A MATÉRIA DIVINIZADA NA POÉTICA DE DIEGO MENDES SOUSA - ENSAIO DE ANA ARGUELHO
Por Diego Mendes Sousa Em: 08/08/2025, às 16H00

A matéria divinizada na poética de Diego Mendes Sousa
Abrimos os abismos
dentro de nós mesmos
de repente
caímos.
(Diego Mendes Sousa)
...
Meu caminho
é afogamento...
(Diego Mendes Sousa)
Por Ana Arguelho
Estou aqui, como sói diante de um sacrário, em atitude de reverência e deleite ante essa experiência sensorial e ancestral que chega dos confins da humanidade e da fecunda imaginação de um poeta que tem o poder de voar enterrado no chão. A borda do mar de Riatla (Brigada Mandu Ladino, 2025), de Diego Mendes Sousa, é mais um dos suntuosos presentes com que a generosidade poética desse mago da palavra nos brinda.
Com seus versos alados, de pés quebrados, ele nos conduz a uma borda de mar, um lugar de sonhos, onde o espírito diviniza-se carregado de encantamentos. De onde este extraordinário poeta tira o impulso para converter no divino a matéria? Certamente, não é Diego um simples – hóspede obscuro sobre a terra tenebrosa. Sua poesia o eleva a outra dimensão. Ao beber na inesgotável fonte que emana do seu ser poético, agora lendo A borda do mar de Riatla, posso reafirmar que estou diante de um poeta singular, único, que conduz o leitor a um lugar dado somente a quem sofre de encantamentos: Riatla, que ele vai nos revelando ao longo de seus poemas.
De onde chega Diego? Do éter, das estrelas? Das profundezas oceânicas? Vem de outras paragens... do seu – berço de sentimentos, de um – solo genesíaco, que faz brotar nele essa imaginação fecunda de voar por onde os pés navegam abismos. Vem de Riatla e para lá nos conduz pelo mistério da palavra.
Nessa aprazível e assombrosa caminhada, vou percorrendo a obra, tentando desvendar os diamantes de um trabalho lapidar que Diego Mendes Sousa de muito vem exercendo, o de produzir uma imagética arrebatadora em cuja imersão caminhos vão sendo recriados, por meio de rupturas com os padrões da linguagem, de demolição de estruturas linguísticas e poéticas, da criação de novos sentidos para o verbo, das novas roupagens com que veste e adorna a nossa bela e inculta língua.
Da Borda-d’água aos Altos-mares, Diego fere de morte a gramática, desalinha o verbo, rompe estruturas poéticas seculares, na audácia de cavar sentimentos, dores e infância, em uma memorialística resgatada do solo que ama, a Parnaíba, sua Pátria Particular, o rio Igaraçu e o Porto das Barcas, cujos segredos vão sendo revelados a cada passo da sua caminhada poética. Assim, extrai do seu âmago o poema subterrâneo e nele a doçura de uma sonora tarde de sabiás entre laranjeiras. Assim, caminham seus versos, sem padrões, sem peias, sem amarras, conduzidos só pela palavra, que provoca espanto e fascínio.
Diego Mendes Sousa, porém, não trabalha só a memorialística. É um profeta apocalíptico. Nele mescla-se a dor do declínio de uma sociedade e o futuro em gestação poética. Sua extrema sensibilidade em captar e transver a materialidade deste quadrante da história em que vivemos atesta que sua poesia é arauto do futuro. No majestoso poema Fim do Mundo, pela sua formidável voz – declinam-se as civilizações. Tudo despenca, tomba, converte-se em ruínas. As palavras, o sangue, o deserto. Horizontes e liberdade são soterrados, poetas e loucos são enterrados. A alma, o amor, as gerações ficam mudas, o mundo se cala. De frente com essa profecia concluo eu, leitora: aí não tem mais jeito. O coração vai a pique! Não obstante, somos despertados para o imprescindível urgente, para a luta, a tomada de posição. O resultado final, a síntese, é a produção de uma nova humanidade que escorre como fios de mel até nos envolver e conduzir por inteiro, com sua doçura, em um estado de graça. Como o poeta obtém nossa adesão total? Contrapondo o atormentado assombro com a infância – lenho das lembranças e lampejo arteiro – onde – o menino flutua o céu sem saber. Ou nos lembrando que – o dedo de Deus nunca termina, a poesia não termina, nem o silêncio termina. Ou ainda, com o – feitiço sensitivo do amor na polpa dos corações rejuvenescidos. O perfume, o ritmo e a partitura da beleza intraduzível.
Impossível vencer as páginas de uma obra que desborda a todo instante sem também transgredir preceitos da literatura formulados a eras e que acostuma o crítico a recorrer a modelos e padrões de análise sacramentados pelas teorias literárias. Não. A poética de Diego Mendes Sousa vai mais longe e consigo arrasta a análise. É preciso vestir o manto sagrado da pura poesia para aportar em Riatla, para sentir o poeta criar o divino e assim alcançar a plenitude do verbo insano e magnífico. Assim eu quis fazer e assim o fiz.
Infinitamente mais a dizer, mas minha pobre voz se cala e meus sentidos se põem em compasso de espera de novos encantamentos. Não tenho pressa porque Riatla é a oferta de um mar de beleza, de surpresas e encantamentos para alimentar a alma, os sentidos, a esperança em um mundo melhor, por longo tempo. Alimento para os dias nebulosos de uma sociedade em pânico. Porque para isso os poetas foram colocados no mundo. Para nos dar alento, beleza e sabedoria na caminhada. Um abraço, poeta. Obrigada.
Ensaio crítico de Ana Arguelho
Doutora em literatura, crítica literária e, sobretudo, amiga do poeta.
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FIM DO MUNDO
Poema de Diego Mendes Sousa
O coração foi a pique!
A pique derruíram o tempo
caíram os silêncios despencaram as casas
tombaram os sonhos cessaram as saudades
a pique as ruínas das palavras alvas
a pique o sangue sonolento
e mais nada...
abateram-se os desertos
derribaram o ser ambíguo
destruíram as mãos também vacilantes
desmoronaram o destino
ao fundo, os rios afundaram
os navios
a prumo, os navios naufragaram nos rios
os rios a pique soçobraram
as cidades
sucumbiram a terra
arrastaram o mar
apagaram do mapa
os oceanos
declinaram as civilizações
pau a pique
soterraram os pássaros
os horizontes
a liberdade
sepultaram os poetas e os loucos
enterraram o que havia à vista
a alma
o amor
e as gerações mudas
foram a pique
calado ficou o mundo
o coração a pique em outro abismo...