ADEUS A DISPONIBILIDADE

ALCEU AMOROSO LIMA

 

ADEUS À DISPONIBILIDADE LITERÁRIA

 

NÃO é sem certa emoção, asseguro, que tomo do lápis para recomeçar, ainda uma vez, êste velho rodapé.

Foi precisamente há vinte e cinco anos que, encontrando acidentalmente Renato Lopes, na Avenida Rio Branco, numa clara manhã de março de 1919, convidou-me êle para tomar a seção de “Bibliografia” no jornal que tinha em mente fundar. Queria fazer, dizia-me, um jornal dos “tímidos”, dos inéditos, dos não jornalistas profissionais, dos amadores de boa vontade. E citava os nomes de Manuel Amoroso Costa, de Miguel Osório de Almeida, de Delgado de Carvalho, e outros que iria convidar, para trabalharem e colaborarem junto dele, de Bertino de Miranda, de Arrojado Lisboa, de João Lopes.

Outro, bem outro que o de hoje era o ambiente social e literário em que ia encetar urna faina, aceita então com o alvorôço da mocidade e hoje retomada no limiar das últimas etapas, depois de várias interrupções em que nela figuraram três nomes que lhe deram um brilho que faltava ao seu iniciador, Agrippino Grieco, Otávio Tarqüínio de Sousa e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Três circunstâncias influem, nitidamente, para marcar o contraste entre 1919 e 1944: a Conversão, o Tempo e os Acontecimentos.

A primeira, ocorrida nove anos mais tarde, ia ser, para alguns, uma “decepção”. Deveria ser mais do que isso, uma despedida. Não o foi entretanto. Tornou-se apenas uma passagem da disponibilidade ao ancoramento. Será preciso advertir que o ancoramento cristão é coisa muito diversa da imagem náutica correspondente? Converter-se não significa parar, mas apenas saber para onde segue a viagem.

No seu panegírico de S. Bento, escreveu Bossuet que—”Tôda a doutrina do Evangelho, tôda disciplina cristã, tôda perfeição da vida monástica, está contida inteiramente numa só palavra Egredere: sai.. “—de tal modo se nos ordena caminhar sem descanso, que nem mesmo em Deus nos é permitido repousar, pois se acima d’Ele nada podemos pretender, há sempre n’Ele novos progressos a fazer.

Converter-se, mesmo imperfeitamente, é compreender o sentido da viagem empreendida e ter mais nítida a noção de nossa condição de “viajantes”.

Para muitos, porém, que assistem de fora, a aventura é apenas perder a liberdade. No caso, era sacrificar totalmente a independência do critico à disciplina, quando não, ao partidarismo do crente. Se o fiz, fiz mal. Terei sido mau crítico e mau crente. Pois nenhuma exigência intrínseca pedia o sacrifício da mínima parcela de liberdade. Saber onde está o Caminho não é nunca impedir a circulação por todos os caminhos. Ao contrário, é facilitar tôdas as excursões, sem perigo de se perder por elas, desde que se tenha sempre em mente o traçado do roteiro autêntico. Já tenho quinze anos de experiência da nova fase. E posso afirmar sem hesitação que, por mim, me sinto hoje tão livre, ao menos, quanto o era no dia em que, há vinte e cinco anos, redigia, sem nenhuma posição filosófica ou religiosa definida, a primeira destas crônicas bibliográficas. Bem sinto que mudei muito, como muito mais ainda mudaram as coisas e talvez os homens que me cercam. Bem sinto procurando o que havia de mais estável no fundo das intenções de outrora, antes de l928—ter sido um ideal puramente cultural o que então me animava a escrever. Hoje, coloco êsse ideal cultural como uma etapa, apenas, de um caminho mais longo; como uma estação intermediária de um ponto final mais alto e mais distante. Essa a mudança capital que a Conversão penso ter operado no crítico totalmente disponível, em 1919, que fazia da Cultura um valor em si. Digo mal, um fim em si, pois não falta à cultura um valor em si. O que lhe falta, como seria se fôsse um fim último, é ser medida de todos os valôres. Cultura é passagem para um Bem mais alto. Ultrapassar, porém, não é nem desconhecer, nem diminuir. No caso, foi apenas valorizar. Foi dar à Literatura um sentido mais digno e mais nobre. Foi conceder-lhe uma responsabilidade maior. Foi sentir, de mais perto, o seu contacto com tôda a vida. E foi até, posso afirmá-lo lealmente, urna compreensão muito mais ampla da liberdade literária. Pois sempre que não colocamos a disciplina, a Regra, na eminência supraterrena, em que deve pairar, a conseqüência é a multiplicação temporal das “regrinhas” efêmeras e dos preceitos acidentais. Sabemos todos não haver autoridade mais rígida, do que aquela que tem a consciência de sua precariedade. Só não abusa da fôrça quem a tem em sua plenitude ou quem sabe, pelo menos, onde está essa plenitude. Eis o sentido da palavra tremenda da Escritura: “Veritas liberabit vos”. É a verdade que nos torna livres. Pois só ela nos desliga da servidão aos sofismas e aos régulos.

