A Floresta do Fim do Mundo

NEUZA MACHADO

Eis aí o espaço da ficção traduzido como a barca de Caronte a carregar o “coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história extra-sensorial. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de Edgar Alan Poe, que preside a obra assinalada; é antes de tudo a atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual (do povo primitivo, bem entendido). O narrador pós-moderno, em sua ativada solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado do viver primitivo, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade histórica do Amazonas. E, pela meditação, eis aí/aqui a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente e ficcionalmente em direção a um espaço ensoberbecido - o Manixi - e ao seu rio da morte, o Igarapé do Inferno.

 

 

“A morte está nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o primeiro personagem-narrador, para se livrar definitivamente de sua histórica dor - “matar” a dor que o consumia -, obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para enterrar os mortos dignamente, fossem eles índios ou brancos ou mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse Gaston Bachelard. A narrativa ficcional pós-moderna, entrópica, é demonstrativa da tristeza que assolava o narrador do final do século XX, século de guerras e mortes inglórias, mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho” roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua existência, o seu velho pai/Sertão no coração.