A memória como perspectiva vital no romance Beira rio beira vida
Em: 18/06/2006, às 03H39
“a vida morna se repetia, um sonho, um pesadelo”
Assis Brasil
Ao longo dos anos, o conceito de memória passou por constantes e complexas modificações, variando conforme a esfera histórico-cultural. De acordo com as concepções vigentes, cada época a emoldurou sob parâmetros específicos. A pesquisadora Zilda Kessel, focalizando o modo como a memória foi concebida em épocas diferentes, esclarece que as tentativas de explicá-la se davam através de metáforas compreensíveis, embasadas em conhecimentos característicos de cada o momento histórico. Por exemplo, “o poeta Cícero [explicou] a memória fazendo uma analogia às marcas deixadas na cera pelos homens”(KESSEL, s/d, p.1). No contexto da Antiguidade Grega, a memória se relacionava à divindade Mnemosine que, tendo conhecimento onisciente acerca do passado, presente e futuro, motivava as lembranças, cuja significação ia além de situar os acontecimentos nos parâmetros temporais, uma vez que alçava uma busca às próprias origens e, desse modo, possibilitava uma compreensão mais apropriada do devir.
Em meio aos romanos, privilegia-se a memória enquanto propriedade de conservar informações. Ela era, portanto, imprescindível ao orador, posto que jamais podia lançar mão de registros escritos. Nesse sentido, uma boa memória reputava status dentro da arte retórica.
No período medieval, grosso modo, dados os rigores religiosos, a memória destacou-se como recurso precioso para a eficácia da tradição litúrgica: datas consagradas, dedicações litúrgicas, dia dos santos; enfim, quanto mais canonizações mais se elevava a carga de informações a serem metabolizadas. Tais informações, de pronto, deveriam ser assimiladas e transformadas em ações de respeito e assiduidade para com a Igreja.
Percebe-se, dentre os discursos renascentistas, que as reflexões acerca da memória passaram por expressivas modificações, mormente pelo impacto das pretensões científicas, cujas transformações estimularam a adesão das ciências físicas, biológicas, sociais e psicológicas no que tange à função e à utilização da memória no interior das relações sociais.
Das reflexões acerca da memória bem como dos vários aspectos que lhe estão relacionados – lembranças, percepções, representações, imagens – emergiram, ao longo do século XX, amplas explicações edificadas sobre diferentes bases epistemológicas. Nesse cenário, destacam-se nomes como: Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Michael Pollak (1948-1992), Pierre Nora (1951), dentre outros que se debruçaram sobre seu intricado campo de abrangência.
Para Henri Bergson, a memória estaria associada ao lado subjetivo do conhecimento que o indivíduo tem acerca das coisas, tornando-se o elo entre a matéria e o espírito. Na memória, o passado estaria conservado autônoma e inteiramente. Segundo Ecléa Bosi (1979), Bergson esforçou-se no sentido de conceder à memória um estatuto espiritual diverso da percepção. E foi “justamente a importância dessa distinção, e tudo quanto ela comporta de ênfase na pureza da memória, que vai ser relativizado pela teoria psicossocial de Maurice Halbwachs” (BOSI, 1979, p.16).
Maurice Halbwachs, francês executado em 1945 pelos nazistas, tratou engenhosamente tanto das ciências do espírito quanto das ciências naturais. Contudo, seu estudo de maior relevância se fez enquanto sociólogo, vertente que o conduzirá a uma postura diversa da abordagem psicologizante de Bergson, que concebia a memória em si mesma. Halbwachs relativiza os preceitos bergsonianos, maximizando seus condicionamentos sociais:
Para nós, ao contrário, não subsistem, em galeria subterrânea de nosso pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade, onde estão todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais nos representamos de modo incompleto ou indistinto, ou que, até mesmo, cremos que provêm completamente de nossa memória. (HALBWACHS, 1990, p.77)
Para o sociólogo, não existe memória puramente individual, pois o indivíduo interage com o meio e sofre a ação deste; portanto, Halbwachs propõe o conceito de memória coletiva, esclarecendo que embora a lembrança possa ter um caráter particularizante, não se configura como individual, pois remete a um contexto de interação. Ele postula que a origem da memória coletiva ocorre “na interação e no significado comum que a lembrança tem para o grupo, em uma referência direta aos preceitos weberianos” (ENNE, 1992).
