A poesia de Sonia Leal Freitas
Por Cunha e Silva Filho Em: 26/08/2009, às 22H49
Cunha e Silva Filho
1. INTRODUÇÃO
Por circunstâncias várias, nunca pude acompanhar de perto a produção literária do Piauí nos seus diversos gêneros literários. Daí se explicar o meu quase completo desconhecimento de novos nomes de escritores daquele estado surgidos nos últimos anos e, por conseguinte, do nome de Sonia Leal Freitas. Desconhecimento que, agora, confesso deplorar, sobretudo porque a poetisa, nascida em Teresina, nunca me havia chegado ao conhecimento, seja através de amigos intelectuais, seja por estudos críticos de sua poesia.
Para qualquer estudioso da literatura brasileira é sempre lamentável que essa grande lacuna permaneça inalterável nesse imenso mar de escritores pouco ou nada conhecidos do público brasileiro, muitos dos quais de nível bom e mesmo excelente. Escritores que, isolados nas suas regiões de origem, sofrem uma espécie de avaliação redutora por parte da crítica de estados brasileiros que detêm maior peso hegemônico na avaliação da produção cultural do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul.
O exemplo de Sonia Leal Freitas, neste sentido, se me afigura paradigmático. A leitura do único livro de poesia por ela deixado, O cedro do Éden - que belo título! -, me surpreende e até me comove pela alegria de o haver lido.
A obra foi publicada em 2002, numa edição feita em Fortaleza, cidade na qual a autora fixara residência desde 1974. Sonia Leal Freitas teve formação primária, secundária e superior em Teresina. Cursou Letras. Ainda em Teresina exercera também o magistério superior de Letras Em 2008, infelizmente, veio a falecer prematuramente.
Consultando as conhecidas historias literárias piauienses disponíveis, nada encontrei sobre a autora quanto a informações biobibliográficas. Apenas encontrei um breve registro sobre ela no verbete do Dicionário biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto1 que informava sobre o estado natal da escritora, bem como referia ser ela uma contista premiada em 1985, pela participação no Concurso de Contos “João Pinheiro”, além de ter sido seu conto “O menino do Horto das Oliveiras” incluído na coletânea Outros contos piauienses.2
Pesquisando na minha biblioteca, encontrei aquela coletânea e constatei que Sonia Leal Freitas se classificara em segundo lugar no mencionado concurso. Até então, não sabia que era também poetisa. Vim a sabê-lo porque seu esposo, Francisco Rodrigues de Freitas,que conheci em Teresina, me enviara recentemente um exemplar de O cedro do Éden, juntamente com dados biográficos desta escritora.Verificando, depois, a útil mas incompleta “Divisão Periódica da Literatura Piauiense”, um encarte preparado por Herculano Moraes, vejo que o historiador situa a autora entre os poetas do período literário por ele denominado “Milenismo.” Em parte, se fez justiça à autora.
Além de O cedro do Éden, os dados me informam que a poetisa escreveu as seguintes obras, a serem brevemente publicadas: Antologia de contos, O conto infantil e Amana
2. ASPECTOS GERAIS DA POESIA DE SONIA LEAL FREITAS.
Antes de tudo, devo, por obrigação da função crítica, antecipar um julgamento que não posso silenciar diante da leitura de O cedro do Éden: é uma obra magnífica por todos os prismas pelos quais possa aquilatá-la. Nas linhas adiante procurarei justificar esta premissa.
Poucos livros de poesia, pelo menos da produção poética que tive oportunidade de ler, me deixaram tão forte emoção estética quanto esse conjunto de poemas reunidos em livro. Não se pense que esteja sendo muito condescendente com a profunda estesia que seus versos me provocaram..
Na lírica brasileira, há grandes vozes poéticas que admiro pela qualidade e elevado nível da expressão poética. Cecília Meireles seria uma delas.
Contudo, é fato que algumas obras, em qualquer gênero da literatura ou das artes em geral, parecem nos convocar à aventura do prazer da leitura, e sobretudo de uma (re)leitura que imprime em nós uma vontade de levar adiante o ato de ler com uma velocidade que nos causa espanto.
Ou seja, o ato da leitura desta autora provoca encantamento, não só pela absoluta perfeição da linguagem que lhe infunde uma forma artística original, fluente, mas também pelos artifícios retóricos com que plasma seus temas em peças artísticas avessas aos artificialismos forçados diante dos quais a obra literária não se sustenta nem nos convence.
