A HARPA DO CAÇADOR REVISITADA
Em: 18/02/2008, às 12H22
(*)Prof. Antonio Wilson A. da Silva
RESUMO
O estudo mostra, de maneira clara e objetiva, a influência da literatura de cordel na obra: A Harpa do Caçador, do escritor piauiense Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco. Assim tem-se um breve histórico do cordel, desde a Grécia Antiga até o Nordeste brasileiro, mostrando as principais manifestações populares. Em seguida, uma breve explanação da diversidade temática do cordel e uma tentativa de classificação, segundo alguns teóricos, a fim de se chegar a uma discussão dos principais gêneros do cordel e suas características. Isso visando ao fundamental objetivo do trabalho: a influência do cordel em A Harpa do Caçador, em que se procura, de forma lúcida, mostrar as principais características poéticas da literatura de cordel presentes na obra de Teodoro; desde a estrutura poética: rima, ritmo, métrica ao conteúdo, próprios dos cantadores de viloa, até à linguagem dos trovadores do martelo.
Palavras-chaves:
Literatura de cordel – literatura popular – gêneros do cordel – métrica – acentuação – ritmo – cordelista – trovador.
INTRODUÇÃO
A literatura popular tem suas raízes fixadas nos cantadores de rapsódia, na Grécia Antiga. Desde então se procurava levar ao povo, de maneira divertida e alegre, grande obras literárias. Isso, posteriormente, foi tomando corpo e ultrapassando fronteiras. Na França do século XI foram os jograis, responsáveis pela interpretação e divulgação popular de grandes escritores eruditos. Para tornar essa literatura popular, cada vez mais alegre, os jograis introduziram o acompanhamento musical, o que vai, a partir de então, proporcionar aos grandes poetas populares o desenvolvimento músico-literal em suas composições.
Com o crescimento da literatura de cordel em toda a Península Ibérica, merece destaque especial a importante produção poético-literária portuguesa a partir da divulgação tipográfica dos cancioneiros, que posteriormente, por volta do século XVII, desembarcou no Nordeste brasileiro nas mãos dos colonizadores e fixou-se definitivamente por volta do século XIX como uma peculiaridade da cultura regional.
No início do século XX, após o desenvolvimento tipográfico do século anterior, vários estudiosos preocuparam-se em estudar a complexa temática da literatura de cordel, desde Leonardo Mota, em 1921, Cavalcanti Proença, Orígenes Lessa, Ariano Suassuna etc. que se procura definir uma classificação temática coerente.
Para se entender melhor a influência do cordel na obra do poeta Teodoro de Carvalho e S. C. Branco (1829 – 1891), este estudo discute, simples e objetivamente, os principais gêneros do cordel, fundamentado teoricamente nos estudos de Francisco Linhares e Otacílio Batista (1982), Manoel Cavalcante Proença (1986), Rubenio Marcelo (2007), dentre outros.
Essa influência sofrida por Teodoro é flagrante em toda a sua obra, a partir da estrutura poética, da temática, da linguagem, da musicalidade e da acentuação, conforme fundamentação teórica nos estudos de Décio Pignatari (1977) e Ezra Pound (1997).
Objetiva-se, pois, levar aos leitores uma interpretação coerente, objetiva e não preconceituosa da produção literária de poetas populares, em específico A Harpa do Caçador de Teodoro de Carvalho, reservando o respeito a outras interpretações diferentes a partir de outros enfoques.
1 A LITERATURA POPULAR: UM BREVE HISTÓRICO DO CORDEL
Para facilitar o entendimento da literatura de cordel, partir-se-á da Grécia Antiga, dos famosos rapsodos de Homero, a fim de chegar à França do século XI com os jograis; posteriormente a Espanha, Portugal e finalmente ao Brasil do século XVII, sobretudo à região Nordeste.
