Aparência
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 29/10/2012, às 09H59
[Paulo Ghiraldelli jr.]
Uma boa parte das mulheres adora uma maquiagem. “Produzir-se”, isto é, sair embelezada por adornos de todo tipo é algo que só cresce atualmente entre as mulheres e, agora, também entre os homens. Realmente é maravilhoso ver pessoas se apresentando de modo elegante, sexy, provocante, perfumado, colorido e chique. No entanto, ainda assim, não raro usamos de velhos jargões e vocabulários carcomidos que, paradoxalmente, nos ajudam a falar de nossa aparência com desdém, negativamente. Utilizamos da dualidade “interior” e “exterior” e dizemos que a “nossa realidade” ou a “nossa verdade” está naquilo que só apresentamos na intimidade, enquanto que o nosso comportamento e nossa aparência é, em grande parte, ilusão que nós mesmos produzimos. Isso quando não damos ao “exterior” uma conotação ainda mais negativa, dizendo que se trata do que é falso. Eis o ditado popular para resumir esse nosso modo de julgar as coisas: “bela viola por fora, pão bolorento por dentro”.
É um tanto esquisito que em uma época em que tudo nos leve a cuidar do corpo e de adereços, o nosso vocabulário moral e avaliativo ainda se mantenha prenhe de palavras propícias para o descaso ao corporal.
Essa maneira de valorar a nós mesmos vem de longe. Dividimo-nos em “interior” e “exterior”, damos ao primeiro termo a companhia de palavras que se referem ao psíquico ou espiritual e ao segundo termo a proximidade de palavras que se referem ao físico e material. Na sequência, consideramos tudo que é bom e verdadeiro como residindo do lado do primeiro e tudo que é mal e falso como do reino do segundo. Notando isso, podemos entender a razão pela qual há sucesso nos programas de TV que falam de sexo ou mostram o sexo, principalmente os de estilo BBB, os reality shows. O sexo é algo da intimidade e, então, suponhamos que é a verdade máxima de cada um de nós. Caso pudermos olhar outros na intimidade, presumimos, saberemos não só “quem eles são de verdade”, mas também saberemos “o que nós somos de verdade”. As coisas não são atrativas porque estão escondidas, assim, de modo banal. Não! Há uma razão para a nossa curiosidade: estamos querendo a verdade do homem, de nós mesmos, e achamos que não vamos encontrar senão no que é do campo interno, o que só aparece na intimidade. Não à toa o que é da ordem da fofoca, contado em pedidos de segredo, é o que nos interessa. Pois ali estaria a verdade e, enfim, o que vale a pena saber.
É fácil entender isso. Mas é menos fácil saber por que somos assim. Ou melhor, como viemos a pensar assim.
É claro que foi por obra da adoção do cristianismo, que é uma religião tipicamente subjetiva, que viemos a pensar assim, dessa maneira. A religião greco-romana era objetiva. Os deuses e, portanto, a verdade e o bem, se apresentavam aos homens de modo objetivo, por exemplo, nos Jogos Olímpicos ou nas manifestações de elementos da natureza. Mas os cristãos vieram a se relacionar com suas divindades por meio de uma relação nada objetiva, completamente subjetiva: a oração, principalmente a oração com a alma pura, ou seja, com alma confessa dos pecados e arrependida pela dor da culpa. Esse estado interior de graça é que permitiria ao homem se por diante de sua divindade para entabular uma conversa. Essa relação sempre foi pensada como uma relação particular, íntima mesmo, até secreta. O Deus judaico-cristão se apresentou como pai, diferente dos deuses greco-romanos, que se mostravam imortais e nada tinham de parentesco com os mortais. Ora, o cristão veio a conversar com a sua divindade, e de modo especial, como quem faz uma conversa na intimidade do lar, com um pai bondoso, acolhedor e compreensivo.
Mas não foi só o cristianismo que contribuiu para a interiorização da divindade e, portanto, para a localização no “interior” do que é a verdade e o bem. Também as filosofias helenistas não clássicas andaram por trilhas de cultivo da subjetividade de um modo que os filósofos clássicos não arriscariam. A filosofia estóica, com Epiteto, contribuiu muito para isso.
