Aos que se desiludiram com a literatura
Em: 03/09/2019, às 20H07
[Cunha e Silva Filho]
É com tristeza que, de quando em quando, vejo um amigo me dizer que um colega deixou a literatura de lado; foi cuidar de outras coisas, de jardins, de rosa e da vida, que é breve e, como a maré, não espera por ninguém segundo um adágio inglês. Um vez, li, numa história sintética da literatura norte-americana, que uma grande poeta de lá, ao final da vida, lamentou-se mais ou menos nestes termos: “ Oh, como perdi tanto de minha vida pessoal por causa da literatura! Por que não dei mais valor à vida, à minha vida, que é muito mais importante do que a literatura?”
Na história da literatura mundial, ode, por vezes, haveer duas situações melancólicas ou trágica: um escritor, amante dos livros e da escrita, desiste pela afastamento, em vida, da literatura, ou senão o faz pelo suicídio, conforme ocorreu com Ernest Hemingway( 1898-1961) e com outros autores do mundo inteiro. É muito lamentável que possa acontecer isso, mas, ao mesmo tempo, quem somos nós para penetrarmos nos recônditos da alma do artista, a fim de reprovarmos o que faça com o que mais - assim o pensamos - lhe deu prazer na vida? Adiante vou tentar levantar algumas hipóteses.
Uma delas seria a constatação de que o autor nada tinha mais a escrever, ou que o fazia porque achava que teria dito por escrito tudo aquilo que queria. Para outro autor, seria por falta de força de criatividade, ou seja, porque o poço secou. Se tentasse mais, qualquer livro seria repetitivo ou teria uma qualidade inferior a obras anteriores.
Cada escritor tem sua história de desistência e uma delas seria a confirmação de que o sucesso nunca chegaria à sua porta. Por que insistir naquilo que não lhe daria satisfação e sentido de realização plena? Perderia, assim, a crença na sua individualidade artística, i.e., deixaria de representar qualquer uma daquelas cinco soluções para o conceito de literatura formulado por Raúl Castagnino, na obra Qué es literatura? : sinfronismo, ludismo, evasão, compromisso e ânsia de imortalidade.
É óbvio que ninguém escreve para o vazio, quer dizer, para não ser lido nem apreciado. Quem escreve precisa de feedback, de quem lhe dê atenção, de quem o leia, e o que se nota, hoje mais do que no passado, é a ausência de leitores, eles mesmos com dificuldades de dar prioridade a esse ou àquele autor. Quem chegar à ideia de números de leitores de Machado de Assis, que se dê por satisfeito... Mas que seja reconhecida a certeza de que nenhum leitor é obrigado a ler esse ou aquele autor, dentre de um oceano de opções, não só no seu próprio país, como em escala global. Seja entendido que o que aqui estou meramente especulando é um terreno movediço e cheio de susceptibilidades.
Centremo-nos, porém, nos dois aspectos assinalados no título deste artigo. A desilusão do autor, por múltiplas razões, é uma questão abissal, que fere todo o mecanismo psicossomático do autor e, se ele não estiver armado de grande força de resistência, sucumbirá diante da avassaladora engrenagem seja das mídias, seja do mundo editorial, seja do contexto intelectual de cada país, desilusão com as editoras, todas quase preocupadas com os lucros e fortemente protegidas contra a perda de receitas. Poder-se-ia perguntar: isso já havia no passado, diria melhor, nos anos vinte, trinta, quarenta, cinquenta, sessenta do século passado? Seguramente que sim.
Grandes escritores brasileiros tiveram que custear sua obra de estreia. Manuel Bandeira (1886-1968) foi um deles e assim por diante. E hoje, a situação se tornou ainda mais espinhosa e não mudou muito.
Vários escritores jovens ou menos jovens estão publicando livros por conta própria, já que, se dependerem de editoras, das chamadas grandes editoras, dos melhores selos nacionais, do elitismo editorial brasileiro, jamais terão seus livros lançados. Primeiro, porque têm que passar pelo crivo de seus conselhos editorais, exigentes para alguns autores e flexíveis para outros que façam sintonia com a sua linha ideológica e editorial, segundo porque, posto ser compreensível, não desejarão bancar livros que não lhes interessem nem um pouco. Dessa forma, a despeito dessas grandes editoras, os autores teimam e terminam bancando com sacrifícios seus próprios livros que, se caírem no gosto dos leitores, poderão ser vendidos ou serem encalhados.
Assim aconteceu comigo e com outros autores. Por outro lado, ainda estão vigentes outras formas de publicações: as custeadas por convênios entre entidades privadas e públicas, que nada custarão aos bolsos dos autores. Se, contudo, as obras, agora as estrangeiras, fazem sucesso lá fora, aqui são logo agasalhadas, traduzidas e vendidas, mormente se forem best-sellers, obras de autoajuda e assemelhadas. Tudo isso vai pesando na consciência dos autores que se sentem inferiorizados, mal prestigiadas até chegar ao ponto de exaustão, que leva ao desestímulo e à consequente desistência da atividade de escritor.