Para Halbwachs, o passado jamais poderia permanecer incólume, tal como defendeu Bergson, considerando que a lembrança é construída por situações presentes no interior das representações que formam a consciência da atualidade. A lembrança de um fato da infância, por mais clara que pareça ser, não se recompõe como em outrora, uma vez que a percepção sofre alterações ao longo dos anos. Tal conclusão contraria o postulado bergsoniano de que na lembrança o passado seria conservado em sua totalidade.
Para Halbwachs, a memória individual está, irremissivelmente, atrelada à memória coletiva. Esclarece que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (op. cit., p.51), e que esse ponto de vista se altera, conforme o lugar que o indivíduo ocupa na sociedade.
Neste ensaio, será encaminhada uma análise do romance Beira rio beira vida, a partir do modo como as memórias, revestidas por um tratamento estético, transformam-se no fio condutor de toda a narrativa, observando os aspectos cardeais da teoria halbwachsiana. Beira rio beira vida é o primeiro livro da série intitulada Tetralogia piauiense, projeto literário do escritor piauiense Assis Brasil. As obras são ambientadas na cidade de Parnaíba, no período da primeira metade do século XX.
Em Beira rio beira vida, lancinantes reminiscências atravessam a trama, memórias vão grassando formas estéticas aos episódios, cuja narração remete à agitada rotina do cais de Parnaíba. A vida ribeirinha mobilizada pelas embarcações matiza gerações de marinheiros, canoeiros, barqueiros, taifeiros, enfim de todos os que têm suas trajetórias proliferadas em meio à agitação das águas, dos passos, dos gritos. Meretrizes se arranjavam pelas proximidades, dada a concentração da população masculina.
A ênfase da narração recai sobre a temática da prostituição em dois enfoques, especialmente: um exógeno, que fica a cargo do narrador impessoal de primeira instância; e outro endógeno, sob o comando da personagem Luíza, que vai tecendo a narrativa segundo a fruição de suas memórias.
Luíza advém de uma tradição de mulheres do cais estigmatizadas pela prática do “comércio da carne”. Adentrou o universo da prostituição como quem cumpre uma sina – a vida da avó, da mãe, uma maldição que se repetia nela. Cremilda, sua mãe, ouviu de uma antepassada que uma mulher havia sido presa, acusada de assassinar o amante, um rapaz rico por quem se apaixonara. Inconformada por pagar por um crime que não cometera, gritava e maldizia a tudo e a todos ao longo das noites na cela, submersa em uma revolta implacável. Ao dar a luz, amaldiçoou a filha e toda a sua descendência: “teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro” (BRASIL, s/d, p.35).
Embora o autor permita à personagem Luíza os discursos memorialísticos dos quais brotam a narrativa, a vida social do cais é a base espacial sob a qual o enredo é engendrado: “A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a calçada escura, cheia de lembranças” (op. cit., p.7). Partindo desse aspecto, o conceito de memória coletiva é basilar na condução desta análise.
A memória coletiva [...] envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal (HALBWACHS, op. cit., p.53-4).
A partir dessa matriz halbwachiana, pode-se afirmar que as lembranças da personagem Luíza, embora aparentemente individuais, remetem a uma vivência grupal, à interação com um contexto, àquilo que Halbwachs denomina de comunidade afetiva. As lembranças, no romance, não obstante advenham da consciência de Luíza, adquirem cariz coletivo por estarem ancoradas nas memórias do grupo. Outrossim, conta-se ainda com a voz do narrador impessoal e com as memórias de Cremilda, que juntas vão montando as cenas da vida no cais, numa recomposição de imagens que reforçam o sentimento de pertencimento das personagens em relação ao espaço social em que habitam. O romance rompe com a cronologia linear e com o narrador onisciente e a trama se compõe a partir de episódios suscitados pelos diálogos entre personagens; mormente, entre Luíza e sua filha, Mundoca.