Se não havia, na conversão do crítico, uma perda da liberdade quanto às idéias, poderia havê-la quanto às pessoas. Ainda aqui rejeito a objeção. Crer é ser intolerante quanto aos fundamentos da Fé. Mas é abrir o coração, do modo mais amplo, a todos os que erram e a todos os que pecam, a todos os que falam e a todos os que escrevem. Pois a conseqüência da Fé, quanto às pessoas, é colocar a Caridade, como o fêz 5. Paulo, acima de tôdas as virtudes. E caridade é compreensão, é antecipação, é sempre sair de si mesmo, egredere, como dizia Bossuet. Se o crítico perdeu a compreensão quanto às pessoas, se foi mais estreito, mais mesquinho, mais intolerante nos seus juízos—errou de nôvo, como crítico e como crente. Pois na base de uma e de outra atitude, só há uma fôrça libertadora e invencível—é o Amor. “Crítica é Amor”, dizia Hello. “Crer é Amar”, dizia Santo Agostinho.

Ainda aqui a Conversão, como a graça, não podia alterar a natureza. A não ser que fôsse mal compreendida e mal praticada. Se o foi, a culpa é do crítico. Não da sua conversão. Esta só podia e só devia ter-lhe aberto os olhos e libertado a palavra. Por isso é que posso repetir, sem sombra de dissimulação:—sinto..me hoje ao menos tão livre, para a crítica literária, como no primeiro dia em que, sem rumo consciente, comecei estas crônicas.

Se algum laço nôvo me tolhe essa liberdade, não é da Conversão que me vem e sim daquele segundo elemento que vejo interpor-se entre hoje e 1919—o Tempo.

Viver é durar. Durar é aderir às coisas e aos homens. É desprender-se, cada vez mais dificilmente, de uns e de outros. Daí haver, na velhice, um apêgo muito maior à vida, do que na mocidade. As crianças falam rindo da morte. Os moços arriscam fàcilmente a vida. Os homens maduros começam a temer a velhice. E os velhos se apegam desesperadamente à existência. Só os moços se suicidam. Só êles desdenham a vida e enfrentam a morte. Envelhecer é, portanto, apegar-se aos homens e às coisas. E com isso, perder a liberdade.

O tempo nos torna, dia a dia, mais escravos da vida. E por isso mesmo nos encarcera entre amizades, preconceitos, escrúpulos, temores, que a mocidade desconhece.

Há, portanto, muito mais a temer da mão do tempo do que da mão de Deus. Esta é que nos liberta. Aquela a que nos consome e serviliza. Saber envelhecer é, por isso mesmo, a mais difícil e a mais necessária das artes. Pois é aprender a desligar-se dos laços crescentes a que o tempo nos vai acorrentando.

Vinte e cinco anos se passaram desde o dia inicial desta secção. Nesses cinco lustros o trabalho do tempo foi, como sempre, inexorável e incessante. E, como sempre, contraditório ao trabalho da Conversão. Pois enquanto esta nos traz a volta à mocidade, pela Esperança e à alegria pelo Desapêgo—o Tempo nos leva impiedosamente às mesquinhas satisfações do quotidiano. Henri de Regnier tem razão, se acaso o Tempo fôr o único senhor: “vivre avilit”. iS o Tempo que tira ao crítico a sua independência, pelo amor às situações adquiridas, pelo respeito às relações pessoais, pelo temor de desagradar a êste ou àquele, pelo ceticismo, pelo comodismo, pela indiferença que traz consigo às nossas almas desarmadas contra a sua tirania crescente.