Na Grécia, as principais manifestações populares ficaram por conta dos rapsodos ou cantadores de rapsódia . Eles cantavam alegremente a obra poética de Homero, a fim de entreter os espectadores. Nessas apresentações o que mais prendia a atenção do público eram os improvisos dos cantadores, que devido a grande extensão dos poemas, algumas partes eram suprimidas e a cada apresentação novos trechos, de caráter popular, eram introduzidos. Isso empolgava e alegrava os espectadores, que esperavam “euforicamente” os novos versos improvisados pelos rapsodos.
Por volta do século XI, o mesmo fenômeno explode no Sul da França, sobretudo em Provença, com os jograis, que a exemplo dos rapsodos gregos, interpretavam composições de grandes escritores da época, sobretudo os de caráter romântico, épico e dramático. Esse fenômeno ficou conhecido como “littèratue de colportage”, volante, mais dirigida ao meio rural, através do “occasionnels”. Essas interpretações com veia popular podiam ser cantadas com acompanhamento de instrumentos musicais ou simplesmente recitadas: o que justifica a grande apreciação do gênero pelos senhores feudais, que encontravam sua diversão nos trovadores jograis.
Nessa época, a poesia apresentava duas espécies principais: a lírico-amorosa (cantiga de amor e cantiga de amigo) e a satírica (cantiga de escárnio e cantiga de maldizer). Com esse caráter poético, os trovadores introduziram a terminologia poesia popular.
No início, toda essa produção artístico-literária tinha caráter oral; os cantadores a transmitiam apenas pela força da oralidade, por isso é natural que muito da poesia popular (trovadoresca) acabasse desaparecendo, sobretudo antes de 1198. Com o tempo, a fim de avivar a memória incapaz de reter uma gama variável de deferentes composições, as letras passaram a ser transmitidas por escrito em pequenos cadernos. Posteriormente, objetivando registrar de maneira definitiva, foram postas em cancioneiros ; na maioria das ocasiões por ordem do rei.
Na Espanha, observou-se o mesmo tipo popular de literatura: “pliegos suletos”, que chegou a América Latina, ao lado de “hojas” e “corridos”; pode ser encontrada freqüentemente na Argentina, no México, no Peru... Envolvendo narrativas tradicionais e fatos circunstanciais à maneira do cordel brasileiro.
Com a disseminação da literatura de cordel em toda a Península Ibérica, por volta do século XVI, Portugal é um dos palcos da mais alta relevância cordelista ibérica. A partir dos registros em cancioneiros, a poesia popular pôde ser conservada, exposta e melhor apreciada, além de estudada. Dos registros que venceram o tempo, podem-se mencionar três, pela sua importância numérica e elevado valor poético-literário: a) Cancioneiro da Ajuda, do século XIII, com aproximadamente 310 cantigas, em sua maioria de amor; b) Cancioneiro da Biblioteca Nacional, é uma cópia italiana do século XVI com cerca de 1647 cantigas e c) Cancioneiro da Vaticana, também cópia italiana do século XVI, foi descoberto na biblioteca do vaticano, com cerca de 1205 cantigas.
Toda essa tradição voltada para a literatura popular, desembarca no Nordeste brasileiro na segunda metade do século XVII, nas mãos dos colonizadores portugueses em “folhas soltas” ou mesmo em manuscritos. Não obstante, a partir do aparecimento de pequenas tipografias, por volta do século XIX, é que a literatura de cordel fixou-se definitivamente no Nordeste brasileiro como uma das peculiaridades da cultura regional, florescendo, principalmente, na Bahia e posteriormente no Maranhão.
Vários fatores contribuíram para que o Nordeste brasileiro fosse palco fértil para o desenvolvimento da literatura de cordel, dentre eles o fato de que a primeira capital federal tenha sido a cidade de Salvador-BA, onde logo se tornou ambiente ideal pelas condições étnicas: encontro de portugueses com africanos (escravos), de maneira estável e contínua, além do próprio ambiente social favorecer esse tipo de comunicação literária. Fatores de formação social como a organização da sociedade patriarcal; o surgimento de manifestações messiânicas; o surgimento de grupos de cangaceiros; as secas periódicas etc.
