"A literatura tem que mudar a vida"

Entrevista a José Castello - publicada  na edição de hoje do Caderno Prosa e Verso (O Globo)

A mesa de jantar está coberta de livros, servidos à fome dos que entram. Nas paredes, quase não sobram espaços: pinturas, aquarelas, serigrafias, que sobem até o teto. Em um canto da sala, algumas pinturas em andamento, poucas, discretas, em que o próprio Ferreira Gullar trabalha. “Isso não tem importância. Faço só para me distrair”. Resiste um pouco a posar para uma foto ao lado de um dos esboços. Mas logo cede. Aos 80 anos, apesar da magreza crônica e do ar um tanto frágil, nada mais parece atingi-lo. 
A TV está sintonizada, em volume baixo, em um canal esportivo. Enquanto nos esperava, Gullar assistia a uma partida de tênis. Pergunto-me que papel o tênis, um esporte tão rigoroso, desempenha na rotina de um poeta. Talvez seja um contrapeso, talvez ajude em seu equilíbrio. Penso melhor, nos lances impecáveis, nas jogadas de grande precisão, na necessidade extrema de concentração. Sem dúvida, atributos do poeta Ferreira Gullar. Seria um erro, é claro, um grande erro, reduzir Gullar a eles. Mas eles estão presentes, todo o tempo, em seus versos. 
Dias antes, em Paraty, durante a Flip, dei com sua figura inconfundível estampada nos muitos telões espalhados pela cidade. Gullar viajou pela manhã, participou de uma mesa de leitura, depois fez uma palestra, e logo se recolheu ao hotel. Mais tarde, alguns amigos o pegaram para jantar. Tiveram imensas dificuldades de encontrar um restaurante vazio. A Flip é um evento pop, em que os escritores são cultuados como os roqueiros, ou as divas. Nada mais dissonante, nada mais incompatível com a figura silenciosa e lenta do poeta. 
Agora, em seu apartamento na Rua Duvivier, em Copacabana, ele está de volta a seu mundo. Sozinho, com as janelas fechadas para conter o ruído do trânsito, a luz inclinada do sol que apenas acaricia seu rosto. Não precisa de muitos movimentos, pode falar em voz baixa, pode concentrar-se em si mesmo. Com serenidade, e até uma discreta doçura, submete-se à seção de fotografias. Enfim, nos acomodamos frente a frente, em torno da mesa de jantar. Não para uma refeição, mas para uma conversa. Faz todo o sentido: um poeta se alimenta das palavras. Falo pouco, muito pouco. Uma boa parte das perguntas que se esboçam em minha mente permanece ali mesmo, em pensamento. Se aqui as reproduzo, a rigor mais pensamentos que perguntas, é só na esperança de aproximar o leitor do diálogo silencioso que travamos. Gullar me conhece bem, embora não sejamos amigos íntimos. Sabe o que penso — é um leitor atento e crítico. Sabe, perfeitamente, o que venho perguntar e, antes que eu pergunte, já me responde, em palavras certeiras. É o poeta que se entrevista, ele não precisa de mim. Sirvo apenas de testemunha. 
Não gosto de gravadores, prefiro anotar à mão, em pequenos cadernos. Logo percebo que a ausência da máquina, substituída por meus garranchos, lhe cai bem. Enquanto falamos, algo se escreve. Sou eu quem anoto, mas quem escreve, de fato, é Gullar. Vivemos uma bela experiência, em que a entrevista se aproxima de um encontro. Eu o escuto — mas ele, antes que eu perceba isso, também me escuta. Minha presença de repórter lhe basta para que, sem precisar de mim, se ponha a falar. Estranho, belo lugar em que me coloca: o de confessor. 
Embora mantenha o mesmo tom de voz, nas entrelinhas posso perceber os momentos de emoção forte, uma raiva contida que ora aparece aqui, ora ali, e um pouco da dor de quem, mesmo sempre escrevendo “por prazer” — como ele faz questão de assinalar —, atravessou um longo caminho, uma longa viagem. Ainda o atravessa — seu livro mais recente, “Em alguma parte alguma”, é uma prova de que conserva não só todo o vigor criativo, como está em seu apogeu. Um livro impecável, em que a poesia, enfim concluída a grande travessia do mundo, agora se volta para si própria. 
Os 80 anos, para Gullar, não são a idade da consagração e das honrarias. São um momento em que, atravessadas oito décadas, e mais do que nunca, ele está pronto, talvez como nunca teve, para ser o que é. Poeta, grande poeta, um dos maiores da língua. Enquanto o ouço, mesmo atrapalhado com minhas anotações, tenso para que nada me escape, um sentimento de serenidade se apossa de mim. Não estou só diante de um grande poeta, estou diante de um grande homem. 

Para ler a entrevista, acesse o Prosa e Verso