Apenas Memórias, de Cunha e Silva Filho

              Francisco Venceslau dos Santos ( Prof. Adjunto de Teoria da Literatura  da UERJ, aposentado,   e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia)

Logo de saída, o autor demonstra conhecer o gênero  memórias, mostrando uma coerência ética na narrativa de suas experiências.  Uma visão  de passagens da sua vida  e uma visão global do eu da escrita com seus desejos, sentimentos, ações,  numa duração temporal. A matéria-prima da obra  é a lembrança narrada  de  uma  trajetória individual que articula  os anos vividos. Desenvolve-se  em dois planos: o linear e o vertical, com os acréscimos que se superpõem ao longo de sua construção.

Apenas memória conta  a experiência de vida do autor, desde a infância , em Amarante, Piauí, à maturidade na grande metrópole.  Inicia-se  na metade dos anos 1940, com foco mais específico nos anos 1950, ,em Teresina, e prossegue nas  décadas seguintes, no Rio de Janeiro. Centrada  no eu e  nos seus contemporâneos, o relato  de formação  incorpora cenas e a cultura  do quotidiano na Teresina dos anos 1950: a influência do cinema, a vivência no curso primário, a magia dos estudos no ginásio ,  as reminiscências durante o Curso Científico no Liceu Piauiense,  os estudos voltados para a aprendizagem de línguas, a convivência com os professores A. Tito Filho,  os irmãos Domício,  e outros mestres.

Na primeira parte,  à medida que avança na escrita de si, o narrador empreende  uma autointerpretação da aprendizagem, buscando motivos para êxitos e eventuais empecilhos na caminhada : os índices literários,  notações   de autoanálise,  e autointerpretações dos eventos externos do mundo vivido constituem traços do livro. Percorre a escrita  a intimidade intelectual/afetiva entre o filho  responsável pelas recordações    e  o pai Cunha e Silva,   persona social,  professor reconhecido,  respeitável, que foi diretor do Liceu Piauiense.

Esta troca de experiências aparece nitidamente em Apenas memorias na figura do “Quarto Biblioteca”  que representa as trocas intelectuais entre os dois, a vida real e a vida literária, a convivência mental/ afetiva,  a herança também no plano da alma. A  partir desta figura  da origem, Cunha e Silva Filho resgata toda uma memória bibliográfica daqueles anos, registro concreto da geração estudiosa da segunda metade do século xx. E presentifica retratos  de docentes,  traços da memória coletiva. Uma espécie de genealogia da amizade  de uma época.

Também traz para o presente , a paisagem da vida da rua Arlindo Nogueira, na capital do Piaui, nos meados dos anos 1950. Ele,  flaneur,  olhava as vendedoras de rua,  vestidas em seus trajes brancos, e as “ meninas mais lindas de Teresina” que passavam em frente à janela da casa.

A narrativa avança com a migração para a metrópole do Sudeste, em 1964. O percurso se parece com  o itinerário  de um protagonista de romance, mas os eventos ocorrem no plano da realidade.: “ não sabia quantas coisas boas e ruins iria encontrar no Rio de Janeiro. Alea jacta est.” (p.  87).  “O coração dominado pelas incertezas futuras” , o protagonista luta pela aprendizagem, por um lugar para morar, e por um emprego. Nesta nova etapa, enfrenta  alguns obstáculos: a doença,  o tratamento hospitalar, a falta de recursos, a solidão, e começa a derrubar as barreiras com a descoberta de novos espaços como o Restaurante do Calabouço, a Casa do Estudante Secundarista do Brasil. E principalmente  mobiliza  a  sua vontade de  enfrentar as vicissitudes da existência.

Passa por empregos em bancos, inclusive estrangeiros,  devido a sua performance e fluência em inglês. A respeito deste tema, elabora reflexões  bastante interessantes que pontuam o volume. O ensino de língua e literatura inglesa constituem  o foco de intensa análise, revelada ao longo desta    narrativa memorialística. 

Outra característica  marcante do livro  é o cultivo  da intimidade e da reflexão intelectual. Nele,  a memória trava um diálogo com a literatura, o autor tece considerações  sobre a paisagem : “Só depois  de alguns dias. Indo ao centro do Rio, fui mudando de opinião com referência à cidade que esperava encontrar. [...] pude sentir todo o encanto e charme dessa  [...]” (p. 94). O atento  memorialista  dedica todo um capítulo ao subúrbio carioca.

Como já fiz referência, a leitura   deixa transparecer, em alguns trechos, a identificação entre a  vida e a ficção literária, como na noite em que permaneceu na Central do Brasil: “zona cinzenta de vida noturna pecaminosa da baixa malandragem e dos perigos espreitando em cada canto das ruas, bares e hotelecos, como se fossem cenas tornadas realidades saídas dos contos de João Antonio. Ficaria sentado num dos batentes de uma das entradas daquela estação ferroviária” (p. 109).

Para Silva Filho, a Universidade é o correlato da vida.  É neste sentido  que o texto  pode ser considerado parente  do romance de formação. Daí,  a presença do mundo vivido: bibliotecas públicas,  livros, escritores , ambientes de estudos, as tensões na vida acadêmica.   Em um final de ano letivo no Curso de Letras, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, o autor se recolhe num bar próximo,  e diz: “Me senti um personagem daquele conto comovente e trágico, ´The outcasts of Poker Flat´ (1869) do escritor americano Bret Harte (1836-1902). Ou, talvez, um personagem trágico shakesperiano, um Hamlet atormentado com as mesquinharias humanas”  (p. 194).

Esta obra de Francisco Cunha e Silva   constitui um documento cultural importante para a memória coletiva nos anos de 1960, 1970 e parte dos anos 1980. Os intelectuais imigrantes  no Rio de Janeiro  costumavam estudar nos centros de sociabilidade , fortes  na época: Biblioteca Demonstrativa Castro Alves,  Biblioteca Nacional,  bibliotecas da  FNFi, da Maison de France, do Ministério da Fazenda,  e até mesmo da Casa do Estudante Universitário (CEU), na rua Visconde Maranguape, 26, retratados aqui

De outro ângulo, o escritor  põe em  Apenas memórias, as personagens  que conheceu na trajetória:  amizades intelectuais, pessoas de seu relacionamento; e  indaga sobre o destino de algumas: moradores de casas de estudantes, professores famosos e intelectuais que ficaram esquecidos na poeira do tempo.  Descreve cenas nos empregos, encontros com funcionários comuns também  levados pela vassoura   dos anos. 

Na parte final, percebe-se o  aumento  da carga de sensibilidade, com a escrita de notações líricas  sobre  a perda da inocência, de reminiscências do  pai  e da mãe, e crônicas bibliográficas  de  corte poético. Este livro  enriquece a vida de  Silva Filho,  que percorreu uma verdadeira via crucis, porém teve a felicidade de casar com uma mulher admirável,  conquistar altos títulos acadêmicos, ter filhos,  e construir um bonito   convívio humano. Engrandece também  a existência de nós contemporâneos  por estarmos ali representados,  e sobretudo a vida literária brasileira e piauiense.