Cinco lustros representam, sem dúvida, o pêso terrível do Tempo sôbre uma existência. Contra êle é que é mister defender-se. Nêle está, realmente, o perigo de uma invencível decadência. Procurarei, na medida do possível, remediar essa passagem, pela análise da sua ação corrosiva. E procurando, por outro lado, o que pode haver, no próprio Tempo, de sadio pela eliminação de cedas escórias com que os extremismos da mocidade tornam a crítica mais uma aventura e um debate pessoal, do que uma serena e objetiva comunicação de idéias e transposição de formas. O que perde em vivacidade poderá ganhar em serenidade. O que perde em inde­pendência, com a inevitável série de considerações pessoais a ter em conta, pode ganhar em justiça, pois à medida que envelhecemos somos mais inclinados a ornar as coisas como são e não como quisera que fôssem o nosso dogmatismo juvenil.

Nesses vinte e cinco anos, não foi apenas a Conversão que dividiu em dois uma existência, não foi apenas o Tempo que envolveu a nossa vida nessa rêde sutilíssima de laços invisíveis de que só uma vigilância contínua nos consegue livrar. Foram, também, os Acontecimentos que se desencadearam sôbre o mundo, de modo imprevisto. Em 1919, o mundo saía de um pesadelo. A nossa geração, marcada pela guerra e pela revolução, que a havia arrancado à displicência de 1913, entrava num período eufórico de esperanças na Paz, que iria trazer ao Ocidente mais felicidade, ao Brasil mais consciência de sua personalidade nacional e à obra literária um horizonte mais vasto de realizações. Foi então a aventura modernista, que em 1919 apenas bruxuleava em várias insatisfações pessoais e em 1922 ia explodir numa onda coletiva.

1919-1939 foi um vintênio que contará de modo decisivo, na história da humanidade. Liquidaram-se as esperanças de 1918 e prepararam-se as catástrofes de 1939 em diante. Hoje estamos, de nôvo, em plena tormenta. Uma tormenta incomparàvelmente mais radical que a de 1914 a 1918. A nova guerra representa uma revolução muito mais profunda. Revolução em que todos os valôres se acham em jôgo e de que vai nascer na opinião de alguns, um mundo novinho em fôlha e, segundo outros, um mundo em que os valôres da vida e da morte, da verdade e do êrro, do sofrimento e da alegria, vão de nôvo opor-se de modo mais patético que nunca. Sou naturalmente dêsses últimos. Já o tenho dito tantas vêzes que e inútil repetir.

Os acontecimentos desencadeados sôbre o mundo arrastaram, de modo invencível, os destinos da literatura. Uns ainda a consideram como uma atividade acadêmica, que se processa friamente ou sentimentalmente pelo arranjo de certas formas, pela evocação de certas imagens, pela aproximação de certos conceitos. Quando não pela conquista de certas posições.

Outros a vêem colocada, em pleno desencadear dos aconteci­mentos, trazida para a arena, arrastada pelos cabelos, supliciada, solicitada por tôdas as paixões, por todos os fanatismos que hoje mais do que nunca se desencadearam de todos os quadrantes e ameaçada por tôdas as corrupções como capaz de tôdas as redenções.

Estou naturalmente entre êsses últimos. E justamente por sentir vivamente que a literatura é o oposto de um divertimento mundano e, hoje mais do que nunca, está participando vitalmente dos acontecimentos do mundo, é que a julgo digna, como jamais, de merecer a nossa dedicação.

Dela nada espero. Continuo hoje, como há vinte e cinco anos atrás, a ser apenas a seu respeito aquêle amador de boa vontade, a que um amigo fazia apêlo para o seu jornal. Se de alguma coisa me envaideço, nesses cinco lustros tão escassos em motivos de envaidecimento pessoal, é de nunca me ter deixado enfeudar pelo demônio da literatura. É de nunca me ter deixado profissionalizar. Considero-me tão alheio a qualquer espécie de grupo, de escola, de corrilho, de capela literária, de academismo, ou de antiacademismo como ao iniciar estas atividades. Por mais que a má fé de uns ou a ilusão de outros queiram atribuir-me êste ou aquêle partidarismo, esta ou aquela facção, posso afirmar, perante Deus, que me sinto ainda nisso tão livre como outrora.