1.1 Diversidade temática: uma tentativa de classificação
De todos os estudos realizados, um dos que mais preocupa os estudiosos do gênero é a escolha de temas. A complexidade temática na literatura de cordel é tamanha, que hoje existem várias tentativas de sistematização, desde os temas tradicionais, vindos através dos romanceiros, consagrados inicialmente na memória e hoje transmitidos pelos próprios folhetos, até a diversidade dos temas circunstanciais - contemporâneos de repercussão social.
No Brasil, têm-se várias tentativas de classificação, a começar pela tentativa de Leonardo Mota, por volta de 1921, em cantadores; a de Cavalcanti Proença (Casa de Rui Barbosa); a de Orígenes Lessa e, para simplificar, a de Ariano Suassuna, mais sintética, procura situar a sistematização da literatura de cordel em limites mais definidos a partir dos dois grandes grupos - o tradicional e o de acontecidos.
Com muita clareza, é possível chegar-se a uma síntese das tentativas de classificação temática da literatura de cordel brasileira: a de C. Proença e a de A. Suassuna. Assim, parece prudente adotar a seguinte classificação: 1. Temas Tradicionais: a) romances e novelas; b) contos maravilhosos; c) histórias de animais; d) anti-heróis: peripécias e diabruras; e) tradição religiosa. 2. Fatos Circunstanciais (acontecidos): a) de natureza física (catástrofes naturais); b) de repercussão social (acontecimentos festivos etc.); c) cidade e vida urbana; d) crítica e satírica; e) elemento humano (getulismo, cangaceirismo; tipos étnicos, regionais etc.). 3. Cantorias e pelejas.
Diante desse pequeno passeio pela literatura popular, urge que se reconheça a sua importância. Na literatura de cordel a memória popular é conservada e transmitida, além de constituir-se, portanto, em um meio de comunicação, um verdadeiro instrumento de interação social.
1.2 Principais gêneros do cordel
A literatura de cordel é uma literatura em verso que mais cresce no mundo, para o desprezo e a repulsa elitista de muitos acadêmicos e “intelectuais”. Com o fim do período ditatorial brasileiro e o conseqüente surgimento de um “modelo democrático”, o cordel ganhou impulso considerado significativo.
Dos grandes clássicos, os cordelistas herdaram a quadra, a décima e a sextilha em decassílabo e sua variação. É interessante ressaltar, que a sextilha de rima cruzada originou-se da oitava de Ludovico Ariosto (1474 – 1533), introduzida em Portugal por Sá de Miranda (1481 – 1558), que cultivou o teatro e a poesia, e possibilitou ao clássico Luís V. de Camões (1524/25 – 1580) a produzir sua obra Os Lusíadas (1572).
Levando-se em consideração a totalidade dos gêneros, desde os mais usados até os que se encontram em desuso, a literatura de cordel conta com cerca de trinta e seis modalidades, a seguir, uma breve explanação das principais.
Sextilha – Pertencente à família dos heptassílabos (redondilha maior), é o gênero mais comum entre os cordelistas, considerado a “deusa inspiradora dos poetas”. É uma estrofe com rimas deslocadas, constituída de seis versos heptassílabos com rimas nos versos 2 – 4 – 6, conservando-se brancos os versos 1 – 3 – 5.
Está com mais de cem anos
A nossa literatura
De cordel, que no Brasil
Já é parte da cultura;
Seu legado traz renovo,
Qual chama ardente e pura!
(MARCELO, 2007).
Já tive muito prazer,
Hoje só tenho agonia!
Não sinto porque sou cego,
E sinto é falta do guia!
Quando mamãe era viva,
Eu era o cego que via!
(Anônimo apud LINHA-
RES; BATISTA, p. 14).