A obra literária só é durável e eterna quando nela existe o sopro da vida, quando nos impele a pensar e a refletir sobre a visão do mundo nela espelhada, quando problematiza questões cruciais sobre a Natureza, os problemas da existência, os de ordem moral e filosófica. Só é perdurável a obra que, em alto nível de perfeição artística, põe em discussão outros temas fundamentais: o sentimento amoroso, a vida e suas limitações temporais, a morte em suas variadas formas de interpretação por parte do artista da palavra, a dimensão espiritual e as contradições inerentes à condição do homem na Terra, o ser do escritor e o seu principal instrumento de comunicação, a linguagem.
Minha convicção é que esse julgamento preliminar não foi ditado simplesmente pelo entusiasmo e fruição do leitor com a palavra poética da escritora. Foi, sim, pela qualidade da obra. Até parece que a obra procura o crítico por afinidades e sobressaltos com a novidade do texto.
Estou pensando, agora, num livro estudado e admirado por leitores e críticos. Refiro-me ao Eu (1912) de Augusto do Anjos (1884-1914). Obra única do poeta paraibano que nem por isso o impediu da consagração em definitivo devido às suas altas qualidades literárias e à sua inegável originalidade.
Sonia Leal Freitas é poetisa, ao que me consta, conhecida apenas regionalmente, e mesmo assim creio que em círculos bem restritos. Entretanto, esse único volume de poemas, pelas virtualidades de que se reveste seu discurso lírico, tem uma grande possibilidade de conquistar maior espaço de reconhecimento crescente de leitores de poesia e da crítica em particular Nele me surpreendem a soma, a combinação de elementos estéticos e técnicas de composição que o tornam um livro singular, de estranha e misteriosa beleza, à altura da grande poesia lírica brasileira.
Mário Faustino (1930-1962)3, uma vez, reprovava o excesso do sujeito lírico encontrado em muitos poetas brasileiros. Quer dizer, o poema auto-centrado na subjetividade como se toda matéria poética só pudesse ser poetizada por aquela entidade literária.
Em O cedro do Éden. do primeiro poema, “A ave da noite” até o derradeiro do volume, “A voz sonante”, é aquele sujeito lírico que se faz voz dominante, reforçado ainda pela voz feminina plenamente identificada pelas desinências correspondentes, não obstante em alguns poemas possamos encontrar o diálogo entre um “eu” e um “tu”.
Numa primeira tentativa de comentar o livro de Sonia Leal Freitas, penso que a hipertrofia do sujeito lírico não prejudica em nada o nível da mensagem. Nem tampouco sua dimensão estética. Vejo essa opção apenas como aquilo que, na ficção, se chama ponto de vista do narrador. Faço um parêntese no que concerne ao lirismo tout court predominante na autora. Há um poema nesta obra que se distancia do lirismo puro, porquanto seu recorte possui algo de epicizante, que nos perturba pela sua força de heroicidade. Falo do poema “Saga” (p. 259), de inquietante beleza. Longo poema de quase 4 páginas sem contarmos o verso de cada página.
A opção da autora pela subjetividade na exploração de sua temática se prende antes a uma lógica interna dos seus poemas: a de falar de si como construção de uma voz pessoal que procura atingir tanto a sua individualidade, os fundamentos da sua essência, de sua ontologia, diante do desafio do mistério do Cosmos, quanto permitir a travessia, a transitividade, para uma voz universal, dentro do espaço lírico da objetividade do ser para uma voz universal de corte religioso, da lição aprendida no convívio íntimo com os textos da Sagrada Escritura. A salvação existencial da sua subjetividade tem como eixo central a abertura para a fé cristã, num ritual composto de anjos, Nossa Senhora e Deus, enfim, de um ritual litúrgico, de unção cristã. Ressonâncias de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)? Talvez. Daí o tom por vezes bíblico do seu estro. A salvação, porém não vem com facilidade. Atrás de dela se veem alguns percalços, com a consciência lúcida da passagem efêmera pelo nosso planeta, que a faz afirmar profeticamente: (...) “Meu ato de viver, portanto,/não será breve, nem será longo”.4
O universo poético de Sonia Leal Freitas depreendido em O cedro do Éden se compõe de 49 poemas num livro de 284 páginas. À primeira vista, o que nos prende o interesse é a extensão de cada poema. Ao contrário do que fazem João Cabral de Melo Neto (1920-1999), ou outros poetas mais contidos, as linhas dos versos na poetisa piauiense se distribuem, em geral, pela largura do espaço da página. São, portanto, versos livres, longos, sem economia do espaço branco da página. Esta disposição visual, generosa, de cada verso exala um certo gosto pela solenidade do tom da mensagem lírica, e ao mesmo tempo nos dá uma leve impressão de que a poetisa está narrando e não cantando em versos. Veja-se como abre seu primeiro poema, “A ave da noite”:
A ave da noite rasga a tenda do meu abrigo
e despeja um grito estreito, longo, a língua do punhal.
