[Paulo Ghiraldelli Jr.]

 

Maluf abraçado com Lula em função de um acordo político visando somar eleitores e ampliar horário na TV para, enfim, somar eleitores, é algo perfeitamente ético. Um grupo do PT tentando garantir votos da base aliada (e até da oposição) no Congresso por meio de um suborno mensal, mesmo que não fosse com dinheiro público, não é algo ético. Por quê?

Ética diz respeito à palavra grega ethos. Nesse caso, aponta-se para costumes e hábitos coletivos de um povo, quanto ao que se faz no âmbito público. Isso é diferente de moral, que vem (não à toa) não do grego, e sim do latim, ou seja, da palavra mores. Nesse caso, aponta-se para costumes e hábitos coletivos de um povo, mas quanto ao que se faz no âmbito particular. Por isso, falamos de moral quanto a práticas sexuais e, diferentemente, falamos de ética quanto a práticas governamentais. Trazendo para o popular: em 1985 um estudante, em debate sobre eleições municipais no Rio, quis afrontar Gabeira e perguntou-lhe em um debate: “como o senhor, que é homossexual, vai governar o Rio de Janeiro?” E Gabeira respondeu prontamente: “meu amigo, governarei o Rio de Janeiro com a cabeça, não com o cu”. Não creio que aquele tipo de estudante, que às vezes se parece com o tipo de leitor que não quer aprender de modo algum, tenha entendido. Mas quer foi uma lição fácil e rápida, foi!

Essa idéia de separação entre ética e moral, tipicamente moderna, é o que está na base de nossas democracias liberais no Ocidente, e se explicitaram, entre outros lugares, na separação entre igreja e Estado: a moral, que é popularmente religiosa, cai para o campo das ações particulares, às vezes privadas; por sua vez a ética, que é do âmbito das ações públicas, sobra para o campo “estatal”, centro de irradiação das políticas e catalisador de relações políticas, o que é do âmbito público. É sobre essa base simples das lições da filosofia política moderna, que se explicitaram muito bem em Locke, no chamado liberalismo clássico, que se dá o melhor entendimento entre o que está aludido no título deste texto – o acordo Lula-Maluf e o “Mensalão”.

É do “costume e hábito” da prática da democracia liberal a negociação, o acordo que cria alianças visando vencer eleições e que, em seguida, possa garantir maioria parlamentar para que o governo siga governando. O executivo não pode estar em desarmonia completa com o legislativo, pois isso faria a democracia se mostrar inviável como regime capaz de fazer acontecer o que é seu objetivo: que a vontade da maioria comande o governo e, ao mesmo tempo, que os direitos das minorias sejam garantidos, ampliados e melhorados. Sendo assim, é do ethos da democracia liberal e, por isso, do ethos de um povo democrático e liberal, que a democracia cumpra sua virtude: antes usar da razão e criar acordos que usar da violência, simbólica ou física.

Lula poderia usar de duas estratégias para tentar ganhar o eleitorado de Maluf: poderia usar de violência, por exemplo, tentando criar uma situação para que Maluf tivesse de pisar fora do país e, então, ver a Interpol engaiolá-lo. A polícia internacional está na cola dele. Não seria tão difícil fazer isso. Assim, o eleitorado de Maluf, que não é muito diferente do de Lula, talvez pudesse cair para o colo do petista. Lula preferiu a via mais inteligente, pois soma eleitores e soma horários na TV: o acordo. É isso que a democracia quer e é isso que é a sua virtude, é o que cumpre o seu próprio ethos e o nosso ethos de povo democrático: a aliança para o poder na base da negociação de cargos, programas e objetivos.

Essa prática é comum a todas as democracias. O caso da Itália é sempre o mais lembrado: durante anos vingou o chamado “acordo histórico”, feito entre arquiinimigos, a Democracia Cristã e o Partido Comunista. A idéia básica era manter a governabilidade e não deixar que o terrorismo (então de esquerda), criasse mais pernas do que já possuía. Isso enraiveceu os terroristas que, enfim, assassinaram Aldo Moro, o líder da Democracia Cristã e o grande pai do tal “acordo histórico”. O resultado foi simples: dali para a diante o ethos democrático da população reagiu contra os terroristas de esquerda, as “Brigadas Vermelhas”, e eles então se viram acuados e acabaram perdendo a guerra contra o Estado democrático.

No entanto, nem todo acordo é ético só por ser um acordo. O “mensalão” era um acordo: os deputados corruptos confiavam no PT (ou no grupo petista que mantinha essa prática) e este, por sua vez, fazia os depósitos mensais para os congressistas, de modo que assim, em qualquer votação no Congresso, sempre houvesse a garantia de que o governo não iria perder em qualquer coisa que propusesse. O costume da democracia, seu ethos, é a negociação, a aliança, mas o “mensalão” não era uma aliança política, era um suborno. Ou seja, ele não tinha nenhuma faceta pública e, enfim, visava tirar a autonomia do congressista envolvido. Assim, a idéia de aliança, que está baseada na sua definição, a de ser uma alternativa à violência, cai por terra, pois o suborno é uma violência. O suborno visa eliminar a liberdade do outro e, no limite, visa anular o outro, tirá-lo fora do jogo das vontades livres que estão pressupostas na aliança. No limite, o “mensalão” trabalharia com um Congresso só “de fachada”. Sem Congresso em funcionamento correto, a própria democracia estaria comprometida. Assim, a negociação e o acordo entre o PT (ou um grupo do PT) e os deputados que se deixaram corromper não cumpriam nenhum ethos da democracia, mas, antes disso, cumpriam com o objetivo de eliminar a existência da democracia.

Como se pode ver, nem no caso do acordo Lula-Maluf e nem no caso do “mensalão”, recorremos à moral. Não falamos em práticas morais. Estamos no campo ético e tratamos as questões eticamente, sem moralizá-las. Tratá-la moralmente é o erro. Cair para o campo moral, quando o campo do que se quer analisar é o campo ético, é cair para avaliações, nesse caso, da pessoa chamada Lula e da pessoa chamada Maluf, e supor que o tal acordo é espúrio porque eles estão é loteando a prefeitura de São Paulo em função de falcatruas posteriores, feitas pessoalmente ou em grupelhos. Tratar o “mensalão” como problema moral é, por exemplo, querer julgar José Dirceu como um gangster que, solitariamente, quis destruir a democracia e exercer ele próprio o poder, em seu benefício, fazendo do próprio Lula apenas uma figura de fachada. Ainda que alguns possam achar verdades nessas avaliações, elas são de ordem moral, não de ordem ética. E a filosofia política, no caso de estar querendo trabalhar no campo ético, deve ficar com uma análise que não reduza nem os políticos e nem os cidadãos a outra coisa que não a políticos e cidadãos. Reduzindo-os a pessoas empíricas, X ou Y, há o esfacelamento do arcabouço vocabular (ou conceitual, para alguns filósofos) da filosofia política, e então entramos, na melhor das hipóteses, para análises de filosofia moral e da psicologia, e na pior das hipóteses, para o âmbito da fofoca política ou do folclore político.

Bem, quem não entendeu agora, não vai obter minha resposta. Eu desistirei dos com cabeça mais durinha!

© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Post scriptum:  há leitor que antes de ler filosofia política, se envolve com ideologias políticas, então, não consegue depois olhar as coisas pelo vocabulário próprio da área ou pelos conceitos próprios, e para tudo usam a idéia de “coerência ideológica” e “contradição ideológica”. Eu chamaria isso de erro de hiper politização. A filosofia política não se dá bem com leitores assim.