Setilha - Adaptada da sextilha por Manuel Leopoldino de Mendonça, caracteriza-se por ser heptassílabo com rima nos versos pares até o quarto, como na sextilha; o quinto rima com o sexto e o sétimo com o segundo e o quarto.
Está vivinho da silva
O nosso belo cordel;
Já é tema de mestrado,
Estudado com laurel;
Cada dia aumenta mais
Os prestígios triunfais
Do cantador-menestrel!
(MARCELO, 2007).
Fui moço, hoje estou velho!
Pois o tempo tudo muda!
Já fui um dos cantadores
Chamado deus nos acuda...
Este que estou vendo aqui
Foi Zé Duda do Zumbi!
Hoje Zumbi do Zé Duda!(DUDA apud BATISTA; LINHARES, 1982, p.15).
Moirão – Os moirões constituem um dos gêneros do cordel a apresentar grande dificuldade para o poeta. Isso se deve à alternância de autores dentro de uma mesma estrofe, o que proporciona aos pares uma grande interatividade, uma vez que a articulação das estâncias cabe à criatividade de ambos, revezando-se nos versos e nas estrofes, e respeitando as características da composição – rima, métrica e oração. Esse gênero tem sido um dos que mais sofreu variação ao longo do tempo. Veja o moirão de seis linhas de Romano e Inácio e o de sete linhas de Agostinho Lopes e José Bernardino:
I - Seu Romano, estão dizendo
Que nós não cantamos bem!
R - Pra cantar igual a nós,
Aqui não vejo ninguém!
I - E o diabo que disse isto
É o pior que aqui tem! (RO-
MANO; INÁCIO apud LINHA-
RES; BATISTA, 1982, p.16).
A.L. - Não vá você achar ruim
Este Mourão a doer!
J.B. - Eu acredito, Agostinho,
Naquilo que posso ver!
A.L. - Companheiro, não se gabe,
Que a pessoa que não sabe,
Agrava a Deus sem querer! (LOPES; BERNARDINO apud
LINHARES; BATISTA, 1982, p. 16).
Este gênero segue ainda com outras variações: Moirão Trocado, que se caracteriza pela alternância de vocabulário, em um jogo paradoxal nos quatro primeiros versos. Tem-se ainda o Moirão que Você Cai, composto por doze versos, havendo quatro versos comuns: o terceiro, o sexto, o nono e o décimo segundo; o Moirão Voltado, de treze versos em redondilha maior, em que os autores se alternam até a oitava linha, para em seguida, unirem suas vozes e terminarem a estrofe.
Décima – É uma composição de origem clássica muito apreciada pelos poetas populares, principalmente por ser o gênero escolhido para os motes . Esse gênero conta com dez versos heptassílabos, incluindo o mote, assim distribuídos: ABBAACCDDC. O mote mais usado, de dois versos, pode ser usado de duas maneiras. Na primeira - em desuso - ele está distribuído no quarto e no décimo versos da estância. Na segunda, o mote constitui-se em um dístico finalizando a estrofe, consoante Francisco Linhares e Otacílio Batista:
Mote:
Tenho n’alma as tatuagens
Da minha origem cigana.
Fui criado entre as miragens,
Na solidão do deserto,
De um povo que andava incerto,
Tenho n’alma as tatuagens:
São abstratas imagens
De Alá, que não se profana;
Dos chefes de caravana,
Me orgulho em ser porta-voz:
Os primitivos heróis
Da minha origem cigana (1982, p. 20).
Mote:
Ao pé do monte Calvário,
Jesus chorava e gemia!
Junto de dois malfeitores,
Achava-se moribundo:
O Salvador deste mundo,
Senhor de todos senhores;
Refúgio dos pecadores;
Dos que sofrem nostalgia.
Se quisesse, sairia
Daquele estado precário.
Ao pé do monte Calvário
Jesus chorava e gemia (1982, p. 21).
