morrer mesmo, não tem muita importância que fique sabendo. Só que eu não tenho tempo de entrar em muitos detalhes. Digo-lhe apenas isso: essas árvores representam o poder. Um poder gigantesco, que a seu tempo me tornará o homem mais poderoso do universo. Mas chega. Ao quebrar o campo de força você causou-me imenso prejuízo. Se não tivesse feito isso eu talvez a poupasse. Mas agora seu tempo acabou.
    Denise sorriu, desafiadora:
    — Pretende me enfrentar sem armas?
    Sabia que isso não era verdade, que ele tinha certamente armas poderosas, mesmo que não fossem convencionais; mas queria levá-lo a revelá-las.
    Um sorriso sádico mostrou-se no rosto do italiano.
    — Sem armas? Você as verá, agora!
    Gnatalli recuou dois passos para melhor se proteger e levou as mãos à caixa preta metálica pendurada em seu pescoço, cheia de controles. Premiu alguns e um zumbido estranho surgiu, como de um enxame aloprado, e então...
    Denise também recuou. Sentiu o chão tremer e vibrar debaixo de seus pés. Olhou em volta. Sentiu a atmosfera como que se adensando. Os ramos mais finos e, aos poucos, os galhos mais grossos das árvores começaram a vibrar, a tremer, de forma cada vez mais convulsa. O rosto de Gnatalli, rasgado num sorriso sádico, cada vez mais fazia lembrar um diabo encarnado.
    A moça compreendeu que começara a parte pior do pesadelo.
    — Pare! Pare, seu monstro! — gritou.
      Mas já era muito tarde para deter Gnatalli. Este já avançava em direção à garota; esta recuou e viu horrorizada que os galhos se entrelaçavam metros acima, como para prevenir uma possível fuga aérea. Logo os primeiros apêndices lenhosos se moveram, já com as ramificações assemelhando garras, em direção à agente secreta.
    Gnatalli apontou para a moça e disse: — Peguem-na.
    Denise acionou com os polegares seus anéis de fusão colocados, em número de seis, em todos os dedos centrais. Os primeiros ramos que tentaram tocá-la recuaram, calcinados: as gemas dos anéis estavam incandescentes.
    Denise moveu-se, buscando um caminho de fuga, mas era um exercício dificílimo enfrentar os vegetais que buscavam cercá-la sem despregar os olhos de Nicola, que podia ter outro tipo de arma consigo.
    — Peguem-na! — gritou o italiano, vendo que a moça abrira violentamente caminho para recuar, passando para uma ampla clareira de onde talvez conseguisse levantar vôo.
    Denise perguntou a si mesma se não estava de fato sonhando. Aqueles seres pavorosos pareciam agora haver transformado as suas rugosidades naturais em simulacros de expressão fisionômica, como se portassem horríveis caras; e até abriam fendas na lenha, como medonhas bocas. Para a maioria dos seres humanos, isto já seria demais; Denise porém não era a maioria.
    Mas o pior ainda estava para vir. Denise percebeu um verdadeiro tremor de terra um instante antes de alçar vôo; e as árvores de luxo, cuja beleza, apesar de todas as cores, parecia já não existir, começaram a se arrancar do solo. Denise voava e via, num relance, raízes que saíam absurdamente da terra. Raízes menores do que seria de esperar em tais seres. Mas era difícil atingir a altura necessária e ao mesmo tempo repelir os agressores com o poder dos anéis incandescentes. Era preciso mover os braços defensivamente e ao mesmo tempo manobrar o vôo. Então um galho de carvalho acertou-a no abdômen, derrubando-a. A jovem caiu quase até o chão, conseguindo estabilizar-se e pousar de pé, sobre uma pedra; os dedos de sua sinistra manipularam rapidamente a pulseira de sua destra, e uma carga sônica foi lançada contra o abeto verde-azulado que se adiantara em passos absurdos na sua direção. Não eram caminhantes jeitosos, mas de algum modo caminhavam. Tentavam fechar o cerco, mas a garota defendia-se com unhas e dentes. Agora, de seu cinturão de utilidades, atirava cápsulas de concussão que feriam as árvores atacantes, forçando-as a recuar. Gnatalli, seu inimigo mortal, surgiu levitando a dez metros, e gritou-lhe:
    — Não adianta, Denise! Eu posso contrabalançar os seus ultra-sons, e nem todos os seus truques deterão as minhas árvores indefinidamente!
    A garota já se sentia cansada e não via um fim para aquela perseguição monstruosa. Algumas árvores, feridas pela reação da vítima, recuavam com o alburno à mostra em vários pontos; Denise porém já fôra arranhada nos braços e sua jaqueta encontrava-se rasgada. Tinha ainda uns truques na mochila, mas precisava de uma folga para lançar-lhes mão. Sons gorgolejantes, raivosos, se faziam ouvir como estática de fundo num televisor. Se naquele momento as criaturas começassem a falar, lançando-lhe impropérios, Denise já não se espantaria.
    Abrindo caminho entre as ramagens, que se afastavam para lhe dar passagem, o hoteleiro, como um pássaro agourento, dirigia o seu poderoso transmissor ondiônico e, no duelo vibratório que se seguiu, a pulseira de Denise repentinamente explodiu, desintegrando-se em fragmentos. A gargalhada demoníaca de Gnatalli ecoou pelo bosque.
    Como um escorregadio Peter Pan, Denise escapou voando por entre ramos que a buscavam e, pousando numa gigantesca pedra, abriu o zíper esquerdo de sua mochila e retirou uma mangueira fina e de bico metálico. De cada lado, um pequeno timão. Segurando o objeto com as duas mãos, Denise conseguiu sorrir.
    — Venham, agora.
    E um fortíssimo jato de fagulhas jorrou sobre os monstros que fechavam o cerco.


