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[Chagas Botelho] 

 

Num típico verão nordestino

de estiagem espraiada

desço o morro marrom

ao ocaso do dia

a bordo de uma carcaça de ônibus

 

De longe, bem distante, avisto a casa da tia Neusa

a casa da minha infância, dos banquetes, das abundâncias

numa época de farinhada

onde jorra a fartura de caju

e o sangue da matança de porco e galinha

 

Meu tio Antônio, aleijado, sentadinho

à sombra de um jatobá

com as muletas ao lado das pernas paralíticas

descasca um jacá de mandioca

joga as cascas perto do poço — o fosso assustador

enquanto tia Neusa, sorridente

cosmopolita, cantadeira, a mil por hora

escorre o sumo arbustivo em imensos quibanos

 

O forno de barro, cheio de lenha da roça

cujas brasas são atiçadas

em amiúde abanadas e sopros

aguarda pelas formas de bolo e beiju

 

Meus primos, operários da farinhada

batizados de nomes, mas evocados por apelidos

cônscios de suas tarefas definidas

pilam a farinha, assam castanhas

raspam rapadura, quebram coco

extraem o aromático azeite

e despejam em ânforas e lamparinas

 

Ao final da farinhada, lá pelas tantas da madrugada

sob um galpão coberto de palhas cinzentas

os mais velhos cantam, dançam e bebem carraspana

os mais novos comem iguarias feitas na hora

que fartam suas papilas gustativas

 

A música inunda a festança, o bate-coxa

o ritmo tem tempero latino

cantada pelo eu-lírico popular

o arrasta-pé segue o verso caloroso:

 

“Feiticeira, feiticeira

Feiticeira é essa mulher que por ela gamei”

 

Tia Neusa, inebriada de tiquira

rodopia até a outra cantoria, a do galo

para em seguida ir vender,

ainda no lusco-fusco

a farinhada na feira.