Martelo Agalopado – Gênero variante da décima, é estruturado com dez versos decassílabos, seguindo a mesma ordem rimática dos versos da décima. O gênero em questão tem o nome - Martelo Agalopado - em homenagem a seu criador, o diplomata francês Jaime de Martelo, professor de literatura na universidade de Bolonha, na segunda metade do século XVII. J. de Martelo suprimiu dois versos finais da oitava de Ariosto (oitava camoniana), formando o que se denominou de Martelo Cruzado. Já o Martelo atual é de autoria do paraibano Silvino Pirauá Lima, conforme declama Lira Flores e Bráulio Tavares e Ivanildo Vila Nova:
Quando as tripas da Terra mal se agitam,
E os metais derretidos se confundem,
E os escuros diamantes que se fundem.
Da cratera ao ar se precipitam.
As vulcânicas ondas que vomitam
Grossas bagas de ferro incendiado,
Em redor, deixam tudo sepultado
Só com o som da viola que me ajuda,
Treme o sol, treme a terra, o tempo muda,
Eu cantando martela agalopado (FLORES
apud LINHARES; BATISTA, 1982, p.
23).
Já que existe no Sul esse conceito,
Que o Nordeste é ruim, seco e ingrato.
Já que existe a separação de fato,
É preciso torná-la de direito.
Quando um dia qualquer isso for feito,
Todos os dois vão lucrar imensamente.
Começando uma vida diferente
Da que a gente até hoje tem vivido,
Imagine o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente. (TAVA-
RES; NOVA apud RAMALHO, 1995,
faixa 4).
Galope à Beira-mar - Belo e dificílimo gênero derivado da décima, criado à margem da praia de Iracema - Fortaleza-CE - pelo grande poeta José Pretinho, de Morada Nova. O gênero é assim chamado em virtude de sua temática praieira e é constituído de uma estrofe de dez versos hendecassílabos (de arte maior) finalizada com o estribilho, cuja palavra final é mar, consoante estrofes de Dimas Batista e de Otacílio Batista:
Eu cantando a Galope ninguém me humilha,
Tudo que existe no mar eu aproveito,
Na ilha, no cabo, península, estreito,
Estreito, península, no cabo, na ilha,
Em navio, em proa, em bússola e milha!
Medindo a distância para viajar,
Não quero, da rota, jamais me afastar,
Porque me afastando o destino sai torto;
Confio em Deus avistar o meu porto,
Cantando Galope na beira do mar! (BATIS-
apud LINHARES; BATISTA, 1982, p. 24).
A praia é uma virgem deitada na areia,
De olhos abertos, contemplando a Lua.
Enquanto, nas águas, a barca flutua,
Lá no firmamento, Diana passeia...
O Sol, com ciúme, a praia incendeia,
Com raiva da Lua que não quis casar:
A Lua queixosa começa a chorar...
Na cama do céu, coitada, desmaia!
Derramando prantos de prata na praia;
Que cousa bonita na beira do mar! (BA-
TISTA; LINHARES, 1982, p. 24).
Quadrão - Gênero bastante modificado pelos poetas, tanto na sua forma interna como na estrutura das estrofes. Formado de oito versos heptassílabos (AAABCCCB ou AAABBCCB) ou oito versos decassílabos (alexandrino) com a mesma seqüência de rimas anteriores, ou ainda o quadrão em forma de décima heptassilábica, sendo todas as formas caracterizadas por um estribilho de sua denominação, como exemplificam Lourival Batista e Lacerda Furtado:
O Cantador repentista,
Em todo ponto de vista,
Precisa ser um artista
De fina imaginação,
Para dar capricho à arte,
E ter nome em toda parte,
Honrando o grande estandarte
Dos oito pés de Quadrão! (BA-
TISTA apud LINHARES; BA-
TISTA, 1982, p. 29).
Namorando a Salomé,
Vi a barca de Noé,
Palestrei com Josué,
Com Jacó e Salomão;
Travei luta com Sansão,
Nadei no delta do Nilo,
Montado num crocodilo,
Cantando os oito em Quadrão! (FURTA-
DO apud LINHARES; BATISTA, 1982, p. 29).