Há uma disponibilidade a que não disse adeus—a da minha consciência liberta de compromissos de ordem profana. E o terreno literário é de ordem profana. Nêle me sinto, como em 1919, guiado apenas pela vontade de bem servir honestamente, sem ilusões quanto às possibilidades, mas sem compromissos de espécie alguma, o que me parece digno de ser servido. Há hoje, em campo, o que não havia em 1919—uma crítica literária ativa e bem dotada de algumas personalidades acima do comum. Em 1919 era quase o vácuo, Os grandes críticos do naturalismo haviam passado. Ainda não haviam nascido, ou estavam nos bancos escolares, os futuros grandes críticos do modernismo. Era o terreno livre para uma tarefa fácil. Hoje, é o campo ocupado para uma tarefa difícil. A literatura se tornou muito mais complexa. Houve uma revolução de formas exteriores. Houve também outra revolução de formas profundas. O ambiente de batalha e não mais o ambiente de armistício, como em 1919, é o que domina por tôda parte. O próprio lirismo cheira a fumo. As letras são cada vez menos uma jóia parnasiana, uma alegoria simbolista, ou uma aventura modernista —para serem a expressão mais viva do sangue, do suor, da poeira e das lágrimas em que o maior dos estadistas vivos resumiu suas esperanças, no momento mais trágico desta luta de vida e morte.

Na hora em que o veneno contra o qual se lançaram as fôrças da Liberdade, ameaça atingi-las a elas próprias, pelo nôvo Munique que se prepara no terror das Fôrças desencadeadas se a tempo não reagirem—os horizontes literários se cobrem do clarao dos incêndios e não dos “dedos de rosa” da aurora homérica de 1919.

Os acontecimentos marcaram e continuam a marcar os novos tempos com as garras de sua mão de aço. A literatura está empenhada, hoje em dia, na grande e trágica aventura da própria civilização. E por isso mesmo é muito mais empolgante a volta à liça ensangüentada de hoje, do que o foi, há vinte e cinco anos passados, a entrada na areia branca do terreno baldio de então. A ela não trago, nem mais nem menos, do que trazia naquele tempo. Trago a mesma alma, embora marcada pela Conversão, pelo Tempo e pelos Acontecimentos; o mesmo desejo de fazer, com honestidade, uma tarefa adequada à mediocridade dos meios de que disponho.

“Não discutir, construir”, continua a ser o lema a que há muito tem procurado ser fiel uma natureza que não alimenta ilusões a seu respeito. Volto ainda com menos ilusões. Mas, com o ânimo cada vez mais disposto a dar o pouco que tenha sem reservas e sem secretas intenções.

Quanto tempo durarão êstes últimos estudos?

Só Deus o sabe. Retomo-os com a disposição de sempre, no próximo dia em que tôda a natureza e a humanidade que crê celebra a maior festa da Cristandade. A essência do cristianismo se reduz a duas palavras: —Morte e Ressurreição. Hoje comemoramos a festa suprema da Ressurreição que é para nós a medida da Morte. O que ela nos traz—no meio das trevas mais terríveis que nos cercam e das ameaças, ainda mais trágicas, que o futuro talvez nos reserve, é a certeza da vitória final do Bem e da Verdade.

Neste espírito de ressurreição e de vida é que retomo a tarefa interrompida, com o mesmo ânimo de outrora e uma consciência ainda mais nítida, do nosso dever de presença. O futuro dirá por quanto tempo e de que modo. Loué par les uns, blamé par Les autres... Que importa? Os bons amigos são a alegria de nossa vida. E os bons inimigos tão necessários à nossa obra, como ao Estado uma boa oposição. Cultivo os meus com o carinho com que Candide cultivava o seu jardim no fim da vida...

E agora, a uns e a outros, digo de todo o coração: mãos à obra.

 

Ao retomar contacto, neste rodapé, com a literatura em sentido mais estrito, isto é com a prosa de ficção e a poesia, como pre­tendo fazer, não creio seja deslocado lembrar ou relembrar o ponto de vista crítico em que me coloco. Será, porventura, um dever para com os autores e os leitores. Um dos erros do nosso tempo é o que poderíamos chamar—a metafísica implícita. 12 agir, consciente ou inconscientemente, de acôrdo com um ponto de vista, com uma concepção geral da vida e, portanto, de acôrdo com uma metafísica, sem entretanto confessá-la ou mesmo sem procurar conhecê-la. Assim como Monsieur Jourdain fazia prosa sem saber o que fazia, assim também todo mundo faz metafísica sem saber ou sem querer. Mesmo quando afirma que não o faz, dizia Aristóteles, pois negar um pensamento “para lá da física” é ter uma metafísica.

É assim que tôda crítica supõe uma filosofia da vida. Quando mais não seja a filosofia de não ter uma filosofia da vida, o que é mesmo o ponto de vista mais corrente.