VIII


ASSALTO


    Enquanto isso outras coisas ocorriam no Hotel Gnatalli.
    Matsumoto correra para o seu quarto, que ficava na outra extremidade. Ao lá entrar encontrou Rose acordada, como já sabia, visto que ela aguardava o resultado da investigação.
    Em poucas palavras o policial tentou narrar-lhe o que sucedera; mas antes que conseguisse pleno êxito — já que as coisas se lhe afiguravam meio confusas — ouviu um silvo curioso que, como agente da Lei, sabia reconhecer.
    — Depressa, ponha um filtro! Acho que está entrando algum gás!
    Correram ambos para a varanda. Várias varandas adiante avistaram outro hóspede: Wagner Klemperer, o repórter.
    — Ei, você! — gritou Matsumoto.
    — Que há?
    — Que há, digo-lhe eu! Você tem algum aparelho transmissor? Temos que chamar a polícia!
    — Mas por que?
    — Não há tempo para explicar! Jogaram gás anestésico no meu quarto!
    — Não é bom gritar desse jeito.
    Wagner era um rapaz atlético e no instante seguinte já estava bancando o Tarzan, dependurando-se nos gradis e balaustradas. Passou de varanda em varanda até chegar à do casal:
    — Falem agora. Que está havendo?
    Rose não falava. Sabia pouco. Incomodado por revelar suas investigações a um quase-estranho, o inspetor resumiu o que sabia, até a despedida de Denise.
    Wagner pareceu ficar preocupado.
    — Então aquela menina é uma agente secreta? É difícil crer. Tão jovem...
    — Ela deve ser mais velha do que aparenta — opinou Rose.
    — Sim, si, deve ser isso. Agora, inspetor, quanto à sua pergunta, eu tenho o aparelho transmissor. Também venho suspeitando de algo.
    — Outro investigador? Três é demais.
    — Ou insuficiente. Nem o cheiro daquelas flores é natural. Repararam nisso?
    Mas o colóquio foi interrompido. Gritos se ouviram, portas eram arrombadas.
    Wagner observou: — Os autômatos-criados devem ter outras utilidades. Chega!
    Pegou seu ondiônico e pôs-se a tentar a comunicação com a cidade, a central de polícia. Em poucos segundos a ligação se estabeleceu. Uma voz feminina perguntou a Wagner o que ele desejava.
    — Venham depressa nos socorrer, pois nós estamos...
    — O que?
    Ruídos metálicos fortes se fizeram ouvir; a esposa do tira gritou e logo, logo, a figura ominosa de um robô-capanga apareceu.
    Matsumoto sacou a arma que Denise lhe cedera e uma fulguração espantosa atirou o autômato para trás, praticamente transformando-o em sucata.
    — Custa milhões codificar um robô para fazê-lo desempenhar papel agressivo — comentou o agente.
    Wagner, porém, não estava particularmente interessado em finanças naquele exato momento.
    — Vamos pular no jardim, que a altura não é tanta. É o único jeito de escaparmos.
    — Mas...
    — Você tem o filtro, não tem? Corra lá dentro, traga o colchão em dois segundos e vamos pular!
    — Conseguiu chamar a polícia?
    — Quase. Havia muita estática e esse fulgurante aí terminou de estragar a comunicação.
    Não havia mais tempo a perder.