Toada Alagoana - Gênero pouco usado, todavia muito bonito, em virtude das rimas encadeadas, conforme estrofe de Otacílio Batista:
Vai Otacílio Batista,
Repentista,
Neste momento tão forte,
Num estilo diferente,
No repente,
Correndo em busca da sorte...
Em noite de lua cheia,
Sou a sereia
Dos oceanos do norte! (1982, p. 33).
Quadra - Gênero relativamente simples, constituído de quatro versos heptassílabos ou decassílabos, rimando apenas os versos pares ou o primeiro com o quarto e o segundo com o terceiro (paralelas), ou ainda alternadas (ABAB).
No seio da Virgem pura,
Entrou a divina graça;
Como entrou, assim saiu,
Qual o Sol pela janela!
Quem ama moça solteira,
De deus, terá o perdão:
Porque nosso pai Adão
Teve sua companheira! (MATOS
Apud LINHARES; BATISTA,
1982, p. 37).
Coisa bela é madrugada,
Com luar pelo terreiro,
Viola em beira de estrada,
Cantiga de violeiro.
Quero a paz do teu carinho,
Mil cantigas de viola,
Quero ouvir um passarinho,
Que não seja na gaiola... (COELHO
Apud BATISTA; LINHARES, 1982,
p. 37).
2. A INFLUÊNCIA DO CORDEL NA HARPA DO CAÇADOR
Teodoro de Carvalho e Silva C. Branco (1829 – 1891), natural da fazenda Limpeza, então município de Barras-PI, hoje Esperantina-PI, cognominado de o poeta caçador, pela sua vida e expressão poética ligadas à roça e, sobretudo à caça, além de simples, espontâneo, porém não menos estético. Homem de baixo estudo formal proclamava-se como “tosco e grosseiro”, por autoflagelação; não obstante de muita sensibilidade poética e simplicidade no rigor-técnico-formal, o que leva a sua poesia ao estilo popular, aproximando-se muito da poética cordelista pela sua sonoridade, rima, ritmo e acentuação. Teodoro adotou em sua obra a estrutura poética dos cantadores de viola e a linguagem dos trovadores do martelo. Destacou-se, além do mais, pela virilidade de sua poesia e de sua temática, além de pregar a filosofia do desconforto.
Homem de temperamento forte, rude, orgulho frustrante, oriundo da aristocracia rural decaída; Teodoro mostrava-se pernóstico em muitas de suas atitudes, até mesmo com os amigos, quando foi levado às páginas de jornal, por Davi Caldas, e elogiado seu poema O Canto do Caçador (1852):
Pois que! Pretendes tu, gênio preclaro,
Elevar o meu nome,
Desde onde aponta o sol, te onde se some?!
Não vês patente e claro
Ser eu tão obscuro, rude e bronco
Qual grosseiro penedo ou rijo tronco? (1996, p. 31).
O Canto do Caçador (1852), poema de abertura do livro em estudo - A Harpa do Caçador (1884) , São Luís-MA - está disposto em quadras (quartetos) hendecassílabos, como nos galopes martelados, com rimas nos versos pares e acentuação constante nas 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílabas.
Em todas as trinta e oito estrofes do poema, Teodoro manteve-se invariável, conservou as rimas, a acentuação e o ritmo, que se manteve predominantemente ternário ascendente ou anapéstico - dois impulsos e um apoio:
Sou filho das selvas, sou tosco, grosseiro,
Sou brusco, selvagem, não sou trovador;
Eu tenho outras lidas, eu tenho outro emprego,
Que em tudo me ajusta: - eu sou caçador. (1996, p. 15).
Para melhor compreensão dos recursos rítmicos utilizados pelo Poeta Caçador, é importante salientar que o ritmo é uma sucessão de acentos (ou impulsos e apoios) relativos e relacionados, que tecem uma teia coesiva tanto na poesia quanto na música.