Em suma, penso que um dos deveres primordiais de quem escre­ve, como aliás de quem procura viver decentemente, é jogar um jôgo franco. É procurar não se iludir nem iludir os outros. É fugir das metafísicas implícitas ou disfarçadas e pôr as cartas na mesa, como se diz numa linguagem tão em moda nos dias que correm...

Começarei, portanto, dizendo quais as modalidades de crítica que não pretendo fazer, para depois esboçar as linhas gerais, do que desejaria empreender. Ë oportuno, aliás, recordar antes de tudo, a famosa frase do Cardeal Lavigerie a quem perguntavam o que faria se lhe dessem uma bofetada: “O que eu devia fazer eu o sei; o que faria, porém, ignoro”.

Oito são as modalidades de crítica literária, que me esforçarei por não fazer, que a tôdas considero condenáveis ou parciais. Quatro de plano inferior e quatro de plano superior.

As quatro modalidades de crítica literária inferior, a meu ver, são: a eclética, a pessoal, a partidária e a gramatical.

A crítica eclética é a que não parte de qualquer orientação definida. Ë a que fica na superfície das obras, nos caprichos do momento, na obediência à moda, na facilidade de tudo aceitar ou rejeitar de acôrdo com preferências puramente opinativas e ocasionais. Ë a feição detestável do amadorismo, dêsse amadorismo que possui outros aspectos tão decisivamente recomendáveis. A crítica eclética é a crítica irresponsável, que passa como passam as asas e as quilhas.

A crítica pessoal é a que vê os autores e não as obras. E naqueles o amigo ou o inimigo, segundo a terminologia tão em voga na doutrina política totalitária. O personalismo crítico pode ter uma forma elevada, mas parcial, quando apenas focaliza os autores em detrimento das obras. Sua face corrente, porém, é o favoritismo ou a má fé sistemática, que lhe tiram, de antemão, todo prestígio.

A crítica partidária é a caricatura de certas críticas superiores como a sociológica ou mesmo a metafísica. O conceito de grupo, de partido, está hoje muito em voga. E como vivemos em uma época passional, mítica e particularista—é corrente a tendência a erigir seu grupo, sua capelinha, sua escola em medida suprema de valor literário e tudo julgar de acôrdo com êsse fanatismo inicial. S o individualismo da modalidade anterior, transportado para o campo grupal coletivo. Já não é apenas o meu capricho em face dêste ou daquele autor, com quem simpatizo, ou antipatizo como se vê 110 personalismo crítico vulgar. É o meu grupo, são os meus amigos e eu, unidos em tôrno de certos preconceitos, que nos erigimos em medida de todos os valôres. Esse partidarismo crítico é também, freqüentemente, unia corruptela da critica sociológica quando o veneno político intervém, para pôr a crítica a serviço de uma paixão partidária, seja da oposição, seja do govêrno. Em regra, quando se faz crítica partidária na oposição, vai se fazer crítica oficial no govêrno, quando o nosso Partido triunfa.

Essa crítica partidária se apresenta, também, sob modalidade de crítica negativa e polêmica, que não julga de acôrdo com a justiça mas com o interêsse, ou a vontade de divertir certo público malsão.

A crítica gramatical, enfim, é a que julga de acôrdo com um padrão de pureza filológica mais ou menos largo, segundo a inteligência ou a estupidez do crítico. A estreiteza de espírito, a mesquinharia do estalão, é o pêso dessa crítica, que vai desde o “apito” mais ou menos ridículo dos que se gabam de ser “guardas-civis das letras” e vivem a julgar o valor das obras na base dos solecismos, reais ou imaginários, dos galicismos, dos desrespeitos às regras sacrossantas dos “mestres da linguagem”—até a hostilidade a tôda renovação dos idiomas ou a justa reação contra os que confundem originalidade autêntica com tapeação.

São essas, a meu ver, quatro modalidades inferiores de crítica, que faço o possível de evitar. As quatro modalidades superiores, mas parciais são: a estética, a sociológica, a psicológica e a moralista.

Enquanto as quatro inferiores partem da ausência de qualquer posição geral definida, em face da vida, essas outras representam a conseqüência consciente ou inconsciente, de uma filosofia geral da existência.

