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[Paulo Ghiraldelli Jr.}

Primeiro caso. Adelaide do Zorra Total não pode fazer rir. Caso faça, a vítima deve ser alguém que conseguia rir de Chico Anísio ou, melhor dizendo, de certas más escolhas da Globo que, às vezes, insiste em chamar de humor o que não é humor.  Não faz rir não só porque está no Zorra Total. Mas, pior que isso, não faz rir porque o preconceito não faz rir. O racismo menos ainda. “Piada de preto” não deve ser censurada. E há aquelas que negros cultos, eles próprios contam, uma vez que são inteligentes e o ambiente já está para além do preconceito (a fase social de “relaxação”, de Norbert Elias). Mas entre a piada e a afronta há mil tons, e os tons de Adelaide seguramente podem ser ofensivos. Decididamente só são engraçados para o idiota que pensa que está rindo com a tolice do trem do Danilo Gentile em Higienópolis, pisoteando a colônia judaica uma vez que ele não sabe o que significa o Holocausto, pois fugiu da escola.

Segundo caso. Monteiro Lobato é intocável. Os clássicos são intocáveis. Um clássico não é um clássico porque trabalha com a “formação moral da juventude”, ainda que isso possa ser seu serviço também. Um clássico tem dois serviços básicos: põe uma experiência particular como universal sem perder a particularidade e remete o passado ao futuro de maneira a já expô-lo criticamente, sem que seja necessária uma reavaliação. Por isso, uma vez tocado, perde sua condição de existência como um clássico. Tocar uma obra clássica da literatura (e no caso, mesmo com notas de rodapé) é como dar uma de Cecília di Borja com seu novo Ecce Homo.

Por que o clássico é autocrítico? Como poderia Monteiro Lobato, proferindo um enunciado de conotação racista, já trazer em si mesmo a crítica ao racismo? É isso que distingue uma obra racista do passado de uma obra que tenha frase racista e seja um clássico e, portanto, intocável. Concretamente: Lobato põe na boca do narrador uma frase comentada de Tia Nastácia, “Lá é isso é — resmungou a preta, pendurando o beiço”. O narrador chama a personagem negra de “preta” e faz alusão ao “beiço”. Os da minha geração, brancos (e até negros) podem, ao ler Lobato, se lembrar de seus avós dizendo “preto” e também “beiço”. Podem também se lembrar das caricaturas de época. Com isso, o Brasil de determinado tempo e lugar se faz presente e a cultura brasileira, nos seus acertos e mazelas, é reconstruída na mente do leitor. Os de gerações mais novas podem estranhar a frase e, então, recorrer a um dicionário: “preto” para negro? e “pendurando o beiço” ao invés de “fazendo beicinho”? Com um pouco de sociologia e história, hoje disposta na Internet e, portanto, sem que o garoto precise tomar sol, tudo se esclarece: o linguajar da época fazia do preconceito conceito, e não se dava conta disso. Mas não se dava conta de tal maneira que, ao cair no presente, cria um estranhamento e, enfim, é esse estranhamento que faz com que a obra traga no seu bojo a autocrítica. O estranhamento é o ponto inicial da filosofia – disseram Platão e Aristóteles. Não se tira essa prerrogativa do leitor, ou seja, a de considera-lo inteligente, mesmo sendo ele jovem. Todo leitor é um intérprete e um pesquisador. Notas de rodapé na obra, quaisquer umas, nesse caso, são uma afronta. E se tornarão certamente o que a obra de Cecília di Borja vai se tornar: a “restauração” será preservada de modo que, no futuro, possamos rir do episódio. Tornar-se-á uma piada clássica. Falaremos dela na história da Internet e dos memes e as gerações futuras entenderão uma época. Uma edição de Lobato com notas de rodapé terá essa utilidade, caso o Brasil progrida, e no futuro então estudaremos história e falaremos assim do governo Lula-Dilma: nossa, eles foram tão estúpidos quanto o FHC que quis bater boca com os Estados Unidos por conta do “retrato do Brasil” nos Simpsons. Como se vê, estupidez não é monopólio dos que são tidos como incultos.

Mas notas de rodapé na obra, advertindo o leitor que se trata de “expressão de época”, de cunho racista, não cumpririam uma função pedagógica? Não! Edições críticas são necessárias, entre outras coisas, quando as expressões que a obra abriga já estão tão desconhecidas da cultura corrente que somente experts a conhecem. Ou então exatamente porque foram adulteradas. Não é o caso dos livros de Lobato, que não dista muito de nós e que jamais desapareceu de nossa cultura, ao contrário, é o número um de vendas no Brasil. Muito menos foi alterado por terceiros – só agora está em vias de passar por essa barbárie. Além do mais, a edição crítica envolve opções de interpretação, e não advertências que poderão certamente deturpar a figura de Lobato. Um tradicionalista de Taubaté não pode ser confundido com o que nos tempos atuais nós chamamos de “racista” ou mesmo de “preconceituoso”. A nota de rodapé pode, portanto, ser um remédio que elimine de fato a doença por meio de matar o hospedeiro do vírus, ou seja, o doente. Aliás, todo didatismo só sabe fazer isso. Por isso os inteligentes o odeiam.

As minorias que querem dar um “chega para lá” em Adelaide devem tomar cuidado no sentido de distinguir suas falas do que é posto na cisma contra Monteiro Lobato. Pois os conservadores podem achar que ambas as situações vem daquele mesmo saco onde estão mais vítimas de um “politicamente correto” entorpecido e distorcido. Mas não são.

Não existe preconceito racial ou racismo indeterminadamente. Por isso, cada caso é um caso. O caso da Adelaide merece ser avaliado (eu disse avaliado!). O caso de Monteiro Lobato não deveria ter chegado ao STF. Deveria ter morrido no parto. O Conselho Nacional de Educação jamais deveria ter levantado a questão e o Ministro da Educação na época, Fernando Haddad, deveria ter sido mais enfático e dito de uma só vez: o revisionismo dos clássicos é próprio dos regimes fascistas e comunistas, do totalitarismo, além de ser tecnicamente um erro.

Terça feira, dia 11, o STF terá audiência de conciliação entre as partes que disputam a condenação ou não da obra de Lobato por racismo. Talvez se opte por colocar notas de rodapé na obra, e eis aí que estaríamos admitindo que a população brasileira precisa de notas de rodapé para tudo, uma vez que um cabeça dura qualquer – o autor da denúncia – não entendeu um livro e não sabe o que é literatura.

Caso isso ocorra, estar-se-á dizendo que nós brasileiros somos todos como o senhor Antonio Gomes da Costa Neto, o técnico em gestão escolar que fez a denúncia contra a obra à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 2010, dizendo que ela não poderia ser financiada pelo poder público porque fere a Constituição de 1988, que considera o racismo um crime.  Ora bolas, os brasileiros em geral não podem ser equiparados a esse troglodita.

© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