O Poeta Caçador, mostrando a sua sensibilidade poético-popular, elege, como forma principal, o mais simples entre os gêneros populares do cordel: a quadra (quarteto), devido, principalmente, a seu tamanho, extrema facilidade de composição e rimas em versos pares.
Com a quadra o poeta brinca, passeia livre, solto como um menestrel a debulhar versos a mão cheia em vinte e três poemas metrificados entre heptassílabos, eneassílabos, decassílabos e hendecassílabos ritmados e rimados.
Pelos gêneros populares preferidos por Teodoro, além da quadra, pode-se observar sua grande desenvoltura ao distribuir sete majestosas sextilhas e seis oitavas (oitavão), em linguagem simples e precisa, à altura dos grandes contadores de viola, abordando temática voltada para a vida do homem do campo, aos feitos de um caçador, de um homem da roça narrando fatos circunstanciais.
A sua métrica não foge a dos mais populares cordelistas. Os heptassílabos ou redondilha maior (sete sílabas) são os mais populares da literatura de língua portuguesa, um dos mais manejados do ponto de vista da métrica, com acentuação ad libitum. Versos preferidos por cordelistas nordestinos. Teodoro não tergiversa na preferência pela acentuação na 3ª e na 7ª sílabas, consoante poema Inspiração Patriótica:
Bravo povo brasileiro,
De prazer hoje exultai;
Humilhastes o tirano
Cacique do Paraguai!
Todo o vasto quadrilátero
Dessa soberba Humaitá
Não conteve aos nossos bravos:
- Em nosso poder está! (1996, p. 73).
Teodoro também trabalha com eneassílabos (nove sílabas), que tiveram seu ápice no século XIX, sendo, posteriormente, muito criticado e abandonado devido a seu ritmo anapéstico, que lhe empresta um caráter de monotonia nas acentuações 3ª, 6ª e 9ª sílabas, a formar um tarará-tarará-tarará. Isso acontece, por exemplo, no poema Delírio:
Tu me julgas acaso com vida,
Por que vês esse corpo ambulante?
Olha, pois quanto nisso te enganas,
Move-se ele qual vaga inconstante.
Entretanto a vaga não vive;
É do ar que lhe vem movimentos:
Sou também, como ela, impelido
Por embate de rígidos ventos. (1996, p.
42).
Porém a sua maior produção está nos versos mais nobres: decassílabos (dez sílabas) e endecassílabos (onze sílabas). Aqueles, muito utilizados pelos trovadores portugueses, foram introduzidos em Portugal por Sá de Miranda e adaptados por Camões, apresentam várias possibilidades de acentuação, o que possibilita ao poeta maior liberdade na utilização de recursos, sem manter a mesma acentuação. Isso ocorre em Teodoro, que, nesta métrica, varia a acentuação, deixando nítido, em alguns de seus poemas, a tentativa de regularidade rítmica: 6ª e 10ª; 4ª, 8ª e 10ª sílabas, o que fica visível nos poemas Prova de Amizade, Minha Vida, Uma Resposta, Recitativo etc., porém isso não constitui uma regularidade.
PROVA DE AMIZADE
Uma cópia fiel das feições tuas
Na mente conservei sempre gravada;
Outra, porém, de preço mais subido,
Por ti, amigo foi-me hoje ofertada.
Eu quisera também hoje provar-te
Essa subida estima, em que te tenho;
Mas, como consegui-lo pobre vate,
Sem ciência, sem arte e sem engenho?
(1996, p. 71).
MINHA VIDA
Lira saudosa, companheira terna,
Que me acompanhas nas mortais fadigas,
Solta os acordes desses sons divinos,
Com que meus males, meu pesar mitigas.
Conta os tormentos, que meu peito ralam,
Os meus pesares, os suplícios meus!
Conta, eu te peço, toda a minha vida,
Triste, penosa, nos acentos teus. (1996, p.
74).