IX


PALAVRA


    O fluxo energético varria as árvores atacantes. Denise movia o corpo, fazendo da mangueira uma metralhadora giratória. Gigantescos pinheiros, bétulas, jacarandás recuavam diante da catadupa de arco-íris que rivalizava em beleza com aqueles caules brilhantes e coloridos.
    Denise olhou para o céu. Até cipós se estendiam, auxiliando os galhos que buscavam se entrecruzar, formando uma rede captora. A manobra era difícil. A jovem adquiria a íntima convicção de que precisaria liquidar Nicola Gnatalli, ou seria por ele morta. O inimigo metafísico, uma vez revelado, mostrava-se implacável, desencadeando sobre Denise o seu poder, com toda a brutalidade possível. E ela, por sua vez, viera para transtornar pela base, visceralmente, os planos diabólicos daquele homem, ameaçando destruir a obra de toda uma vida. Tinham sido mutuamente cordiais nos primeiros encontros; agora porém, com o jogo aberto, afigurava-se impossível o entendimento, a contemporização. “Um de nós morrerá agora”, pensou Denise, por mais que lhe repugnasse a idéia de matar um semelhante. Mas aquele era o seu inimigo histórico, transcendental, como o haviam sido Churchill e Hitler. Agora Denise compreendia porque, segundo o filósofo Dante Peregrino, ela deveria agradecer a Deus se nunca viesse a encontrar um tal personagem.    
    Como em sinistro corredor polonês, Denise voou à procura de uma saída. O solo estava revolvido, esburacado, mas na verdade as raízes eram ridiculamente pequenas, o que lhes facilitava a saída. Na imaginação da moça passavam seres lenhosos, repletos de galhadas, portando armas, viajando em astronaves, desembarcando em grandes centros e atacando as populações humanas. Árvores tripulando tanques de guerra, manejando canhões laser. Ou simplesmente trucidando as pessoas com seus membros poderosos. E para que? Para entregar o poder supremo a Gnatalli? E depois?
    Seria esse o objetivo daquele homem?
    De uma coisa Denise estava certa: ela não pretendia esperar para ver.
    O que tinha de fazer parecia-lhe evidente: abrir caminho através daqueles monstros, alcançar seu inimigo e despejar o jato de energia em seu peito. Antes de mais nada, destruir aquela maldita caixa preta. Depois...
    A idéia de fuga afastava-se da sua mente. Parecia-lhe relativamente fácil atravessar o que restasse da enfraquecida estrutura do campo de força; mas agora vegetais monstruosos, sequóias e eucaliptos cor-de-rosa, azuis e amarelos, tomavam o lugar de diversas árvores mutiladas que recuavam; trepadeiras galgavam os monstros e todos os esforços se concentravam em formar uma rede inextricável nas alturas, para impedir o escape da pequena, ao mesmo tempo em que maior distância se abria em baixo, afigurando-se agora um circo ou anfiteatro. As árvores agressoras procuravam manter distância do perigoso jato, mas conservavam o cerco fechado. Denise estava quase tão presa como um passarinho numa gaiola. Tudo se passava, obviamente, com muita rapidez; porém mesmo nesse curto espaço de tempo não escapava á heroína que a sua energia não era inesgotável e que poderiam existir um milhão de árvores naquele bosque dantesco.
    Denise avançou, em vôo que controlava com um botão especial. As bombas de seu cinturão Batman se haviam esgotado, tendo causado muitos danos às atacantes, mas isso agora parecia inútil: diante dela sequóias novinhas em folha enfrentavam-na em minaz expectativa.
    A moça apelou para sua outra pulseira vibratória, no braço esquerdo. Nessa altura os galhos-braços já estavam atirando pedras sobre a garota, pedras que a vibração da pulseira afastava ou esboroava. Então, entre duas sequóias, sinistro como ave de carniça, surgiu o italiano, brandindo um bastão negro que até ali estivera pendurado às suas costas. O bastão vibrava e dirigia contra a garota uma faísca amarela e tremeluzente.
    Denise fôra também vacinada contra choques eletromagnéticos, mas não pôde impedir o que se seguiu: o duelo nesse ponto era desigual, sua pulseira estava sobrecarregada com o esforço de manter à distância os monstros de lenha. Mais uma arma de Denise partiu-se e seus pedaços caíram ao solo. A gargalhada luciferina de Gnatalli se fez ouvir. Num assomo de raiva Denise religou a mangueira e dirigiu o jato contra seu inimigo. Este porém já fôra coberto pela sequóia, que recebeu em cheio a queimadura e mesmo assim avançou contra Denise. A espiã precisou recorrer a toda a pressão de que sua arma era capaz para fazer recuar as toneladas que vinham ao seu encontro, na incessante disposição de matá-la.
