Cunha e Silva Filho


Após a minha admissão ao Diretório de engenharia da PUC, um mês depois talvez, Arsênio contratou os serviços de uma jovem senhora pra cuidar especificamente da parte datilográfica dos ofícios, circulares e outros textos que movimentavam a vida naquele pequeno escritório. Não me lembro infelizmente do nome dela. Só sei ter sido ela uma pessoa amiga, afável, prestativa, que me ajudou muito em dar conta das tarefas que nos eram solicitadas a fazer em tempo certo e por vezes urgente. Arsênio, segundo assinalei, era um presidente muito exigente e não era de brincar no serviço da sua gestão.
Quase sempre almoçava sozinho no restaurante dos estudantes da PUC. Em seguida, retornava ao batente no Diretório no qual cumpria expediente de manhã até a tarde.
Uma vez, passei mal de saúde a ponto de a senhoria do apartamento onde eu alugara duas vagas, uma para mim e a outra pro Winston.Era uma mal-estar, uma fraqueza que não havia sentido antes. A senhorinha, certamente preocupada comigo, me preparou uma gemada, que tomei e, depois, fui deitar-me. O marido dela, um senhor ainda jovem, muito magro (dizia-se que era tuberculoso) falando sobre o meu estado de saúde, me aconselhou um outro lugar pra morar. Seria na casa de uma tia dele que morava no bairro da Zona Norte, Vila Isabel. Ela, da mesma forma, alugava vagas pra jovens e adultos.
Fui até lá conversar com a tia dele, uma senhora idosa, meio mulata, que me lembrava, pela indumentária, uma cigana. Ela morava com uma filha, uma moça muito bonita. A casa era grande e velha. Para lá fui com o meu irmão Winston.
    Continuava indo pra PUC a fim de atender ao presidente do Diretório. O meu amigo Joaquim Baptista, sempre alegre e solícito na seção de reprografia. Foi quase um pai pra mim.
Aquele mal-estar que sentira antes já dava outros sinais. Sentia-me mal, um pouco inchado, pálido e fraco. Comecei a ter nojo de uma comida servida por um senhora que trabalhava na PUC em serviço humilde. Era a esposa de um dos vigias, que morava numa casinha dentro do campus, bem perto daquele conjunto de casas, uma das quais a do Diretório. Quando ia almoçar lá, sentia nojo da comida. A outra alternativa seria o restaurante dos estudantes, onde a comida era melhor, porém mais cara e o dinheiro era curto.
   Estava na PUC uns quatro meses, se tanto. A doença piorava. Sentia vontade de comer algo inusitado: vontade de comer barro, aproveitando-me de paredes com alguma pequena abertura de pintura descascada exibindo o barro do tijolo. Fazia isso várias vezes contra a minha vontade e as razões da lógica. Era um impulso irrefreável.
Não estava realmente bem, precisava de ajuda, de serviços médicos. Foi quando relatei esta situação ao meu irmão lhe pedi que falasse com o Olavo. Já mal aguentava trabalhar. Passei a faltar ao trabalho.
    O deputado Sousa Santos tinha sido informado do meu estado de saúde através do seu secretário. O Olavo falara com meu irmão que me iam arranjar uma internação no Hospital Pedro Ernesto, na Rua Vinte e oito de Setembro, Vila Isabel, pertinho da vaga em que morava.
Fui com o Winston ao Hospital Pedro Ernesto. Nos dirigimos pro Centro de Hematologia, onde seria recebido pelo Diretor, o Dr. Hildebrando MonteiroMarinho, um médico renomado, que me recebeu bem, me examinou cuidadosamente e concluiu logo pela minha i mediata internação pra tratamento de anemia.
  Dr. Hildebrando tinha um defeito físico, se não me engano, numa das pernas, pois andava descompensado, certamente por ter uma das pernas menor do que a outra. Era um médico notável como, com o passar dos dias em que estive internado, quase uns dois meses, constatei. Em dias marcados, inspecionava criteriosamente todas as duas enfermarias (uma pra crianças e mulheres, outra pra adultos de pacientes com anemia e sobretudo com leucemia.
    Levei pro hospital os meus pertences: uma mala com roupas, o meu único terno, algumas camisas, cuecas, aparelho de barbear, escova de cabelo, escova de dente, pasta de pasta de dente, sabonete, alguns livros e meus documentos). Na enfermaria, iria encontrar pessoas inesquecíveis, como o médico que cuidou de mim, o Dr. Sérgio Franco, jovem médico, alto, forte, de boa aparência, simpático, afetuoso, desses médicos que hoje e dia estão rareando.Outra pessoa que não posso jamais esquecer era um das enfermeiras, que tinha plantão à noite. Exemplar profissional da enfermagem. Atenciosa, meiga, bonita, fiquei encantado com ela. Até fizemos amizade depois de algum tempo de internação.
    A minha enfermaria ficava na parte central do segundo andar do hospital, a qual dava pra a Rua 28 de Setembro, com a sua dupla pista para os veículos em constante movimento de ir e vir. Da sacada ampla, via o movimento das pessoas e dos carros.Na enfermaria havia sempre doentes em seus leitos esperando pela cura de seus males. Numa enfermaria contígua, havia crianças, muitas delas com leucemia e muitas delas vi morrer diante dos olhos dos médicos e das enfermeiras. Eram cenas tristes e mesmo trágicas. Nunca esqueci uma linda menina de uns doze anos, alourado, clarinha que vi morrer. Seu corpinho frágil, imóvel, muito pálido, foi retirado por funcionários e encaminhado para outro setor do hospital. Pobres crianças mortas na flor dos anos da infância e ou princípio da adolescência!
