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[Paulo Ghiraldelli Jr.]

De um modo particular, específico, a direita brasileira reinventou a “cultura branca”. Nessa ficção conservadora a “cultura branca” estaria desprestigiada porque o estado brasileiro atenta para a cultura negra através de algumas medidas, como as leis contra o racismo ou “políticas afirmativas”, o que envolve basicamente as “cotas étnicas” em escolas, cargos etc.

O problema está justamente aí: não existe efetivamente a “cultura branca”. O grupo branco não é uma minoria no sentido sociológico que o negro é uma minoria. A direita imagina ou quer que imaginemos uma terceira cultura, hegemônica ou neutra, e a “cultura branca” e a “cultura negra” como minorias no interior dessa cultura. Mas não é assim. A tal “cultura branca” é a cultura ocidental. Ora, a cultura ocidental é tomada como a cultural tout court. Ela é o meio no qual transitam outras culturas, umas mais integradas nela outras completamente diluídas e outras brigando pela integração ou contra a integração. Não há preconceito e discriminação para quem dá seus passos segundo essa cultura. Ela está em consonância com o leito central do nosso ethos, portanto, da nossa ética que, enfim, a própria direita no passado louvava como o modus vivendi da “civilização ocidental e cristã de base greco romana”.

Uma cultura que se apresenta universal, o faz de três maneiras: legitimamente ou ideologicamente ou às vezes das duas maneiras ao mesmo tempo. Explico abaixo.

No primeiro caso, a cultura que se apresenta universal é efetivamente universal, e sendo legitimamente universal reconhece as culturas minoritárias em seus direitos, principalmente os de existência, expressão e cultivo de determinadas tradições que não ferem a ética do todo social. Deve reconhecer isso porque sendo hegemônica não precisa reconhecer a si mesma, mas tem de reconhecer as outras porque dessa maneira faz a sua hegemonia não se efetuar como simples dominação – Weber e Gramsci explicaram bem isso. Agora, no secundo caso, sabemos que uma cultura pode se apresentar ideologicamente, ou seja, pode-se fazer universal quando não é ou quando está negando direitos a outras coisas exatamente porque está perdendo hegemonia ou porque imagina que vá perder – todos os sociólogos aprenderam isso com Marx e desenvolveram teses assim.

No Brasil de hoje, podemos dizer que a cultura ocidental é hegemônica quase que legitimamente. Esse “quase” aparece por questões que enfim, transparecem à medida que denotam como que o liberalismo tradicional não está funcionando por aqui. Ou seja, o liberalismo tradicional prega uma igualdade perante a lei, mas em nossa sociedade a Justiça sempre dá uma espiadinha por debaixo daquela venda nos seus olhos. Ela nota prestígio social, econômico e político. Ela é malandrinha, porque quando ela dá uma só espiadinha e vê um negro, ela logo infere que não vai ter problema em discriminá-lo, uma vez que, sendo negro, dificilmente é “alguém importante”.

Ora, a ideia então é colocar um tipo de armadilha para a Justiça. A “política afirmativa” desloca rapidamente negros em posições de importância e quando a Justiça der essa olhadinha e fizer a inferência que fez, cai do cavalo. Acaba discriminando um juiz, um delegado, um professor universitário, um médico e até um senador! Pimba! Há consequências. Aí a Justiça passa então a falar para si mesma: quer saber de uma coisa, não vou dar olhadinha nenhuma, fizeram-me cega com essa venda nos olhos e eu vou ficar “na minha”. Finalmente o liberalismo passaria a funcionar. Ou seja, por uma luta da esquerda e não da direita o liberalismo, que a direita democrática diz amar, é prestigiado. Mas no meio disso, não é o liberalismo tradicional que vinga, já é um outro tipo de liberalismo. Ele recebe o nome de liberalismo igualitário, até para se distinguir do liberalismo libertário. Ele está com Rawls, enquanto o segundo com Nozick.

Um modo de fazer o liberalismo funcionar é reeditá-lo como liberalismo a la John Rawls. A esquerda luta por ele, embora meio que atabalhoadamente porque não sabe quem foi John Rawls. A esquerda brasileira tenta incorporar certas coisas sempre associando-as às correntes europeias, nomeadamente francesa (alemã e italiana, em seguidas), então, a esquerda pensa que pode falar em Marx para pedir Justiça. Mas essa confusão mental da esquerda não atrapalha muito a luta prática. Na prática, ela sente o cheiro do que é mais justo, do que é mais igualitário, e às vezes faz como o Mr. Maggo: justifica as coisas com Marx, tudo erradamente, e realiza o certo de Rawls. Ou fica mais ou menos a meio caminho, reeditando um varguismo que, dado nossa carência de tudo, acaba servindo até para intelectuais esclarecidos.

Mas o pensamento de direita não entende que a política de esquerda de integração é boa para todo mundo. Os conservadores possuem dificuldade de imaginar que a integração favorece o status quo, não o contrário. O que os atrapalha no pensamento? O que os faz pensar de modo errado? Ora, o elemento psicológico, no caso, o racismo, tem sim um papel nisso tudo. Há o nojo de conviver com o negro nos mesmos locais (da praia ao STF passando pela Universidade). Isso está tão incrustado na mentalidade dessas pessoas que elas reagem sem atitudes racionais, reagem pela parte mais primitiva do cérebro. Essas pessoas são aquelas que não dizem que o negro não deve usar o banheiro de sua casa, mas que secretamente sabem que é nisso que acreditam. Há mais pessoas assim no Brasil do que podemos admitir.

Fomos o último país a abolir a escravidão negra. E isso só faz cem anos. Estamos ainda com vários de nós na posição desconfortável que estiveram os primeiros mulatos. Todos nós queremos nos dizer “sem preconceitos” porque isso é agora um valor dos cultos. Mas uma boa parte de nós tem preconceito de si mesmo porque uma boa parte de nós é bastarda. Há mais bastardo no Brasil do que os brasileiros querem admitir. Ora, a própria palavra “bastardo” já não pode mais ser pronunciada! (E nisso a esquerda e a direita estranhamente estão de acordo!) A direita que fala empolado sabe muito bem que pode ser tão bastarda quanto o negro pobre que não está nem aí com ser bastardo ou não. No Brasil há pessoas de grupos minoritários que são ressentidas, mas nosso país é esquisito porque possui também uma elite ressentida, desconfiada e temerosa! Ressentida principalmente por não ter certo prestígio intelectual diante de parte da academia. Ela acusa certas pessoas de esquerda de serem ressentidas e acerta, mas acerta à medida que sua acusação é ensinada pelo Espelho Mágico (sim, o da Rainha Má) que tem em casa.

Toda essa psicologia corre da parte límbica passando pelas vísceras e pelo reto, no corpo de cada um. E jogamos com isso ao endossarmos filosofias sociais e políticas. Há mais coisa entre a cabeça e os pés que a nossa vã filosofia pode mostrar. O erro de não perceber que a noção de “cultura branca” é um dispositivo ideológico, inclusive nada útil, é algo dos recriadores dessa noção.

Um exemplo final, para que as coisas realmente fiquem entendidas quanto à integração e quanto à criação de uma cultura legitimamente universal. É como se dá no processo da língua: falamos o português que teve origem no latim romano, somos ocidentais, mas damos total legitimidade a todas as palavras de origem africana que já estão nos dicionários. Esse exemplo da língua diz tudo para que a sociologia explicite a sua noção de hegemonia. A direita não entende essa dinâmica. Tudo a amedronta. Ela fica com o raciocínio embotado.

© 2012 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