Os estóicos tinham investigações sobre o mundo exterior, mas a filosofia propriamente dita não era para tal e, sim, para que se pudesse viver em tranquilidade. A filosofia,em sua essência, era não o que é da ordem do conhecimento, que tem a ver com o saber sobre coisas exteriores, e sim com aquilo que é da ordem interior, em especial a vontade. A filosofia deveria nos fazer levar uma vida sem dor e, então, a vontade, em nosso interior, é que seria o elemento que teríamos de aprender a dirigir. Epitecto falava, até mesmo, de como que a divindade habitaria o interior do homem, e que era ali, na capacidade de dirigir a vontade pela vontade que teríamos de desempenhar a tarefa propriamente filosófica. O que está dentro do homem seria a própria divindade e a alma do homem, nesse caso, poderia ser tomada como um fragmento da divindade. Preocupar-se com o exterior, com o que não se controla, seria uma grande bobagem. No entanto, gastar energia para que a vontade pudesse dominar a vontade, aí sim residiria o que haveria de divino em nós – este era o escopo da filosofia.
Esse tipo de filosofia conviveu com o cristianismo levado adiante por Paulo, e contribuiu para o clima de valorização do subjetivo e da intimidade que caracterizariam a era cristã, na qual ainda estamos imersos. Nós somos os que podemos desconfiar de tudo, mas que ainda achamos que o que está fora de nós não contém aquilo que é o melhor. Deus é amor, dizem os cristãos, e encontramos o amor dentro de nós. O amor nosso está longe de ser uma divindade exterior, como Eros ou o Cupido, ele é algo divino, sim, mas que se manifesta como um sentimento dentro de nós.
Nossa época de valorização da beleza, do que é maquiagem, operação plástica e toda a modificação com a aparência, terá de mudar de vocabulário. Teremos de harmonizar esse nosso modo de viver com uma consciência ainda arcaica que teima em funcionar segundo uma linguagem que bota fé na dicotomia corpo-alma, positivizando somente o segundo lado. Isso nos induz a fazer coisas completamente equivocadas. Deixamos de poder ficar perspicazes para achar o que é verdadeiro e bom se, de antemão, só podemos localizá-los no que chamamos de “interior”. Ora, se o bom e o verdadeiro estão já no “interior”, vamos ter de acha-lo aí, não vamos procurar em outro lugar, e vamos então não achar coisa alguma porque iremos, sim, forçar que algo apareça no “interior” de modo a reconhecê-los como o que é o verdadeiro e o bom. Até a beleza, tipicamente exterior, acaba assim sendo adjetivada de modo estranho: falamos de pessoas bonitas e, em seguida, temos de acrescentar que se trata de uma pessoa “bonita por dentro e por fora”. Ora, e se não é assim, então acreditamos que não poderíamos falar em beleza, em uma “verdadeira beleza”. Ora bolas, com esse vocabulário não vamos pensar bem, ao contrário, só vamos nos complicar e nos equivocar.
Seria interessante que não déssemos tanta ênfase ao vocabulário dual e mais interessante ainda que não tomássemos a valoração dessas partes como temos feito até então, utilizando o nosso vocabulário envelhecido. Pois aí sim teríamos condição de falar de um modo mais harmonioso com o que estamos querendo viver nos dias de hoje, em que fazemos questão de dar créditos para a nossa aparência. Está na hora de aposentar a ideia de que a aparência é o reino da falsidade. Para fazermos valer tal aposentadoria, temos antes de tudo de criar um vocabulário diferente. Temos de conversar usando palavras que não teimem em carregar de valor negativo o “aparente”, o “corporal”, “o corpo”, as práticas físicas, a beleza e toda a indústria que favorece a exibição corporal, a moda e, enfim, uma série de elementos que amamos ver e, no entanto, ideologicamente, condenamos. Deveríamos tomar a “sociedade do espetáculo” como uma expressão positiva.
2012 © Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