A ILHA DO SONHO E DO ENCANTO
Por Elmar Carvalho Em: 23/08/2014, às 05H22
ELMAR CARVALHO
De súbito o velho e empoeirado ônibus deixou a esburacada estrada carroçável e entrou por uma vereda de chão desnudo.
Quando dei por mim o veículo mergulhava num abismo. Só que em vez de despencar adejava suavemente. A paisagem, algo surreal, era de uma beleza jamais vista.
As árvores, de variados tamanhos, eram muito vivas, bem verdes e brilhantes, de diferentes formas e folhagens, luxuosas, luxuriosas, luxuriantes, e se embalavam e acenavam e bracejavam, movidas por vontade própria, interagindo com a gente.
Embora sentado numa desconfortável poltrona eu tudo via, com impressionante facilidade. Só agora me causa espanto como é que de uma estreita janela de um anacrônico veículo eu pudesse ter aquela visão panorâmica.
Vi uma caprichosa escultura, criada aparentemente pela natureza, através do cinzel da chuva, do vento e do tempo, feita de areia suspensa no ar, formando arcos de uma gruta e desenhando góticas estalactites. Surpreendentemente a matéria arenosa parecia macios e diáfanos flocos de nuvens, até mesmo pelo fato de que pairava sobre a orla do lago, sem necessidade de escoras e esteios, com os seus arabescos e rococós.
Na verdade essa gruta era o pórtico de entrada, por onde o ônibus passou, que dava para um lago de estranha água levemente azulada e fosforescente, e efervescente como se nela houvera mergulhado um imenso Sonrisal, na qual nadavam uns graciosos peixes, multicoloridos e fosfóreos, sobre a qual passávamos, em verdadeira levitação. Nas rochas que emergiam do líquido elemento pousavam cândidas sereias, algumas metade peixes e outras metade pássaros, todas de voz maviosa e alucinante. Tinham esplêndida forma e exuberantes seios divinais, esculpidos com perfeição natural, e não bombados a silicone.
Sem se saber como, surgiram grandes e magníficas esculturas, que pareciam de terra, mas que eram ao mesmo tempo de cobre e ouro, de perfeição nunca vista. Eram grandes e estranhas formas, sem pedestais, completamente soltas no ar. Lembravam estilizadas catedrais, suntuosas mesquitas, altíssimas torres e minaretes, encarapuçados nas nuvens.
As casas e castelos não pareciam obra de arquitetura, mas bizarras e belas criações de um escultor genial e maluco. Genialmente maluco.
As próprias montanhas e colinas pareciam pertencer a uma outra dimensão ou a um estranho planeta, em suas formas inimagináveis e brumosas.
Num dado momento tive medo de que o ônibus despencasse e fizesse um fatal mergulho na fosforescência mágica daquela água. Com o meu pânico o ônibus começou a cair, mas imediatamente recuperei minha fé e ele passou a flutuar sobre a efervescência da água, mais suavemente que um veleiro. Depois, alçou vôo novamente.
Quando menos esperei começaram a passar grandes e desengonçados pássaros, semelhantes aos da pré-história, contudo de suave e elegante vôo, em que planavam fazendo as mais esquisitas e belas coreografias que meus olhos já viram, na verdade um alucinante balé, sob a regência de um pássaro-rei, o uirapuru talvez daquelas criaturas, que entoava um canto, sublime e inaudito e inefável, que acaso se rivalizava com o coro dos anjos e arcanjos, por nós (in)imaginados.
Não sei bem como - o tempo e o espaço não faziam nenhum sentido - me encontrei caminhando por estreitas e tortuosas ruas daquela ilha. A luminosidade era frágil, frígida, fosca, furtiva, como se não fosse nem dia nem noite. Uma lua de cristal, próxima e grande, emitia sua pálida e prateada luz. Estrelas brilhavam, estranhamente próximas, com muita intensidade e rápido piscar. Tinham variadas formas e cores, e se movimentavam em labiríntico bailado. Cometas circulavam, movimentando a cauda, como descomunais cabeças-de-prego, mais rebolantes que uma top-model, deslumbradas e deslumbrantes sobre a passarela. O céu era furta-cor. Na verdade, tudo aquilo mais parecia um gigantesco e mágico caleidoscópio.
A suavidade permanente do vento era talvez um sopro de Deus. Refrescante. Revigorante. Extasiante. Nele se pressentia uns leves laivos de cor e substância. Quase se podia retê-lo entre os dedos. Deixava uma sensação de paz e beatitude.
Como se estivessem saindo de um templo e fizessem parte de uma invisível quermesse, vi várias pessoas, de ares estranhos. Solenes e severas. Passei por elas e as contemplei muito bem. Contudo, elas pareciam não me ver e eu não as conseguia tocar. Para minha perplexidade, algumas eram pessoas amigas, já mortas, mas que ali estavam bem vivas, metidas em elegantes fatiotas. Não me percebiam e nem me ouviam, por mais que eu me esforçasse para ser notado.
Novamente, sem que eu me desse conta, estava novamente a voar, dentro do velho ônibus, como se estivéssemos retornando. Passamos por esculturas de grandes animais - elegantes elefantes, belos búfalos, girafas, alvijubados leões, encouraçados rinocerontes, imemoriais dinossauros, unicórnios lendários - sem asas, mas de voo glorioso. Depois, percebi que elas ganharam vida e se esgarçavam no ar, como fiapos de nuvens e gazas.
A paisagem mudou. De repente. Agora eram vastos tabuleiros, de terra revolvida, como se tivesse sido arada, mas cujos sulcos formavam estranhas pinturas geométricas e ao mesmo tempo abstratas. Uma dessas telas era um gigantesco tabuleiro de xadrez, em que cupins erigiram, de modo pertinente, perfeitas peças em forma de torres, cavalos, reis e rainhas, que se moviam por vontade própria, como se formassem dois exércitos em acirrado combate.
De súbito, acordei assustado. O ônibus havia estourado um pneu e levantava um forte e vermelha nuvem de poeira. Estávamos, ao alvorecer, em plena e plana paisagem dos cerrados piauienses.
Estávamos a caminho da longínqua e bucólica Ribeiro Gonçalves, recortada pela sinuosidade do “Velho Monge” e pelas colinas que a emolduram e engalanam.