    Um cipó surgiu logo acima de seu rosto e, num átimo, enroscou em seu pescoço. Ela usou a mão livre para queimar o vegetal com seus anéis e livrou-se com alguns arranhões. Pelo menos a energia dos anéis poderia aguentar durante alguns anos, mas não era uma arma muito eficiente naquelas circunstâncias.
    Denise retirou as outras armas de sua mochila: as lentes polarizadoras. Resistira em usá-las porque, no fundo, a sua mentalidade ecológica repugnava-se ante a idéia de queimar árvores. Entretanto a pressão agora era muito grande e só o seu relógio e sua mangueira podiam manter os vegetais à distância. Denise então dirigiu o raio de uma das lentes sobre o chalrote de um pinheiro que avançava; logo a casca da árvore pôs-se a fumegar e uma labareda surgiu.
    O que então aconteceu mostrou bem até que ponto aqueles seres estavam preparados para a luta.
    O pinheiro pôs-se a bater no próprio lenho com as folhas, e logo era ajudado por uma sequóia. O fogo se apagou.
    Árvores de espécies muito diferentes, inclusive na distribuição florestal: espécimes de florestas equatoriais, temperadas e até frias... tudo junto num único bosque. Era de enlouquecer. Denise voava de um lado para o outro, mas agora o seu espaço de vôo reduzira sensivelmente para menos de trinta metros de diâmetro. Percebeu que o esguicho de sua mangueira diminuíra de força. Suas lentes, que podiam flutuar à sua frente, faziam brotar chamas nas árvores, que recuavam, raramente esbarrando umas nas outras, e apagavam o fogo. Até a árvore multicolorida surgiu à distância, mas aparentemente Gnatalli não queria arriscá-la num ataque.
    E então o cerco se fechou com sequóias, eucaliptos e os largos e poderosos baobás. Seres cujo peso era tal que o enfraquecido fluxo energético já não parecia incomodar.
    Iniciou-se o avanço final — mesmo com algumas chamas.
    Denise tirou rapidamente um microfone cintado de seu cinturão Batman e, prendendo-o em torno do queixo, exclamou:
    — Parem! Vocês, árvores! Eu disse parem! Quero que vocês me ouçam!
    Gnatalli surgiu flutuando atrás de um dos baobás e franziu o sobrolho, espantado. A voz da menina, amplificada pelo microfone, ressoava poderosa pelo bosque, e cheia de autoridade:
    — Sei que vocês vêem e escutam, embora não sejam seres humanos. Pois bem, ouçam-me e pensem, se podem! Vocês estão atacando a pessoa errada! Eu não sou inimiga de vocês! Ele, sim, é seu inimigo!
    Apontou para Gnatalli.
    — Ele, esse homem que as dirige como soldadas-escravas! Que as usa apenas para os objetivos dele, que só interessam a ele e seus ajudantes. Ele, que as manipulou, que as transformou em aberrações da natureza! Que esperam vocês dele? Serão sempre suas escravas, mesmo se conseguirem vencer a guerra que ele quer desencadear! Ou não sabem que a humanidade, quando souber do que vocês são capazes, virá atacá-las com todas as forças da civilização? E se isso não ocorrer já, é ele quem as conduzirá à destruição, levando-as a enfrentar armas poderosíssimas! Mais poderosas do que as minhas, pois eu sou uma pessoa só. E depois? Ele não triunfará e, mesmo que triunfasse, livrar-se-ia de vocês tão logo tivesse certeza de manter o poder sem a sua ajuda. Ele não as ama! Ele não ama nem os de sua espécie, como vocês mesmas tiveram agora a prova!
    O italiano riu em gargalhadas sinistras. O cerco se apertara mais e mais enquanto a pequena discursava; porém ocorrera uma sutil modificação no comportamento das árvores. A lentidão com que elas se aproximavam não se justificava pela simples vibração do relógio, pois Denise desligara as outras armas.
    Quando ela parou de falar, todas as árvores pararam de avançar. Gnatalli, ansioso pelo ataque final, estacou no ar, com a impaciência estampada no rosto; sua auto-confiança era tanta que ele custou a reparar nos galhos que desciam em sua direção. E quando percebeu já era tarde.
    Denise virou o rosto para não ver; mas não podia fechar a audição.


