Antenor Rêgo Filho e a tradição imorredoura da memória
Em: 05/12/2021, às 20H51
Dílson Lages Monteiro
Somos seres de linguagem. Significa dizer: somos fabulação. Representamos a vida por meio de narrativas que dão sustentação à nossa identidade e nos integram à convivência humana e à natureza. Com ou sem tecnologia, encontramos meios de materializar pensamentos e emoções em narrativas que, ao ecoarem entre semelhantes, proliferam-se a ponto de projetar-se aos nossos olhos um modo de ver o tempo, os costumes e a nós mesmos.
É na literatura que essas marcas de nossa subjetividade como seres de linguagem refletem-se com mais fidedignidade. Saindo da esfera utilitária para a da plurissignificância imaginativa, a palavra potencializa a capacidade de ativar, também, mundos que não conheceríamos de outra forma que não pela representação da escrita literária, em seu modo único de revelar subjetividades. Assim é que tudo que nos cerca passa a ser humanizado e nos comove profundamente, seja pelo lirismo, seja pela crítica social, seja pelo humor.
Uma das matrizes de tudo isso está no conto popular e na crônica. As lendas, as crendices, as superstições, os fatos do cotidiano cristalizados de significado coletivo encontraram formas de dizer sobre comunidades e culturas inteiras e foram se modificando a darem forma a gêneros mais complexos dos quais até hoje se alimentam, revigorando a força da tradição.
Antenor Rêgo Filho é autor que, possuidor de projeto literário e memorialístico contínuo e consistente, vem nos presenteando ao longo de sua trajetória com contos populares e crônicas que servem tanto à literatura quanto à história e à memória. Em sua prosa agradável e rica, em um jeito de corporificar a alma, o léxico e a essência de sua terra natal, reverbera toda a tradição de uma gente alegre, festiva e avessa à indignidade. Nele, espelha-se a histórica Barras do Marataoã, em textos que vão além de sua vocação para o memorialismo, a uma escritura em que o espaço-físico e temporal subvertem-se em nomes e histórias, cheios de humor cativante.
Assim se consagrou entre nós o volume de crônicas e contos Jacurutu, saudado efusivamente por escritores como Herculano Moraes e José Ribamar Garcia. Assim são as novas narrativas que ele dá conhecimento à sua grande legião de leitores-admiradores no volume “Bafute”, que agora publica. Em 29 textos de refinado humor, o leitor encontrará, principalmente, uma gente e uma Barras de antanho, com costumes, hábitos e valores bem diferentes dos que vivem as gerações correntes e, por isso, mais significativo é o sentido social desta obra. O leitor se encantará pelas referências geográficas, ou mesmo por tipos humanos, em que se representa o caráter universal da literatura mesmo de textos que reproduzem a cosmovisão da aldeia.
Entre os muitos méritos de cada uma dessas narrativas, está o humor que escorre em cada texto e a reinserção no cotidiano da memória, agora em palavra escrita, de dezenas de estimadas figuras da vida social de Barras dos últimos 70 anos, sobretudo. Destacamos, ainda, a naturalidade com que apresenta um leque extenso de palavras bem nossas; ditas de maneira bem nossa. Deixamos para o leitor a tarefa prazerosa de descobrir o que aqui dissemos, porque as narrativas de sucesso deste volume dizem infinitamente mais do que qualquer explicação que venhamos a realizar sobre elas.
O humor é subversivo; disso sabemos. O hábito de recontar (ou recortar) é a força viva da memória; disso também sabemos. Que o humor e os recortes de cada uma dessas histórias ressoem em nosso sentimento como as águas tranquilas e cristalinas do Marataoã e nos contagiem do amor incondicional ao lugar que é nossa origem. Viva “Bafute” e a vocação de Antenor Rêgo Filho para nos trazer de volta a presença imorredoura da memória!
Dílson Lages Monteiro é literato, professor e autor de obras de ficção, de ensaios e memorialismo. Ocupa cadeira na Academia de Letras do Vale do Longá e na Academia Piauiense de Letras.