O livro inicia e termina com a mesma cena: Luíza, já idosa, no cais, costurando roupinhas para sua boneca Ceci. Uma narrativa cíclica, cujos acontecimentos passam e repassam sob o comando das memórias evocadas. Esse recurso remete à valorização da fragmentação, da descontinuidade em detrimento das ações progressivas. As memórias, na linguagem alusiva das personagens, revelam o universo sofrível da vida marginal. Ali, naquele entretenimento diário, no final do dia, olhando o desvanecer do movimento do cais ao lado da boneca Ceci, sobrevinham à Luíza lembranças pungentes de um passado aviltado. O termo lembrança é tomado, aqui, segundo o pensamento de Halbwachs:
Lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente [...] Podemos chamar de lembranças muitas representações que repousam, pelo menos em parte, em depoimentos (HALBWACHS, op. cit., p.71-2)
O caráter ruminante da narrativa confere também um tom enfático aos episódios trazidos pelas reminiscências da personagem, episódios que têm lugar na vida de tantas outras mulheres do cais, vítimas do anonimato, sobretudo no que diz respeito à dialética companhia/desprezo. Na lida noturna, elas vivenciavam, sob o peso e o suor de corpos desconhecidos, a angústia da solidão.
Halbwachs postula que a rememoração individual só se dá no conjunto das memórias dos grupos com os quais o indivíduo se relaciona. No romance, pode-se perceber que da voz de Luíza emergem experiências comuns não só às meretrizes, mas também aos demais moradores do cais, separados das famílias da cidade pelas fronteiras da estratificação. Suas memórias, portanto, representam um cômpito das vozes marginais unidas pelo sentimento de pertinência calcado naquele contexto.
Cremilda, durante sua juventude, tornou-se uma das mulheres mais procuradas pelos homens em virtude da sua beleza e disposição. Na velhice, vivia bêbada e revoltada pela situação de desprezo, bebia e brindava “aos desgraçados”, que a negavam justificando que ela estava velha, faziam fila esperando por Luíza. Com Luíza também não foi diferente, o tempo afastou os homens, todavia ela não se revoltou como a mãe. Esperava pelo o salário que Mundoca ganhava na loja de tecido dos padrinhos. A madrinha não cansava de exibir a caridade feita a uma das desvalidas do cais.
Mundoca, desde cedo, mostrou-se avessa à vida de prostituição das mulheres de sua família, seu silêncio, desde a infância, já prenunciava a ruptura que ela encetaria. Não levaria aquelas memórias a futuras descendentes, como aconteceu com as suas ancestrais na perpetuação daquela dinastia. “Mundoca quebrara a tradição das filhas das mulheres do cais. [...] não se impressionava com as embarcações do rio – por onde andariam as lembranças quando murchasse? Quando estivesse ficando cega e sem dente?” (op. cit., p.86).
Assim, com Mundoca foi arrematada a história das mulheres daquela família no cais. O ofício passado de geração em geração, findava ali. Desarraigava-se a profissão, cujo salário continha o preço da dor e da depreciação de mulheres reificadas na obscuridade da subsistência. As memórias passadas de geração em geração encontravam em Mundoca seu limite de propagação. Ela teve sua infância atravessada por vozes e olhares estranhos que, na agitação das noites, adentravam o barraco onde morava com a mãe e a avó. Viviam em situação de penúria, embora Cremilda já tivesse tido uma vida menos escassa. Outrora, ela herdara de um amante uma fábrica de pilar arroz – o Armazém Santana, na beira do cais. Mas pro falta de melhores condições de gerenciamento, perdeu tudo. No armazém, trabalhava e morava um menino órfão, Jessé, que se tornou um grande companheiro para Luíza. Cresceram juntos, brincavam para disfarçar a solidão de suas vidas.
Cremilda, embora de posse do novo negócio, não abandonou a vida com os homens e, obrigava Luíza a pedir a bênção a cada um que chegava: “-Toma a bênção a teu pai, menina” (op. cit., p.82). Sua personalidade rasa impedia maiores afetos para com a filha. Portanto, Jessé era o refúgio, um consolo aos infortúnios da menina Luíza. Certa feita, ele resolveu partir, queria trabalhar nas embarcações, cansado da exploração que sofria. Na saída, recebeu apenas uma parte de todo o dinheiro que juntou na mão de Cremilda. Revoltado, desejou voltar rico “para comprar aquele armazém nojento” (op. cit., p.69). Quando retornou pela segunda vez, sem nenhuma fortuna a mais, encontrou Luíza grávida de Nuno, que ao ser comunicado do fato, negou a paternidade. Nas conversas com a filha Mundoca, recordava e contava sua história, montando-a desordenadamente: Jessé, Nuno, o cais...