Nada há certo quanto ao destino dos autores e livros. A história do livro só atesta algo insólito: livros antigos, de repente, são redescobertos pelos editores de hoje e são publicados. A fama que deveriam ter desfrutado no tempo de seu lançamento só o futuro caberá resgatar. Outros permanecerão no limbo assim como a memória da glória efêmera que já tiveram. A sorte de um livro é, pois, imprevisível. Só o tempo dirá de autores e obras. No presente, tudo são incertezas, incompreensões, injustiças e silêncios.
Conscientes de todos essas injunções em torno da literatura, alguns autores de hoje tendem a pensar em desistir no meio do caminho onde haverá sempre uma pedra como no famoso poema de Drummond. Não critico autores e estudiosos que se afastam de seu ofício nem tampouco penso que sejam covardes ao desistirem de seus propósitos e de seus projetos diante de uma realidade que lhes é cada vez mais ingrata, traiçoeira e competitiva.
De outra parte, falando da vida literária, outros tantos óbices enfrentarão os autores menos visíveis, sobretudo aqueles que não formam igrejinhas, nichos e grupelhos de que a vida literária, mais no passado que no presente, se nutriu mais para o lado do compadrio do que para uma saudável convívio na comunidade literária. Ora, quem estiver fora desses grupos fadados está a ser deles alijados, seja por entidades culturais, sejam pelo mercado editorial que, além disso, faz a mediação entre autores por sua orientação ideológica, tanto quanto se vê também nas diversas mídias, não só nas metrópoles mais importantes do país como também nas capitais com vestígios ainda fortes de provincianismos. Sorte têm alguns happy few escritores nacionais que ganharam notoriedade pela alta qualidade de suas obra e conseguiram se manter isolados e avessos a badalações criadas pelo marketing de livros e pelas luzes da ribalta dos novos.
Ao discutir a questão da vida literária, nos vêm logo à baila os vícios reprováveis do cabotinismo, da capadocismo e das traições literárias, ainda tão comuns entre intelectuais, principalmente nas capitais menores, como, de resto, foi no passado. Basta ver o que, sobre esse tema, com coragem e ácida crítica discorre o historiador e crítico literário Afrânio Coutinho num ensaio pouco conhecido das gerações de hoje, No hospital das letras.(Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963,188 p.). Sempre que um país ainda está preso a esses bairrismo, a essas parti-pris, a essa negação do real papel do intelectual na vida literária nacional ou dos Estados, quem perde é a literatura e a cultura brasileira.
Onde existem estrelismos, favoritismos, grupos fechados e elitistas, quer de academias literárias, quer de academias de universidades, sempre sofrerão os que estão de fora, na condição de meros pacientes do aplauso dos mandarins da literatura. E a questão da vida literária não termina aí, porque, mesmo dentro do grupinhos, das instituições culturais, haverá os costumeiros estrelismos e favoritos, os que se julgam donos da verdade no campo cultural e, o caso, no terreno da literatura – espaço onde grassam a inveja, o despeito, as picuinhas, as fofocas, as rasteiras, as atitudes subalternas de oportunistas, os falsos, a competição desleal, os arrivistas, os que representam os papéis dos personagens do conto de Machado de Assis (1839-1908), “Um apólogo,” que compõe os contos da obra Várias histórias, um diálogo cheio de ironias e presunções, entre a agulha e um novelo de linha, narrativa ainda tão atual na sua prospecção da natureza da alma humana quando levada à esfera literária, os que se consideram “poderosos” nas decisões de quem entra ou de quem não entra nas instituições que antes deveriam servir tão-só à inteligência, à produção e à divulgação democrática do saber, da experiência e do conhecimento.
Para alguns autores, a combinação desses dois aspectos aqui ventilados é o principal fator determinante de decisões de alguns intelectuais pela desistência de um projeto de vida ou de sadia convivência na comunidade intelectual.
Entretanto, seria algo utópico que nossa vida literária, no âmbito nacional, fosse uma mar de rosas. Os autores se multiplicaram em proporções gigantescas. A população de leitores também cresceu ainda que, no caso brasileiro, sejam ainda baixos os índices de leitores comparados com países adiantados. Por outro lado, contraditoriamente, fecharam-se nos últimos anos várias grandes livraras e os sebos foram liquidados pela sebo virtual, como serve de exemplo a Estante Virtual.
Da mesma forma, cresceu visivelmente o mercado de livros didáticos, sobretudo de livros estrangeiros. E ainda para manter a contradição, várias pequenas editoras surgiram no país. Dessa maneira, aponta-se um outro elemento na questão entre autores e vida literária: esta sofreu o impacto fortíssimo do espaço virtual, dos sites, dos blogs, dos e-books, dos meios virtuais com informações que podem armazenar quantidades enormes de obras da grande literatura universal que caíram no domínio público.
Todo esse novo e trepidante instrumento virtual ao nosso alcance desencadeou novas formas de vida literária vindo a misturar o mundo real e o virtual. Só que, desta vez, como ilhas independentes, dispersas, impessoais, modificando profundamente os velhos hábitos de antiga vida literária, sobretudo daqueles encontros tão comuns de escritores, alguns vindos de outras partes do país, na Livraria São José, anos 1940, 1950, para citar um só exemplo, num Rio de Janeiro mais calmo e menos volátil.