A farinhada da tia Neusa
Por Chagas Botelho Em: 28/03/2024, às 20H19
[Chagas Botelho]
Num típico verão nordestino
de estiagem espraiada
desço o morro marrom
ao ocaso do dia
a bordo de uma carcaça de ônibus
De longe, bem distante, avisto a casa da tia Neusa
a casa da minha infância, dos banquetes, das abundâncias
numa época de farinhada
onde jorra a fartura de caju
e o sangue da matança de porco e galinha
Meu tio Antônio, aleijado, sentadinho
à sombra de um jatobá
com as muletas ao lado das pernas paralíticas
descasca um jacá de mandioca
joga as cascas perto do poço — o fosso assustador
enquanto tia Neusa, sorridente
cosmopolita, cantadeira, a mil por hora
escorre o sumo arbustivo em imensos quibanos
O forno de barro, cheio de lenha da roça
cujas brasas são atiçadas
em amiúde abanadas e sopros
aguarda pelas formas de bolo e beiju
Meus primos, operários da farinhada
batizados de nomes, mas evocados por apelidos
cônscios de suas tarefas definidas
pilam a farinha, assam castanhas
raspam rapadura, quebram coco
extraem o aromático azeite
e despejam em ânforas e lamparinas
Ao final da farinhada, lá pelas tantas da madrugada
sob um galpão coberto de palhas cinzentas
os mais velhos cantam, dançam e bebem carraspana
os mais novos comem iguarias feitas na hora
que fartam suas papilas gustativas
A música inunda a festança, o bate-coxa
o ritmo tem tempero latino
cantada pelo eu-lírico popular
o arrasta-pé segue o verso caloroso:
“Feiticeira, feiticeira
Feiticeira é essa mulher que por ela gamei”
Tia Neusa, inebriada de tiquira
rodopia até a outra cantoria, a do galo
para em seguida ir vender,
ainda no lusco-fusco
a farinhada na feira.