A crítica estética parte da supremacia da Arte. Para ela na hierarquia dos valôres, esta é situada acima de todos os demais, de modo a se colocar o artista para lá do bem e do mal. Foi no fim do século passado, com o parnasianismo e o simbolismo, que essa crítica estética teve o seu grande desenvolvimento, embora fôsse no romantismo e no surto da liberdade em arte que realmente tenha tido origem, o estetismo continua a ser, hoje em dia, com o modernismo, uma das modalidades mais importantes da crítica, senão a mais importante. Se houve uma revolução no conceito de beleza, não houve senão uma seqüência no seu primado como valor, em face de tudo o mais.

A crítica sociológica parte, não mais do primado da Arte, mas do primado da Sociedade. Foi com o naturalismo que essa modalidade de crítica nasceu, modernamente. Entre nós, foi a que animou a grande obra de Sílvio Romero ao passo que a crítica estética objetiva explica a posição de José Veríssimo. Quanto a Araripe Júnior, passou da crítica sociológica objetiva, dos seus primeiros ensaios, para a crítica estética subjetiva, de suas últimas produções. Essa crítica sociológica está hoje de nôvo em pleno foco tal a importância que os problemas político-sociais adquiriram em nosso tempo. Estamos assistindo entre nós, por exemplo, ao triunfo do esquerdismo, depois de um efêmero equilíbrio com o direitismo.

Pois bem, tanto num caso como no outro, vemos a crítica oscilar de acôrdo com a posição político-social dos autores. Vemos o repú­dio ao puro estetismo, à arte pela arte, à crítica pela crítica e a afirmação de que os valôres da Democracia ou da Revolução, com o esquerdismo triunfante, ou da Autoridade e da Naçao, com o direitismo moribundo (aquém do Prata...(1) que são os valôres supremos. A crítica, segundo essa atitude, deve colocar-se a serviço do Ideal Social. A Política e não a Arte é que passa a ser o supre­mo estalão de valôres. A travessia do Pruth passa a ter, para muitos da nova geração, uma importância mil vêzes maior que a leitura de Proust, que há vinte anos deslumbrou nossa própria geração, cansada, da outra guerra e por alguns momentos embalada no estetismo Morand-Giraudoux de 1920!

Creio ser, essa crítica sociológica, a que vai contar, em breve, com o maior número de adeptos, ao menos naquele campo da metafísica implícita, que também é, muitas vêzes, uma metafísica efêmera. Pois a primeira conseqüência de não tomarmos conheci­mento explícito de nossas atitudes profundas é fazer com que elas oscilem ao sabor dos acontecimentos. E amanhecermos amanhã sustentando pontos de vista totalmente opostos aos de ontem. É o que sucede, muitas vêzes, com a outra posição crítica que passamos a situar—o impressionismo.

É o nome mais corrente da crítica psicológica. Ainda hoje os nomes de Anatole France, de Jules Lemaitre, de Remy de Gourmont—que parecem aliás voltar de tempos imemoriais, de sombras cimerianas, depois de milênios de ausência, tal a profundidade do abismo de dor a que desceram a alma e o corpo da França— ainda hoje êsses velhos fantasmas deixam cair no coração dos críticos as palavras sedutoras com que os faziam transformar-se em outros tantos “Jardins de Epicuro”, em que a cultura das impressões estéticas, como de rosas do espírito, ocupa todo o tempo dos jardineiros hipersensíveis. Há nesse impressionismo crítico uma grande dose de verdade, enquanto crítica é meditação sôbre a beleza e esta um ato de visão em que a experiência profunda do nosso Eu é irredutível a qualquer sistema de Regras e Programas. Há também um culto da irresponsabilidade opinativa que se torna incompatível com uma atitude não meramente egotista perante o universo. A crítica psicológica e impressionista não será a que mais satisfaça as novas gerações, penetradas de preocupações políticas, revolucionárias ou tecnológicas. Mas, ainda é a que prevalece nos meios mais estritamente literários.

Temos finalmente, a critica moralista ou apologética que parte da primazia da moral para julgar as obras de arte em função do erviço que possam prestar ao progresso moral da humanidade ou mesmo ao triunfo da Verdade religiosa.

Por mais elevados que sejam os objetivos dessa crítica, também ela representa apenas uma face das coisas e deturpa mesmo a natureza da atividade estética. O moralismo-estético, aliás, é apenas o contra-êrro do imoralismo estético. Ambos se anulam como falseando as verdadeiras relações entre Arte e Moral, problema dos mais delicados e difíceis de solução prática e por isso mesmo dos que mais se prestam a extremismos contraditórios.

