Por Antônio Francisco SousaEm: 05/12/2008, às 20H39
Chamávamo-lo Rui Barbosa, embora tivesse a fisionomia de José do Patrocínio.
Almir, na verdade, era seu nome. Colega mais velho durante nosso curso técnico e que, talvez por isso, acabou sendo um líder sem mandato.
Consultor intelectual em OSPB e EMC (Organização Social e Política do Brasil e Educação Moral e Cívica, disciplinas do tempo da ditadura, alguém lembra?). Achava a língua portuguesa muito mais esnobe do que complicada. Não suportava ouvir falar em sintaxe, léxico, semântica. Fonética exasperava-o. Tanto que nas avaliações de gramática sempre se dava mal, como muitíssimo bem se saía em literatura.
Certa feita, para surpresa geral da rapaziada, Almir chegou à sala de aula dizendo que estava pensando em criar a própria língua. Não foi levado a sério, claro. Mas deveria ter sido, pois durante o curso, que atravessou aos trancos e barrancos, esforçou-se para cumprir a promessa e conseguiu.
No início do último semestre apresentava à turma a primeira versão oral e escrita de sua inusitada e exclusiva nova forma de comunicação – uma gramática com as respectivas regras -, contida num calhamaço de papel que somente ele entendia como fora organizado. A despeito da admiração que gozava junto aos colegas, não foi possível evitar que gargalhadas quase unânimes espocassem. Menos daquele indivíduo que, invariavelmente, se mantinha arredio e ensimesmado, num mundo próprio.
Rui não se dera por vencido. Desde a apresentação de seu idioma, passou a praticá-lo: copiava as aulas, tanto em português ou inglês, quanto nele, que não era uma derivação do esperanto nem se portava como tatibitate.
Ao final do curso alguns colegas, dentre eles, Almir e o esquisitão, prestaram vestibular para a Universidade pública; a bem da verdade, a única que havia à época. Os dois não lograram êxito. A “última flor do lácio” os abateu no meio do caminho.
Ano seguinte Almir foi aprovado para Direito. Como num passe de mágica, afastou-se de sua criação lingüística. Inexplicavelmente, adorou latim, que, ao que parece, suprira a lacuna de suas esquisitices. Ah! O outro também “passou”, não para o mesmo curso, mas pagou algumas disciplinas com Rui.
Quatro anos depois a cidade ganhava um novo bacharel em Direito e, a seguir, um advogado talentoso, com sua aprovação para a Ordem.
Todavia, o destino deu uma rasteira em Almir. Algum tempo depois, dirigindo o veículo que acabara de adquirir com o dinheiro da primeira grande causa vencida, envolveu-se num grave acidente. E aconteceu o pior: ele faleceu. De certo, Deus o chamara para fazer dobradinha com o verdadeiro Rui Barbosa.
Dia desses, um amigo comum, nosso e de Almir, comentou conosco a respeito da leitura que fizera de artigo de um contista que, soube, julgava-se muito melhor que os demais, talvez pelo fato de se considerar, também, crítico de arte e literatura. O instigante estilo do cidadão – onomatopéico, sibilante e sincopado – ainda que com muito pouco a dizer e menos a se compreender, segundo ele, chamou-lhe a atenção. Estranhamente, trouxera-lhe à lembrança Almir. Havia naquele texto um quê de intimidade. Lógico!Claro! Muitos dos termos utilizados pertenciam à língua criada pelo velho amigo falecido. Outra coincidência: o autor do texto não era outro senão o manso e sorumbático colega de turma. Graduara-se em letras e fizera mestrado em Literatura da Língua Portuguesa. Na visão de bajuladores de plantão, era um escritor profícuo e denso; na de leitores comuns, pífio e limitado. Na de todos, um boêmio inveterado, apreciador de noitadas regadas a álcool e extravagância.
Não houve como conversar com o disseminador da língua de Almir, mas o fato serviu para manter-nos vigilantes. Comprometemo-nos a, na próxima vez em que o malandro esquecesse da fonte, ao escrever algo se locupletando dela, cobrar satisfação, levando ao conhecimento daqueles que o tomavam por expoente de vasta cultura, de onde ele colhia tanta sapiência.