Caminho dentro dele num corredor comprido sem fins e
sem saídas.
Invento a minha fuga e salto dentro do vulcão medonho
que me vomita em postas.5
(...)
Praticamente quase todos os poemas do volume iniciam-se com uma idéia primeira que, no seu desenvolvimento, se vai irradiando, ampliando seu foco inicial, através de uma sequência de conceitos e situações, geralmente em tom filosófico, sentencioso, de andamento solene. Quer dizer, o poema multiplica conceitos, como se almejasse congregar um amplo espectro de aforismos.
Dessa maneira, poder-se-ia constatar que a sua poesia pretende alcançar um objetivo: sondar, aprofundar a compreensão dos seres, individual ou socialmente tomados, numa dimensão, enfim, englobando a Natureza, o Universo. Vejam-se esses versos do poema “Alento”:
E vieste pedir-me o alento de palavras novas?
Não existem palavras novas para denominar a tua perda.
No teu exemplo, todas as palavras são antigas.
Já nasceram com os sentimentos dos homens:
gêmeos univitelinos em parto de dor e desespero.
Este novo que procuras está esperando
no ângulo de onde o teu desejo comanda a tua vida.
Qual é a tenda dos anjos operários de Deus?
Os anjos não estão aí para tanger as nuvens.
Nem para deitar pontes sobre precipícios.
A vida se arruma no trato dos seus próprios cuidados.
O que compete aos anjos é o dom da perspectiva.
Da tua perspectiva, inclusive.
Ou julgas que permaneces mergulhado na mesma manhã
de ontem?
Ou de há vinte séculos?
(...)
Aprende a sentir, nos cheiros que se soltam
e nos sons sobrepostos desta hora matutina,
o trabalho que a vida faz por ti, em ti.6
(...)
A esta altura de meus comentários, duas perguntas se me impõem no deslinde de alguns aspectos da poética de Sonia Leal Freitas: a) Onde se coloca, no panorama da poesia brasileira contemporânea, o estro desta artista? ;b) Como se comporta esta poetisa diante dos vários movimentos e manifestos poéticos do Modernismo de 22 até nossos dias? Pelo tempo de vida da poetisa, falecida no ano passado, aos sessenta e um anos, obviamente ela pôde acompanhar ou tomar conhecimento da poesia dos anos 70 e dos novos rumos da produção poética brasileira enquanto viveu. Não tenho dados concretos para saber qual foi a sua participação em Teresina no circuito da poesia local na década de 70. Mas, com certeza, todos os movimentos de vanguarda foram do seu conhecimento, pelo menos através de sua formação literária e em especial de seu aprendizado no campo poético: o Concretismo de 56, o Neoconcretismo, o poema processo, a poesia práxis, a poesia marginal, bem como as múltiplas tendências por que passou a poesia brasileira contemporânea7.
Ora, a tudo isso provavelmente esteve atenta e nem pôde sair ilesa dessas mudanças de rumos de dicção poética. de sua época e de sua geração. Quer-me parecer que dessa modernidade se beneficiou a sua poesia, mas ressalto logo que o seu discurso lírico foi buscar seu ponto de apoio, sua logística, na grande tradição do verso brasileiro e da tradição poética ocidental.
Indiscutivelmente, Sonia Leal Freitas domina um discurso lírico plantado na modernidade, sem, no entanto, fazer concessões mais ousadas ou radicais assentes na experiência a partir do Concretismo.
Seu percurso é de outra natureza. Prefere o caminho poético historicizado, de que a sua dicção está permeada. Em outras palavras, sua discursividade no campo da poesia está atravessada pelas sucessivas poéticas da tradição literária, não só na atmosfera de seus poemas de versos longos e majestosos, fortemente servidos de elevadas vozes do passado remoto ou mais próximo de nós. Estlisticamente, sua poesia é polifônica, não dispensando as raízes gregas mitológicas e poéticas (Homero) e ressonâncias que passam inegavelmente por Camões, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, os nossos simbolistas, sobretudo Da Costa e Silva, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, entre outras vozes líricas, sem se falar nas contaminações, pela via da prosa de ficção (Miguel Cervantes), da Bíblia, para ficar só nestes exemplos de seu repertório de intertextualidades.