EPÍLOGO


CONTINUIDADE


    Era um gabinete de luxo. Muito dinheiro fôra carreado pelo hotel e pelos diversos produtos relacionados às árvores: postais, hologramas, diapositivos, miniaturas, prospectos, conferências. Agora, tudo acabara.
    A representante da Inteligência Internacional sentia repugnância íntima por utilizar o escritório de seu inimigo vencido, mas, por força das circunstâncias, lá estava ela. Era o local mais adequado, enquanto durasse a sua missão de interventora; não havia razão lógica ou racional para escolher outro lugar.
    Fôra necessária a autoridade da Inteligência Internacional para impedir a destruição do Bosque de Luxo pela polícia azulariana, que seguia ordens da Prefeitura. Agora Denise era a interventora da região e a mais alta autoridade abaixo do Conselho Planetário de Éden, e este mesmo não iria contrariar a Inteligência Internacional.
    — Jamais esquecerei a morte de Gnatalli, o grito que ele deu ao ser esmagado — disse ela a Wagner.
    — Eu teria pesadelos até o fim dos meus dias, se tivesse passado por uma tal experiência.
    — Espero que isso não me aconteça. Não sou tão forte assim, e todos esses acontecimentos me abalaram.
    — Eu ainda não entendo o que está acontecendo com essas árvores...
    Denise riu, sem muito gosto.
    — Quantas vezes já lhe contei?
    — Diversas, Denise; mas não há meio de acreditar ou entender.
    Denise suspirou e recostou-se na poltrona, fitando cordialmente o repórter:
    — Como entender isso? A caixa preta, ao ser esmagada, auto-volatilizou-se. O que quer que fosse que dava animação às árvores, extinguiu-se. Eu me senti na posição de Alice, no País das Maravilhas, vendo o absurdo se desenrolar à minha volta, sem a menor cerimônia. As árvores moveram-se em sarabanda procurando os buracos de onde tinham saído, e foram-se enraizando como puderam. Claro que umas entraram em vagas deixadas por outras, foi uma confusão completa. Depois de tudo, creio que só não desmaiei porque fui vacinada contra desmaios.
     — Existe algum perigo ou mal contra o qual você não foi vacinada?
    — Pesadelos — respondeu Denise, lembrando-se do sonho profético que tivera. — Por isso preocupou-me aquela sua observação.
    — Não há de ser nada. Mas, e a descoloração?
    — É, isso também é incrível. Estão voltando a ser plantas normais. É mais uma razão para poupá-las, impedindo esse vândalo do Rimíni.
...    Queria referir-se ao prefeito, que estava doido para destruir “a terrível ameaça do bosque de plantas assassinas”.
    — E depois, Denise? Quando encerrar sua missão aqui, o que você vai fazer da sua vida?
    Ela sorriu.
    — Mas por quê? Continua a ser agente secreta, é claro.
    — Pelo resto da vida? E a sua vida... pessoal, se assim posso dizer?
    Denise ia responder quando a porta se abriu. Ela nunca trancava a porta.
    Entraram Hortência e Iolanda. A estudante brasileira ficara fã de Denise, bem assim como a equatoriana. A primeira observou:
    — Nós estamos nos despedindo. Loreana já está fechando as malas. Eu vou na mesma astronave delas, amanhã.
     Denise respondeu: — Quase todos já foram. Sentirei saudades do Jairo, um rapaz tão simpático. E do Jed com a família. Gosto muito de crianças...
    — Eu também. Mas peguei o endereço de todo mundo, até daquele antipático do Oliver. Afinal, nós compartilhamos uma aventura e tanto! Que eu quero contar aos meus filhos, no futuro... e você, Denise, afinal de contas é minha conterrânea!
    — É isso mesmo, Denise — acrescentou Wagner. — Você não fala muito na sua nacionalidade...
    — Eu sou uma agente secreta. Por força das circunstâncias revelei-me muito aqui, mas não poderia tê-lo feito. Nem sei o que me espera, apesar do sucesso obtido.