Nenhuma dessas formas de crítica superior, para nem falar das quatro anteriores, me parece corresponder à verdadeira posição de uma crítica que poderíamos chamar de autênticamente construtiva. Antes de indicar os pontos cardeais dessa crítica, desejo desde logo dizer que qualquer dessas formas críticas que não me satisfazem totalmente pode ser tratada de quatro maneiras—Com inteligência ou sem inteligência; com honestidade ou sem honestidade. Uma coisa não implica a outra, como qualquer pessoa de bom senso concordará.

Quando passo, portanto, a dizer qual a concepção crítica que gostaria de praticar ou antes que tentarei aplicar na medida de minhas fraquezas, não desconheço a possibilidade da inteligência ou da honestidade no êrro, bem como da estupidez ou da desonestidade, na verdade. Quando entendo haver uma forma crítica mais completa, e verdadeira—nem por sombra julgo estar em condições intelectuais de a realizar, como deveria ser realizada. É inútil acrescentar que a carência de espaço obriga a uma rigidez de expressão que só o tempo e as oportunidades poderão esclarecer. Limito-me às linhas mais gerais.

Cinco conceitos podem resumir os pontos fundamentais sôbre que deve assentar a meu ver, uma crítica construtiva: totalidade, hierarquia de valôres, originalidade, simultaneidade, autonomia.

A preocupação da Totalidade, de ver o mundo em todos os seus aspectos, deve ser a primeira preocupação do crítico. Nunca se fechar num recanto da verdade, mas encará—la por todos os lados. Creio, aliás, ser esta uma preocupação muito atual. Ires livros mais ou menos medíocres nesses últimos dez anos terão possivelmente representado, por algum tempo, a opinião mediana de uma época: o Livro de San Michele de Axel Munthe; O Homem, esse Desconhecido de Carrel e o Um Mundo Só de Willkie. Há um decênio, antes da guerra, a opinião média do público procurava o divertimento na literatura e o encontrava naquela xaropada divertida do nórdico transportado para o sol mediterrâneo. Há cinco anos, os sofrimentos da crise e da guerra em perspectiva faziam o Homem entrar em si mesmo e a verificação dos mistérios dessa humanidade, que lhe haviam ensinado estar para sempre totalmente desvendados, levaram-no a encontrar na obra do grande cientista francês um eco de sua própria inquietação antropológica.

Hoje, é o destino das nações que preocupa o homem da rua, que lê e não se limita a passar pelas coisas distraidamente. E no livro do político norte-americano vem encontrar alguma coisa dêsses dois sentimentos que se entrechocam no ambiente de hoje—o senti­mento da variedade dos problemas universais e o sentimento da unidade do homem nessa multiplicidade. O mundo é “um só”, dentro de sua pluralidade e tôdas as soluções que excluírem essa totalidade serão imperfeitas. O homem de hoje sente que as soluções parciais não podem satisfazer. Sente que anda no ar uma dissociação, um separatismo, um isolamento que não podem perdurar.

Essa sêde de totalidade pode ser falsamente satisfeita pelas soluções puramente políticas.

O maior dos erros modernos é o totalitarismo, por ser justamente a aparência de uma solução total. Esse totalitarismo é substancialmente falso porque arrasta a ruína da Liberdade. Mas não basta a Democracia Política para restaurar a Liberdade perdida. A sede de totalidade do homem “dissociado” de nossos dias só pode ser satisfeita por uma Mística real, isto é, pela integração da ordem natural na ordem sobrenatural. Poucos concordarão comigo. Para a maioria só são possíveis as místicas profanas. Mas a verdade pura é esta: para que os homens tenham mais felicidade, para que a Liberdade não seja uma palavra vã, para que a socie­dade seja mais justa, para que os ricos não esmaguem tanto os pobres, para que os fortes não tripudiem sôbre os fracos, não basta voltar ‘‘a um mundo só” E preciso subir a um ‘‘mundo outro”, que explique e seja a razão de ser do nosso. Haverá sempre “pobres” entre nós, O homem sofre sempre, em todos os regimes de vida. E só a ascensão pelas sete Beatitudes pode repousar o seu coração. Essa a “Totalidade” que deve estar na base de tôda atividade intelectual de nossos dias. E, por conseguinte, de “tôda atividade crítica”. A crítica ou o crítico não podem “viver no seu canto”, cuidando de suas atividades analíticas e profissionais relativas, com os olhos fechados para a vida. Precisa ter uma filosofia “total” da vida. E o único meio de não tornar absoluta a sua relatividade. E de a exercer, portanto, dentro de sua verdadeira natureza. A renovação da critica, enfim, está ligada à renovação da Cristandade, o problema maior de nossos dias, como de todos os dias. Pois a decomposição da Cristandade se opera a cada minuto. Como a cada momento podemos, ou não renová-la.

