Certas formas de arte buscam a perfeição. Ao ver certas esculturas gregas ou ler certos contos de Maupassant a gente vê ali um cristal, uma forma definitiva e irretocável. A palavra “perfeição” é questionável do ponto de vista filosófico, mas pode ser aceita para situar nossa reação emocional diante de coisas assim. Elas não podem ser perfeitas, por definição. Mas bem que parecem. Mais difícil é você alcançar a perfeição em algo móvel, algo fluido, algo que precisa ser recriado a cada vez que acontece: um pianista tocando Chopin, uma bailarina executando uma coreografia, um ator fazendo ao vivo o monólogo de Hamlet ou (mais difícil ainda) o monólogo de Lucky em “Esperando Godot”. Não importa quantas vezes o artista já tenha feito aquilo certo. Quando começa a fazer de novo, ele está em pleno mergulho no Aqui-e-Agora, não pode errar, e o fato de ter feito certo antes não é nenhuma garantia de que vai acertar agora (a não ser a convicção de que “posso acertar, sim, já acertei”). Como dizia o poeta Gil, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.
Lembram-se de Diego Hypólito nas Olimpíadas? Pois é, o fato de você ter atingido a perfeição mil vezes nos treinos não é garantia suficiente (está provado) de que vai atingi-la de novo na hora do vamos-ver. Quem esculpe a Vênus de Milo uma vez, quem escreve “Ouvir estrelas” ou “A máquina do mundo” uma vez, não precisa fazer isso de novo no mês que vem. A perfeição do gesto resultou na perfeição do objeto, e este não pode ser cancelado por qualquer erro futuro. No caso das artes da performance (e aqui, curiosamente, o esporte e a arte se fundem numa coisa só), é preciso, sim, ser perfeito de novo, e de novo, e de novo...
Um repentista estava numa cantoria de pé-de-parede (Ivanildo Vila Nova me contou esta) e o colega lhe fez uma crítica. Ele respondeu com esta sextilha antológica: “Meu amigo e camarada / não faça isto com mim... / Colega de profissão / com outro não faz assim! / Pelo cálice de amargura / que Jesus Cristo bimbim!” Parou de rir, amigo? Vou explicar. Ele planejou mentalmente a sextilha para terminar dizendo: “... que Jesus Cristo bebeu”. Quando começou a cantá-la, viu que não podia dizer: “... não faça isto com eu...”, talvez tenha até pensado em dizer “...comigo...”, mas viu que também não dava, e a boca resolveu a hesitação dizendo “com mim”. Tudo isso, colegas, se decide na fração de segundo em que a boca escolhe a palavra a dizer. Depois de ter dito este fatídico “mim”, ele fez dois versos intermediários em que conseguiu encaixar uma rima correta (“assim”), mas aí, quando chegou no verso pronto para o final... não encaixou. Deu-se a catástrofe.
Foi assim com Diego Hypólito. Fez tudo certo, a corrida, a cambalhota, a rolada no chão, o duplo-mortal-carpado... Mas no meio do processo houve algum vacilo, hesitação, esquecimento. Em vez de finalizar o verso com os dois pés no tablado e os dois braços erguidos... Bimbim.