Análise crítica bernardelliana sobre o poema "Chinelos do Mar", de Diego Mendes Sousa - Ensaio de Ana Maria Bernardelli
Por Diego Mendes Sousa Em: 20/11/2025, às 19H51

(Curva do Rio Igaraçu, braço do rio Parnaíba, na Parnaíba, costa norte do Piauí)
CHINELOS DO MAR
Hoje penso!
Sou terra em abundância.
Couro seco de boi
para a minha terra.
No rio do céu.
No rito rebocador
do curso
que se salga no mar.
Creio:
sou água corrente,
bucho de peixe
do rio Igaraçu,
que rega a terra
na secagem do sol.
No céu espelhado do rio,
a terra,
sempre as toras da terra
e a vagação nas sombras
das lamparinas invisíveis
da torrente.
Poema de Diego Mendes Sousa
Fotografia de Helder Fontenele
Curva do Rio Igaraçu, braço do rio Parnaíba, na Parnaíba, costa norte do Piauí
====
ANÁLISE CRÍTICA BERNARDELLIANA SOBRE O POEMA "CHINELOS DO MAR", DE DIEGO MENDES SOUSA
Por Ana Maria Bernardelli
O poema se ergue como uma cartografia de elementos primordiais — terra, couro, água, peixe, rio, mar, céu — todos convocados para compor uma espécie de autobiografia mineral e orgânica, em que o eu poético se reinventa a partir de matérias que antecedem o próprio humano.
Logo no início, o verso “Sou terra em abundância” instala a chave fundadora do poema: a identidade não nasce da interioridade psicológica, mas da geologia, da vastidão física, de algo que excede o corpo. Ser terra é ser força, peso, origem, mas também desgaste, aridez, permanência. Há aqui uma metáfora axial: o eu como chão do mundo.
A imagem seguinte, “Couro seco de boi / para a minha terra”, é violenta e bela.
O couro — matéria morta, curtida, seca — sugere a dureza da sobrevivência. Esse couro cobre a terra como se fosse uma pele ancestral. O poeta veste o território e deixa que o território o vista. É uma troca identitária, uma fusão simbólica entre corpo e geografia.
No verso “No rio do céu”, ocorre uma das inversões mais sofisticadas do poema. O céu é transformado em rio: o alto líquido, o distante fluido.
A metáfora dissolve fronteiras: aquilo que é inalcançável se torna corrente. Há uma cosmologia aqui, não um simples recurso poético. O poeta cria um movimento circular entre alto e baixo, entre céu e mar, entre origem e dissolução.
A expressão “No rito rebocador / do curso / que se salga no mar” transforma o fluxo natural em liturgia: o curso do rio é um rito, e o mar é o altar.
O verbo “rebocar” sugere arrastar, conduzir, puxar — um movimento de destino inevitável. A água é arrastada à sua própria dissolução.
Há, então, uma metáfora forte: o destino como rito inevitável de salgar-se, perder-se, transformar-se.
A estrofe que se inicia com “sou água corrente, / bucho de peixe / do rio Igaraçu” é talvez a mais visceral.
O sujeito não se compara à água: ele é água, ele é bucho de peixe — a parte menos glamourosa, mais crua e mais vital do animal.
Aqui, a metáfora toca o bruto da existência: o eu como víscera, como parte interna exposta do rio.
É um retorno ao que é essencialmente orgânico, sem ornamento.
O verso “que rega a terra / na secagem do sol” traz um paradoxo luminoso: regar enquanto seca.
É um jogo de contrários que Diego Mendes Sousa utiliza com precisão. A água rega, o sol seca, e entre esses opostos o poeta encontra sua identidade.
O eu poético vive nessa fricção: ser simultaneamente abundância e ausência, umedecimento e evaporação.
Finalmente, a última estrofe condensa os espelhamentos que percorrem o poema:
“No céu espelhado do rio, / a terra, / sempre as toras da terra (…)”
O rio espelha o céu, mas também carrega pedras, toras, peso.
O espelho não é leve; ele reflete a densidade.
A metáfora aqui é contundente: a superfície líquida revela a profundidade terrestre, como se o rio carregasse dentro de si a memória mineral da paisagem.
A imagem final — “as lamparinas invisíveis / da torrente” — é de rara delicadeza.
No lugar de um fecho grandioso, o poeta cria uma iluminação sutil, quase imperceptível.
As lamparinas são invisíveis, mas iluminam; são luz que existe na suposição, na intuição.
Essa metáfora fecha o poema com um brilho subterrâneo, como se a claridade só pudesse ser percebida quando o olhar passa a habitar o escuro.
Chinelos do Mar é, pois, um poema de transmutação, em que o sujeito lírico abandona qualquer pretensão humana para se refundar na matéria do mundo: terra, couro, água, víscera, rio, mar, céu.
O texto opera numa alquimia identitária: o eu se converte em elementos, e os elementos devolvem ao eu uma forma antiga, quase totêmica.
As metáforas não são ornamentos: são ossos, são estrutura, são aquilo que move o poema de dentro.
E é isso que lhe dá densidade e imponência: a sensação de que o poeta se escreve como se estivesse esculpindo-se na própria natureza.
Ensaio de Ana Maria Bernardelli.
Ana Maria Bernardelli é ensaísta e crítica da literatura, formada em Língua e Literatura Francesa pela Université de Nancy, na França.