   Havia também alegrias de pacientes que lá se internaram e vieram pra minha enfermaria. Um senhor cinquentão muito conversador, amulatado, que usava óculos e era meio calvo. Passou a fazer parte dos meus conhecidos de enfermaria. Havia outro paciente que parecia um nordestino Estava bem doente e veio a falecer depois.Não suportou a leucemia.
   Nos dias de visitas, pessoas das famílias dos doentes vinham visitá-los. Eu não tinha ninguém que me viesse visitar. Ficava sozinho deitado no meu leito, perto da seção da enfermaria.Meu irmão Winston, de duas em duas semanas, vinha me ver e aproveitava pra almoçar. Isso se fazia às escondidas, já que o hospital só fornecia refeições aos doentes.
Poucos dias depois da minha internação, recebi uma visita alegre: a da minha colega de trabalho do Diretório Acadêmico de engenharia da PUC. Sua missão fora me entregar uma quantia em dinheiro como indenização que o presidente do Diretório houve por bem enviar pra mim. Era uma boa quantia, que me deixou bem alegre, porquanto dela iria precisar pra pagar uma vaga onde fosse morar quando tivesse alta hospitalar.
   Meu irmão Winston, que tinha uma vaga na velha casa da senhora idosa de Vila da Penha, como n ao tinha arranjado nenhum emprego, pediu AA ela que ficasse morando numa canto da casa e como pagamento a ajudaria em alguma coisa. Assim foi combinado. Entretanto, não demorou muito e a senhora idosa peiu que ele deixasse a casa. Winston, então, ficar no olho da rua, sem saber onde se alojar. Começou uma peregrinação na rua, dormiu até em banco de trem da Central do Brasil. Os parentes não o queriam em suas casas. Sofreu muito, inclusive com o risco de ser vítima de algum bandido pelas ruas do Rio de Janeiro `noite e nas madrugadas,.
  Suas idas ao hospital, mesmo em dias em que não eram de visita, se tornaram recorrentes.. Ele, malandramente, conseguia entrar no hospital e vinha até a mim, almoçava às ocultas e me pedia dinheiro.Lhe disse que não mais lhe podia ajudar financeiramente. O dinheiro da indenização estava minguando. Que le tratasse de voltar pro Piauí, já que com parentes não podia contar
  .Um primo meu, sabendo que recebera uma indenização, me veio pedir empréstimo. Eu o atendi. Ora, pensei comigo: até doente no hospital alguém me aparece pra pedir dinheiro emprestado Pra me visitar como parente, não vinham. Era demais.
  Meu pai tinha uma filha da primeira mulher com quem se casou em 1927 no Rio de Janeiro. Ao chegar ao Rio, me foi apresentada, inclusive fui à casa dela com o Wellington, meu primo, aquele mesmo que me ajudou na minha chegada ao  Aeroporto Santos Dumont. Nélia era seu nome, morava com a mãe no Centro entro do Rio, na Rua do Senado. Mercedes era o nome desta primeira mulher de meu pai.
  Nélia era uma moça ainda jovem, alourada, de tez clara, muito espirituosa, brincalhona. Trabalhava, então, no laboratório Silva Araújo.Estava noiva de um diretor de firma, que vim a conhecer. Estive na festa elegante do seu casamento, realizada num apartamento em Botafogo. Ate´ me fotografaram. A foto, anos depois, me foi mostrada pela minha meia irmã.Eu estava ainda com os meus dezoito anos, em plena mocidade.
  O esposo de Nélia, meu cunhado, era um moço de ótima aparência, educado, muito claro, de estatura média, sempre envergando um terno elegante, talvez fosse até mais novo do que a minha meia irmã carioca.
  Na festa, estava com os meus primos o Wellington, que sempre foi amigo de Nélia e o seu irmão, Weyden, Este, no breve tempo em que morei com o tio Zequinha, viera também pro Rio a fim de trabalhar e talvez estudar Sobre ele ainda me reportarei nestas remembranças.
 Após o casamento, Nélia foi morar primeiro em Vila Isabel num apartamento pequeno mas bem confortável Pouco tempo depois de casada, me convidou a passar uns dias com ela. Fui com prazer e fizemos alguma amizade. Agora, me recordo, seu esposo tinha por nome Ernani. Não sei se ainda está vivo. Não o vejo há muito tempo. Esta meia irmã faleceu tempos atrás. Deixou dois filhos. Eram três, mas o primeiro faleceu bem jovem, chamava-se também Ernani, nome do pai. Eu o vi no seu primeiro dia de nascimento, numa clínica na Rua Riachuelo, Centro da cidade. Tornou-se um jovem de ótima aparência. Era baixo e muito educado. Antes de falecer trabalhava num Banco. Acho que o SAFRA, no Centro da cidade.

  A última vez que tive contato com  minha meia irmã foi em 1985, quando meu pai e minha mãe  passaram uns dias comigo no Rio - espécie de despedida, uma vez que papai  estivera  de passagem  no Rio em 1968 -, tempo em que eu morava num apartamento na Vila da Penha. Meu pai e minha mãe, eu e meus filhos, já adolescentes, fomos à nova residência de Nélia, no bairro de Lins, Zona Norte carioca. A boa imagem que levei dela, datava do dis em que com ela convivi em Vila Isabel e a lembrança mais grata foi esta: um dia, chegando de algum lugar, a encontrei passando a minha roupa com cuidados de uma boa irmã. Senti vontade de chorar com aquela cena comovente. (Continua)