A memória, tomada como locus das representações coletivas, perpassada, portanto, por múltiplos discursos, permite a Luíza um processo de reconstrução de experiências comuns ao grupo, em cujo processo de reorganização, ela pode perceber as marcas que lhe foram mais pungentes. Essa peculiaridade de sua agência no desenrolar da narrativa possibilita um reconhecimento da sua identidade social. Tal aspecto pode ser entendido como um fator de contribuição para a ruptura empreendida por Mundoca, “de certa maneira venceu ao não conseguir passar a tocha da degradação à sua filha” (CUNHA, 1979, p.136).
A boneca Ceci, constantemente, em seus braços, da infância à velhice, é testemunha simbólica das agitações e atrocidades escorridas pelas pedras do cais na luta ferrenha de cada dia. A cena que abre e finda o livro está povoada pelas palavras que Luíza dirige à boneca que repousa em seu colo à espera de mais uma roupa. Dava-lhe roupas, à proporção que dava, por meio das reflexões de suas memórias, um rumo novo à narrativa. O crítico literário Fausto Cunha considera que Luíza se realizava, vicariamente, por meio da boneca Ceci. Sob outra ótica, é possível perceber não, necessariamente, um ato de realização, mas quiçá de aliar a boneca às suas memórias, à sua identidade. Entre Luíza e a boneca Ceci há um elo concreto e público em contraste com os abstrusos contatos que mantivera ao longo do seu ofício. Ceci pode, assim, ser interpretada como um lugar de memória – expressão cunhada pelo historiador francês Pierre Nora. Tal expressão remete a marcos que servem de âncora para a memória e que sempre aparecem investidos por uma aura simbólica. Aura, que por sinal, envolve a boneca ao longo de toda a narrativa. Ceci, relacionada às possibilidades infantis, metaforiza uma sensação de segurança ao passo que suscita imagens que apontam para o companheirismo.
Os elementos evocados tanto pelas personagens quanto pelo narrador ganham, na obra, uma dimensão coletiva por meio de recursos estilísticos que conferem a identidade social como o fastígio da narrativa. Ademais, o autor contempla na obra o que Michael Pollak (1989) denomina de memórias subterrâneas – memórias que, por pertencerem às minorias, são lançadas no limbo da marginalização. Segundo Pollak, as memórias subterrâneas seguem numa linha subversiva no silêncio e só são elevadas em momento de crise, circunstância em que aflora, outrossim, uma marca identitária a esses expoentes silenciados. Em toda a Tetralogia, Assis Brasil promove a expressão de vozes silenciadas: barqueiros, canoeiros, meretrizes, ciganos, agregados, barraqueiros do mercado, enfim a Tetralogia piauiense outorga espaço a essas vozes tantas vezes silenciadas pelo cânone oficial.
Em Beira rio beira vida, Luíza narra, laboriosamente, uma trajetória sofrível como que tomando fôlego para prosseguir a vida, para não ver que o passar dos dias reforçam a adversidade social e a iminência da morte. Na miséria do barraco de madeira, onde passou a morar desde que Cremilda perdeu a fábrica de arroz, Luíza ouviu também as histórias da mãe, recebeu dela ensinamentos do ofício, iniciou-se laureada de beleza e vivenciou duramente o abandono, quando o tempo subjugou as formas do seu corpo. Mundoca, por seu turno, via a vida passar como grande fardo. Na loja, sofria o preconceito de ser a filha da Luíza do cais. Ouvia a mãe, mas raramente falava "ou mandava alguém para o inferno. Vá pro inferno, e estava terminada a conversa, mesmo que não tivesse sido molestada" (op. cit., p.8). Ao voltar do emprego, amiúde, encontrava a mãe sobre as pedras do cais, cosendo as roupinhas da boneca.
-Vamo indo, mãe.
-Já voltou do emprego, Mundoca?
-Ora, não está vendo que é noite?
-Estou perdendo a luz, minha filha. (op. cit., p.42)
Luíza falava até dormir. “Tinha que falar, falar, falar, até cair no sono na rede de tucum, para não pensar, para não pensar em quanta coisa, meu Deus?” (op. cit., p.9), tal qual Scheherazade que narrava para afastar a morte, Luíza narrava sua vida, a vida no cais, suas memórias eram seu legado, deixava-as para a filha, para que não morressem. A narrativa evidencia o quanto de projeção para o passado tem a personagem, comprovando que as memórias constituem o aspecto proeminente da obra: elas irrompem nas linhas do romance anos adentro como forma de alívio em relação a tudo quanto o ignoto futuro poderia trazer de isolamento, de cansaço, de destruição.
Referências bibliográficas
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