A MORTE DE ANITA
Por Elmar Carvalho Em: 10/01/2014, às 07H35
ELMAR CARVALHO
O ano que passou foi para mim de muitas perdas. Em abril, mês de meu aniversário, perdi a minha mãe. Aproximadamente um mês depois, falecia nossa tímida e meiga cachorra Belinha. Sobre essas duas mortes me reportei neste diário. Posteriormente, ao longo de 2013, outras pessoas de minha amizade, de meu bem-querer e admiração, foram convocadas pela velha ceifeira. Sobre isso falarei em próxima oportunidade, até mesmo no intuito de espantar e exorcizar esse velho fantasma, que nos estigmatiza com a ausência e a saudade.
Na madrugada do dia 30 de dezembro, antevéspera de um novo ano, que espero me seja menos carrasco, faleceu a nossa cadelinha Anita. Foi o coroamento de espinhos de um ano de muitas perdas e infaustas notícias.
Essa linda e fofa cachorrinha nos acompanhou por mais de doze anos. Veio para nosso poder ainda em tenra idade, a pedido de Elmara Cristina, que era a sua dona. Encheu a nossa vida e a nossa casa com a sua presença marcante, com a sua companhia, um tanto voluntariosa e possessiva, porquanto ela era nossa e nós éramos dela. Sobre seu temperamento, hábitos e manias já escrevi vários textos, publicados na grande rede, aos quais remeto o leitor eventualmente interessado.
Em sua juventude era portadora de uma exuberante beleza, e chamava a atenção de todos que a viam, adultos e crianças. Certa feita uma menina, encantada com a sua fofa e magnética formosura, tentou acariciá-la, não sem antes perguntar se ela mordia. Advertimos que ela era algo zangada com os estranhos, e não gostava de muitas efusões e intimidades. Mesmo assim a garota tentou afagar a Anita, que rosnou, tentando mordê-la. A menina puxou a mão com incrível rapidez, reconhecendo o óbvio que já lhe fora prevenido: - Ah, ela morde!...
Anita envelheceu sob nossos cuidados. Acompanhamos-lhe a decadência vital, as suas doenças e achaques. Foi levada regularmente às clínicas para consultas, tratamentos, exames, banhos e tosa. Era o mínimo que lhe poderíamos dar, em troca da alegria e ensinamentos que ela nos propiciou, ao longo de nossa convivência. Em sua velhice, tornou-se cardíaca e passou a ter problemas pulmonares, que lhe causavam uma espécie de tosse ou pigarro. Às vezes latia, de forma incisiva, no silêncio das madrugadas. Suponho que sentisse algumas dores ou incômodos, apesar dos medicamentos que lhe ministrávamos, por recomendação da medicina veterinária.
No dia 23 de dezembro, seguimos para Parnaíba, levando-a em nossa companhia. Por ocasião do natal, ela adoeceu, tendo apresentado uma supuração vaginal. Foi levada ao veterinário, que após exame e indagações aos donos, disse que ela apresentava sério problema nos ovários, pelo fato de nunca haver cruzado. De fato a nossa Anita, ao contrário da ninfeta da minissérie global de igual nome, era virgem, e nunca manifestou interesse pelos cães que encontrou em raras circunstâncias. Nossa família, da qual a considerávamos parte, lhe era o bastante, e de nada ela aparentava sentir falta, a não ser de nossos cuidados e de nossa companhia.
Anita teve alta no dia 28, e nesse mesmo dia a levamos para casa, pela manhã. Contudo, na tarde do dia seguinte, domingo, como ela gemesse e demonstrasse estar muito debilitada, a levamos novamente à clínica. Os atendentes acharam que era melhor ela voltar a ser internada, porquanto poderia precisar de aparelhos e medicamentos que não teria em casa. A cadelinha, encontrando uma porta de consultório aberta, para lá se dirigiu, como se precisasse de repouso e isolamento. Diante disso, embora com alguma relutância, tomamos a decisão de entregá-la aos cuidados da casa de saúde.
Para nossa imensa consternação, cedo da manhã da segunda-feira, véspera do final do ano, recebemos, por telefone, a informação de que Anita falecera na madrugada. Segundo nos disseram, sofrera uma parada cardíaca. Ainda lhe aplicaram oxigênio, mas sem sucesso. Espero que ela tenha tido uma boa morte, sem sofrimento, mas disso jamais teremos certeza.
Eu e a Fátima já havíamos tomado a deliberação, alguns anos antes, de que ela seria enterrada perto do memorial a meu cunhado e amigo Zé Henrique, no local onde ele sofrera o acidente motociclístico do qual veio a falecer, e onde já se encontrava sepultada a nossa cadela Belinha, na periferia de Altos, na saída para Campo Maior (1 Km após a linha férrea). Entretanto, eu já antevendo a possibilidade de a sua morte ocorrer em Parnaíba, imaginei que ela deveria repousar para sempre à sombra de verdejante e frondoso pau-d' água, existente no quintal da velha casa da Várzea do Simão, na qual moraram e morreram João Simão e dona Filomena, pais de Fátima, que imediatamente concordou com essa sugestão.
Recebemos na clínica o corpo de Anita, e seguimos para o local do sepultamento. Ao meio dia, bem junto ao tronco do pau-d' água, para ela melhor ficar resguardada, o Reginaldo cavou a sua pequena cova. Pedi que fosse um tanto funda, para que nenhum bicho incomodasse o repouso eterno do pequenino cadáver. Retiramo-lo da caixa e do invólucro de plástico.
Envolvemo-lo em tecido de algodão, para que ele mais eficazmente se integrasse ao pó da terra, de que somos todos constituídos, e para que melhor a matéria orgânica fertilizasse a terra, e se tornasse seiva que alimentasse a bela e sobranceira árvore que lhe daria abrigo e sombra. Cuidadosa mas firmemente, cobri o corpo de Anita com a terra retirada. Não mais a verei, porém sempre a estou revendo em minhas lembranças, em meu pensamento, em minha saudade. Agradeço a Deus por nos tê-la dado, por mais de doze anos de enriquecedora convivência.
Não sei se os animais têm alma. Se tiverem, sei que a de Anita estará em uma bela e aconchegante morada, porque ela, a seu modo, nos amou e cuidou de nós, em sua fidelidade e bravura canina. Afinal, fomos a única família que ela conheceu e teve. E todas as vezes em que eu vislumbrar o sol reverberando intensamente nas verdes e esmaltadas folhas do imponente pau-d' água, de suntuosa e acolhedora copa, sob a qual, tantas vezes, costumamos ficar, lembrar-me-ei da mimosa e fofa cachorrinha, que nos deu alegria e amor sem jaça, escoimado de qualquer interesse espúrio.