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[Bráulio Tavares]

 

Estávamos conversando num grupo de amigos e eu falei: “Drummond diz que mais vasto do que o mundo é o nosso coração”. Um dos presentes corrigiu: “Na verdade ele não ‘diz’ isso. Ele ‘disse’ – no passado, porque Drummond já morreu”.  Deixei passar porque o assunto principal era diferente, e parar para discutir este detalhe iria atrapalhar nosso rastreamento da outra idéia.  Mas essa interferência ficou cavucando no meu juízo.  Por que motivo eu tenho que me referir a um escritor no passado, somente porque ele já morreu?  Porque (não sei se é assim com os outros, mas comigo é) eu faço uma distinção muito clara, na minha mente, entre aquele senhor careca e de óculos chamado Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira e morreu no Rio, e o poeta Drummond, uma entidade metafísica que nasceu e brotou dentro daquele cidadão, produziu grandes livros de poesia, e que continua atuando, no momento presente, cada vez que alguém relê algum daqueles livros ou simplesmente pensa num dos seus versos.
 
Fala-se que a literatura é uma forma de imortalidade, e eu creio tanto nesta ideia que a estendo por conta própria a toda a palavra escrita ou falada. A palavra é uma enunciação que, uma vez preservada (através da escrita, da imagem filmada, etc.), é capaz de ser re-enunciada infinitas vezes. O ato de escrever e o ato de falar se enovelam sobre si mesmos, reiterando-se num processo sem fim. Quando leio uma frase de Drummond, a enunciação de Drummond está ali, intacta, sendo reativada pelos olhos do milionésimo leitor. Se leio uma carta escrita por meu pai e minha mãe, o momento da escrita, com tudo que ele continha (ou com a parte que a escrita conseguiu preservar), volta a acontecer diante dos meus olhos. Se vejo no YouTube uma entrevista de Fellini ou de Lennon, aquela palavra não é passada, é presente, é um passado instantaneamente conversível em presente vivo, pelo poder combinado da fala e da audição, ou da escrita e da leitura.
 

Devemos (ou pelo menos podemos, sem medo de dizer bobagem) nos referir aos poetas e escritores no presente, quando os citamos. Quando falo “Rimbaud acha que o poeta tem que ser um vidente”, é porque o homem Arthur Rimbaud já se desmanchou em moléculas, mas o poeta Arthur Rimbaud acaba de dizer isto agora, pelos meus dedos, pela milionésima vez. Rimbaud já morreu, Shakespeare talvez nem tenha escrito os versos dele que citamos, Homero talvez nem tenha existido. Mas quando citamos um deles estamos citando uma entidade lingüística integralmente preservada em si mesma, do modo como o som de uma orquestra inteira está preservada nos sulcos de um vinil ou nos bits-e-bytes de um arquivo digital.