Da mesma sorte, o substrato poético das vanguardas brasileiras deixou marcas significativas em Sonia Leal Freitas. Da tradição e das vanguardas soube extrair com equilíbrio e lucidez aquilo que lhe será decisivo para dar forma, sentido e dimensão à modernidade do seu verso. Modernidade entendida como uma forma de inserir-se no mundo dos nosso dias, com todas as suas enervações e perplexidades ante as forças da vida social que arrasam com os resquícios dos valores da pessoa humana em estilhaços de individualismo mórbido, excesso tecnológico e tentativa de anulação das subjetividades. O repto da artista da poesia só poderia reduzir-se à agonia existencial, à solidão e à arte como lenitivo.
Um dado expressivo no seu verso é o peso qualitativo do seu domínio da linguagem e mais ainda da linguagem literário-poética. Poucas vezes, me surpreendi com poetas cuja perfeição e maestria no uso da arquitetura de poemas mantêm uma regularidade de excelência tão constante quanto percebo nesta poetisa:
(...)
Mais tarde –
quando já não despertar comigo o redemoinho de ser humana.
e de não entender minhas razões e ansiedades,
e de por isso sofrer quando trago tanta beleza jorrada
dos poros da terra
- que eu seja um ninho quente, numa árvore do caminho,
para onde voltar, à noite, os passarinhos, cheia de amor,
cantando de saudade. (“Amanheço”)8
Ora buscando a tradição nos temas e na própria linguagem, ora se voltando para o experimentalismo de seus processos e técnicas de composição, Sonia Leal Freitas reitera sua atualidade em alguns poemas de magistral elaboração, nos quais o eixo do poema se concentra nas funções poética e metalinguística da formulação jakobsoniana, num exemplo de maestria formal-semântico-lúdica conseguida graças às lições bem assimiladas dos movimentos de vanguarda a partir do Concretismo de 56, segundo já salientamos, sem contudo, radicalismos estéreis ou pouco eficazes. São exemplos disso os poemas “Mor fologias”(p. 157), “Desvela-mente” (p. 79), “Línguas-gem” (p.117). São poemas de grande inventividade, que merecem análise mais profunda.
Recursos comuns de viés vanguardista são os exemplos nos quais a poetisa desarticula vocábulos, que, por isso, sofrem alterações semânticas ou caem no espaço da ambiguidade.
Outro recurso digno de registrar no estro da poetisa é o tratamento dispensado largamente por ela na criação da sua imagética. De resto, a metáfora nesta autora se apresenta como uma das forças-motrizes de sua poesia. Seu campo metafórico merece estudos especiais que extrapolam os limites destes comentários.
Sua sintaxe espaçosa, muitas vezes de corte aristocrático, a leva a um uso peculiar aos poetas parnasianos, simbolistas, sendo igualmente encontradiço em Da Costa e Silva, a saber, o emprego do infinitivo antecedido de preposição quando , no português do Brasil, usamos a forma do gerúndio, o campo semântico constelado de vocábulos de alta frequência no Simbolismo, como “catedral”, “sangue”, palavras maiusculadas, vocabulário litúrgico, “astros”, “Nada”, “siderais”, etc., etc.
Um último aspecto que desejo ora levantar diz respeito a alguns temas de sua poesia, e deles mencionaria: a vida, encarada do prisma pessoal, o amor, a amizade, a família, a solidão, a morte. Esta última se manifesta como uma tema recorrente e com uma dimensão que me parece um vaticínio. Outros temas acrescentaríamos: a terra natal, a Natureza, o rio Parnaíba, as injustiças sociais, o sinfronismo, a “ânsia de imortalidade,” os dois últimos tão presentes em quase todos os grandes poetas.
Um pormenor final, no que tange à tematização de seus poemas e que aqui pretendo salientar mais uma vez. Sonia Leal Freitas, a despeito de todas as contradições ou aporias do seu estro, torna evidente um ponto de apoio aos seus problemas, dores e aflições: a religiosidade, sobretudo nos exemplos vinculados diretamente a referências do velho e do novo Testamento.Isso lhe será refúgio e tábua de salvação. Entretanto, a solução das angústias da condição humana, no plano pessoal da artista, é poetizada em amplo espectro de argumentação, contraditória ou não.