Estes (endecassílabos) aparecem em sete poemas: seis - em forma de quadras - e um em forma de sextilha. Quando a acentuação se dá nas 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílabas, o verso fica igual ao eneassílabo - Ternário ascendente - precedido de um lance binário ascendente, o que ocorre no poema O Canto do Caçador, em que o Poeta Caçador define um ritmo visando à musicalidade, como faziam os trovadores.
Meus simples prazeres, por bailes, teatros,
Torneios e jogos dos homens da praça.
Não troco; - não valem torneios e jogos,
Teatros e bailes, os gozos da caça (1986, p. 15).
Teodoro de Carvalho foge da estrutura poética do cordel apenas em nove composições clássicas - soneto - não obstante, mantém em decassílabos acentuados nas 6ª e 10ª sílabas e rimas ABBA ABBA CDC DCD a tradição trovadoresca galego-português, além de aproximar-se do estilo heróico das epopéias, como nestes dois quartetos de um de seus sonetos: recitado a bordo do vapor “Oiapoque”:
Levai, filhos do norte, ao sul do império,
Na alma e no coração o fogo ardente,
Que vos inflama o peito e abrasa a mente,
Sem que possa estriá-lo outro hemisfério!
Cobre de pejo, opróbrio e vitupério
Ao torpe Paraguai, que ousadamente,
A guerra provocou tão forte gente,
Que fundirá Humaitá num cemitério! (1996,
p. 54).
Toda a obra de Teodoro de Carvalho está entremeada da estrutura poética do cordel e da linguagem trovadoresca, refletidos na evolução da literatura popular do Nordeste brasileiro em meados do século XIX. Mesmo procurando negar estas características, consoante o próprio poeta declama: “Sou filho das selvas, sou tosco, grosseiro, sou brusco, selvagem, não sou trovador” (1996, p. 15), é inegável em todos os seus poemas a presença do ritmo, da musicalidade, das rimas e da métrica, próprios da estrutura poética da literatura de cordel.
A literatura de cordel já inspirou escritores, cantores e compositores brasileiros como Jorge Amado, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, Luiz Gonzaga, Renato Russo, Alceu Valença, Zé Ramalho, Fagner etc. e, em especial, o poeta Teodoro de carvalho e S. C. Branco, em A Harpa do Caçador.
CONCLUSÃO
Através do estudo realizado desde as primeiras manifestações da literatura popular - suas principais características: estrutura poética, diversidade temática, linguagem, musicalidade, rima, ritmo e acentuação - até a consagração nordestina do cordel, a influência que essa literatura vem provocando em escritores, compositores, cantores, cineastas etc. é flagrante em suas obras. Com a Harpa do Caçador isso não é diferente. A sensibilidade poética e a simplicidade no rigor técnico-formal levam Teodoro ao estilo popular, a aproximar-se da poética cordelista. Em sua obra está presente a estrutura poética dos cantadores de viola e a linguagem dos trovadores do martelo.
Teodoro compôs sua obra utilizando-se dos principais gêneros do cordel: quadra, sextilha, setilha e oitava; todos metrificados: heptassílabos, eneassílabos, decassílabos e hendecassílabos rimados e ritmados, o que provoca uma sonoridade cadenciada, principalmente a partir de seu ritmo preferido: ternário ascendente ou anapéstico.
Por conseguinte, não há como negar, para o desprezo e a repulsa elitista e, principalmente preconceituosa de muitos acadêmicos e “intelectuais”, a influência da literatura de cordel em A Harpa do Caçador. Essa constatação, a partir do enfoque tomado, não diminui o valor poético-literário de Teodoro, pelo contrário, o consagra entre os grandes poetas da literatura popular, sem lugar garantido entre os que cultivaram os valores e a cultura do homem do campo, do sertanejo nordestino.
OBRAS CONSULTADAS
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977.
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ROMERO, Prêmio Silvio. Repente e cordel. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985.
(*)Prof. Antonio Wilson A. da Silva- pós-graduado em língua portuguesa e graduando em música pela UFPI.