Vejo a crítica, pois, como um recanto particular de uma filosofia total da vida, que inclui o Tempo e a Eternidade, o homem e Deus. A crítica que entendo fazer se baseia, pois, numa Metafísica Cristã. E essa metafísica não repudia valor algum. Procura, ao contrário, colocar cada qual no seu lugar. Daí o segundo fundamento dessa crítica: a hierarquia de valóres.

Essa hierarquia—Arte, Ciência, Filosofia, Religião—por sua vez se estende, nao numa subordinação absoluta de valôres e sim numa disposição orgânica, pois a realidade é sempre um conjunto e tôda dissociação implica uma diminuição da vida, em suas condições profundas.

Essa organicidade supõe, por sua vez, a simultaneidade de todos os elementos em jôgo. Todos convivem e atuam reciprocamente uns sôbre os outros. Não é possível, senão artificialmente, isolar os elementos e desconhecer a sua simultaneidade. Arte, Ciência, Filosofia, Religião são apenas pontos de vista relativos de um Conjunto, cujos elementos dinâmicos se encontram em perene reciprocidade de ação.

Finalmente, o que essa distribuição de valôres nos ensina é a autonomia relativa de cada um dêles. Nenhum anula o outro. Nenhum pode arrancar o outro à sua colocação no conjunto. Os valôres estéticos, que são os que aqui diretamente nos interessam, possuem, portanto, completa autonomia. São valôres que se explicam por si mesmos. Que têm o seu fim em si mesmos. Uma obra de arte existe, pois, como tal, e não como obra religiosa, política, científica ou moralizante. Não pode, por sua vez, dissociar-se da totalidade dos demais sêres. A arte pela arte é um contra-senso. Mas a arte, para êste ou aquêle fim ainda é um contra-senso maior. A crítica é uma meditação desinteressada sôbre as obras de arte, seus autores e seu ambiente. E portanto, uma atividade essencialmente livre. Até certo ponto, uma aventura do espírito, uma interrogação, uma experiência, uma tentativa de recriação da obra criada. O crítico é apenas um autor em segunda potência. E quando, há muitos anos, tanto insisti no expressionismo crítico, era justamente para acentuar essa posição criadora do crítico, limitada pela sua matéria própria: a obra, o autor, o ambiente. Não há, pois, a bem dizer, uma crítica cristã ou uma crítica social, ou uma crítica impressionista. Há críticos cristãos, sociólogos ou impressionistas, que fazem ou não, crítica livre. Essa crítica, livre de todo preconceito, é que entendo fazer. Uma filosofia da vida não é um preconceito: é um pós-conceito, uma afirmação de—ser homem.

Procuro, como cristão, e como trinitário, isto é, católico, fazer crítica desinteressada e livre. Crítica justa. Penso que a crítica não é uma atividade que possa desligar-se de uma filosofia da vida. Mas tampouco é por si, uma filosofia, ou um partido, ou um sistema, O essencial é sabermos preservar a nossa liberdade, a nossa honestidade, a nossa lucidez, na base do cumprimento do dever essencial de tôda a crítica:—a obediência à obra, ao autor e ao ambiente, re-pensados e re-sentidos pelo crítico, O essencial é saber manter a independência da critica, sem dissociá-la dos grandes problemas sociais e metassociais, particularmente da renovação perene da Cristandade, que é a renovação constante, em nós e nos outros, do Caminho, da Verdade, da Vida.

Essa a crítica construtiva e total que tento fazer, nos limites das fracas disponibilidades que Deus me concedeu.

Justiça absoluta para com tôda realidade literária, por mais contrária que seja às minhas próprias convicções.

Franqueza absoluta na expressão dessa recriação literária que éa atitude formal dessa atividade meditativa sôbre a literatura.

Cuidado de nunca me deixar prender por um ponto de vista unilateral, nem mesmo o do plano superior do julgamento.

Eis aí algumas indicações, para que autores e leitores possam, com tôda liberdade e, naturalmente, com tôda lealdade, fazer com o crítico o mesmo que êle pretende fazer com os criticados...

1. Inútil dizer que isso foi escrito em 1944. .—N. do A., 1969.