Cada tema ventilado se manifesta poeticamente de maneira cuidadosamente contida. Por exemplo, ao poetar sobre o rio Parnaíba, ou sobre sua terra natal, como o fizeram outros autores de sua terra, sobretudo Da Costa e Silva, nos poemas belíssimos “Rompe a trovoada numa cavalgada imensa...”(p. 279) “Regressos” (p.235) “Memórias” (p. 143), praticamente as notações topográficas não se dão pela nomeação direta, explícita. Há, sem dúvida, uma emoção estética, porém o tema se desdobra de forma comedida, sem arroubos nem ostentações. Em “Regressos” (p.235), o verso “escorre entre a cantiga de dois rios,” o poema não nomeia o rio Parnaíba e o rio Poti, tanto quanto o Piauí não é claramente citado. Em “Memórias” acontece a mesma coisa. Neste longo poema, retomam-se referências da paisagem, do telurismo, das pessoas queridas (ambiente familiar), da terra natal da poetisa. Poema rico de sugestões, aliando descrição à narração sobrepondo quadros distintos: natureza, vida família, novamente natureza, e voz autobiográfica,9 compondo memórias. O sujeito lírico, no presente, vai ao passado da infância da autora que, por seu turno, torna-se presente, mas um presente na memória de adulto, tal qual no poema de Manuel Bandeira, “Profundamente.”10 A terra natal se vai pouco a pouco se configurando pelos nexos vocabulares identificadores : “chapada”, o “rio”, as “reses,” o “pasto”, o “coqueiral,” os “cajueiros”, até culminar no sintagma “céus da minha terra”. Tudo se processa no poema em pequenos quadros, descritivos , narrativos ou na retomada da voz subjetiva. Repete-se aí , em parte, o tema do ubi sunt? bem presente no mencionado poema bandeiriano. A poetisa, mais uma vez, nesse poema, para além do forte lirismo, mantém certa discrição no extravasar a saudade doída de sua torrão natal. Não nomeia de imediato, prefere a emoção velada e silenciosa
3. CONCLUSÃO.
As linhas atrás não tiveram a pretensão de aprofundar a análise da multiplicidade de ângulos que a poética de Sonia Leal Freitas está a merecer da parte da crítica especializada . Apenas toquei em alguns pontos ou tópicos que lograssem propiciar uma visão global da sua poética. Sua obra, pouco estudada ainda, se coloca, assim, como um desafio à argúcia dos estudiosos e pesquisadores da poesia brasileira. Sua poesia, complexa em muitos planos, não só no domínio da linguagem, dos temas, da sua “retórica poética”, mas nos altiplanos da filosofia, da psicanálise, do estudo das influências nacionais ou estrangeiras sobre o seu verso, oportuniza um vasto território de sondagens e de arqueologias nos fundamentos da epistemé de seus processos de criação literária.
O que não se pode omitir é a certeza de que sua voz poética acresce e dignifica, pelo seu elevado nível, a produção da poesia piauiense de todos os tempos e confortavelmente se posiciona no seleto grupo dos grandes líricos brasileiros. O cedro do Éden, pelo número grande de poemas nele reunidos, me dá a impressão de estar diante de suas “poesias completas.” Não é obra de estreia, mas de consagração definitiva.
NOTAS:
1 NETO, Adrião. Escritores piauienses de todos os tempos: dicionário biográfico. Teresina: Halley, S. A., 1995, p.123.
2 FREITAS, Sonia. “O menino do Horto das Oliveiras”. In: Outros contos piauienses.Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1986, p. 49-52.
3 Ver FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
4 FREITAS, Sonia Leal. O cedro do Éden poesias. Fortaleza: S.M L.R., 2002, p. 153.
5 Idem, p. 11-12.
6 Idem, p. 21.
7 Consultar MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 5º Modernismo. 3 ed. ver. e aumentada. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. Ver capítulos “Vanguardas”, p. 427=439., “Atualidade”, p. 513-517. Consultar também BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo; Cultrix, 2001. Ver a seção “Poesia ainda”, p. 485-488.
8 FREITAS, op. cit., p. 27-28.
9 Ao me referir à voz autobiográfica me apoiei em Alfredo Bosi, quando ele propõe, com muita lucidez , no estudo da poesia brasileira dos anos 70, três tendências dentre outras: “o discurso poético, a “fala autobiográfica” e o “caráter público e político da fala poética”, op. cit., p. 487. Creio que a poética de Sonia Leal Freitas engloba essas três tendências, sem querer aqui absolutizar esse enquadramento.
10 O tema do ubi sunt? é analisado com brilho por Davi Arrigucci Jr. na Terceira Parte, capítulo 7, seção 3 do seu estudo sobre Manuel Bandeira, Humildade, paixão e morte – a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo; Companhia de Letras, 1990, p. 217-225.