    — O que! Ninguém teria feito mais do que você fez! Nem melhor!
    Denise fechou sua expressão.
    — Não sei.
    Hortência disse: — O que mais me admira... é como você pôde dominar as árvores com retórica. Que personalidade magnética você deve ter!
    — Não sei se é isso... consta de minha árvore genealógica que eu descendo, muito de longe, de um piaga.
    — Um o que? — espantou-se Iolanda.
    — Piaga. Isto é... um pagé. Um índio.
    Iolanda riu-se.
    — Feiticeira! É o que você é: uma bruxa eletrônica!
    Denise nada disse. Tentava voltar a ser a Esfinge. Hortência observou:
    — Quando eu penso em como mamãe e eu tivemos medo quando nos aprisionaram...
    — Aqueles robôs, de repente invadindo os quartos. Eu estava caída no chão, lembra? Creio que não contei ao Wagner ainda...
    — Contou, sim. Entrevistei todo mundo. Você viu o robô pouco antes de adormecer com o gás anestésico.
    — Essa coisa deixa uma perturbação qualquer na memória. Então eu já contei?
    — Já, sim. Mas essa perda de memória passa logo. Afinal eles não conseguiram “tratar” ninguém em profundidade.
    Realmente, a polícia tinha conseguido localizar a chamada. Ao mesmo tempo, o radarlaser da polícia captou as reverberações de energia provenientes da batalha que se desenrolava no Bosque de Luxo. Assim, a inspetora de plantão houvera por bem enviar dois helicarros ao local para ver o que estava ocorrendo, já que o visofone do hotel também não atendia.
    Chegada a polícia em poucos minutos, estabeleceu-se contato inicialmente com os três fugitivos e em seguida o hotel foi invadido. Não houve grande resistência ou dificuldade para deter os ajudantes de Gnatalli, não mais do que quatro, pois a criadagem de modo geral era inocente e também fôra narcotizada.
    Como resultado disso, Matsumoto regressou à Inglaterra como herói e cheio de gratidão para com Denise. Uma promoção o esperava. Denise, porém, não contava muito com isso.
    A sós de novo com Wagner, ela encarou-o com o rosto impassível de sempre e perguntou:
    — Suponho que a sua carreira também obteve um impulso. Parece que todos os hóspedes lucraram: os cantores, com a publicidade; o escritor, que obteve material para um livro; a Iolanda, com matéria para sua tese, que será a mais original de todas. Mas especialmente você...
    — Não estou pensando muito nisso, ainda que eu venha a me tornar, graças a tudo isso, o repórter mais bem pago da Galáxia. Mas você não me respondeu. Perguntei o que você fará da sua vida.
    — Por que? O pior já passou — Denise mostrou-se levemente sarcástica.
    — Você nunca sai com um homem? Há coisas muito bonitas para ver em Éden. Especialmente certas paisagens iluminadas pelo luar tríplice...
    — Quanto tempo ficará aqui, Wagner?
    — Não é isso que importa. Sou um repórter independente como você sabe. Quero saber se você pretende ser uma espiã pelo resto de sua vida ou se pensa em constituir família e ser feliz como as outras moças.
    — A felicidade não está necessariamente vinculada ao casamento, Wagner.
    — A sua opção é o celibato?
    — Opção? Nunca disse isso. Por incrível que pareça, o casamento não é incompatível com a minha profissão. Mas não penso em deixá-la. O universo, Wagner, tem perigos incompreensíveis e é preciso que haja pessoas treinadas para localizá-los. Para isso existe a Inteligência Internacional. Mas você está indo depressa demais. Desde que eu o conheci, vejo-o sempre correndo. Uma vez na vida, vá mais devagar. — Aqui, Denise finalmente sorriu sem se reprimir. — Vamos dar um passeio.
    


    
 

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