A expressão do Realismo/Naturalismo em Machado de Assis e Eça de Queirós
Carlos Evandro Martins Eulálio(*)

No capítulo LVI do D. Casmurro, o narrador relata a sua frustrada investida de poeta. Numa noite de insônia, Bentinho compõe apenas o primeiro e o último verso de um soneto que jamais escreveria. Antes, a sensação que teve era a de que ia sair um poema perfeito. Mas tudo foi em vão.  O recheio do texto não veio, e o soneto não se fez, conforme nos declara mais tarde D. Casmurro: “Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade de escrever”.

Ao contrário de D. Casmurro, senti-me como o Bentinho, com muita dificuldade para redigir este texto, não por falta de inspiração, como sucedera ao apaixonado da adolescente Capitu, mas por excesso de informação sobre dois importantes escritores, de maior destaque no século XIX, no Brasil e em Portugal. Ambos têm sido matéria de grande número de análises e interpretações no âmbito da crítica especializada. Por essa razão, creio eu, seria de minha parte temerário anunciar nesta página algo de novo sobre duas tão conhecidas figuras da literatura universal, que viveram no mesmo período e produziram uma obra de qualidades inconfundíveis da Escola Realista.

1. REALISMO/NATURALISMO EM MACHADO DE ASSIS

Carioca, nascido em 1839, Machado de Assis viveu os 69 anos de sua existência exclusivamente no Rio de Janeiro, cidade onde se instalara a família real portuguesa em 1808. Nos planos político e social registram-se, à época, fatos relevantes como: início do segundo império de D. Pedro II, ocasião em que presenciávamos o “parlamentarismo às avessas”: o imperador aponta para ministro o político de sua simpatia e é referendado pelos partidos liberal e conservador, prática que caracterizou a propalada “tranqüilidade política” do segundo reinado, afetada mais tarde pelos reflexos do espírito racionalista da época; extinção do tráfico negreiro que viria acelerar a decadência da indústria açucareira e desenvolveria a indústria cafeeira paulista que introduz o trabalho assalariado e acende a chama do futuro regime republicano; Guerra do Paraguai, assinatura das Leis do Ventre Livre, Sexagenários e Áurea; Proclamação da República, que frustra as ambições da classe média, através da política dos governadores e do coronelismo.

 No âmbito da literatura, o Realismo, que na Europa dominava, refletia-se aqui, lenta e timidamente, fazendo com que  os escritores, aos poucos, saíssem do círculo sentimento-natureza em que se haviam confinado. Madame Bovary, verdadeiro marco da estética anti-romântica e ponto de partida do Realismo francês, somente tem ressonância no Brasil na década de 1880, quanto então o romantismo não pôde resistir ao embate das novas idéias e condições de vida, suscitados pelo progresso científico e industrial do século XIX. José  de Alencar, Macedo e Bernardo Guimarães eram ainda na década de 1870 os mestres do romance . Note-se que o Guarani é do mesmo ano da publicação em volume de Mme. Bovary, anteriormente divulgado em revista. O atraso deve-se ao sintoma de alheamento dos escritores de então não só ao mundo, mas às condições socioeconômicas e políticas do país. Curiosa é a referência de Lúcia Miguel Pereira, em seu livro Prosa de Ficção (de 1870 a 1920) às  primeiras manifestações não menos românticas, que sinalizavam mudanças do modo de produção literária, da iniciativa de autores como Araripe Júnior, que prenunciou, no Ninho do Beija-Flor, o tipo feminino tão explorado depois pelos naturalistas: o da donzela histérica por falta de vida sexual; Francisco Gil Castelo Branco que, em Ataliba, o vaqueiro, publicado em 1880, aproveitou  como fundo da narrativa a grande seca de 1877;  Carneiro Vilela, na obra Emparedada da Rua Nova, que nos forneceu dados interessantes sobre a vida no Recife; Galdino Fernandes Pinheiro, escritor fluminense, que usou o pseudônimo de Galpi, descrevendo os hábitos de suas províncias, e o paulista Ezequiel Freire com seus contos abolicionistas. Outro subterfúgio empregado por alguns escritores para obterem maior liberdade de movimentos, apontado ainda por Lúcia Miguel Pereira, consistiu no recurso a episódios históricos, cuja reconstituição não feria susceptibilidades. Tentou-o Araripe Júnior em O reino encantado, feito em torno do drama da Pedra Bonita; utilizou-o o Barão do Jaguaribe nos Herdeiros de Caramuru, de sentido abolicionista; empregou-o Franklin Távora, nos livros em que se propôs estudar o homem do norte; aproveitou-o José do Patrocínio, pondo em cena um caso judicial verídico em Mota Coqueiro ou A Pena de morte. A propósito dessa novela de José do Patrocínio, ressalta a autora que mesmo sem maior importância, escrita com lances dramáticos, e com a  finalidade de deixar o leitor em suspenso, revelou uma qualidade pouco comum naquela época: a isenção objetiva, pois entre os senhores e escravos, que aparecem em seu livro, o jornalista da Abolição soube manter o equilíbrio, sem pôr de um lado a virtude e de outro a maldade, pois como se sabe, e é oportuno que se recorde, o romântico é impregnado por uma visão maniqueísta da vida, ou seja, concebe o mundo como cenário de disputa de dois princípios opostos: o bem e o mal. Essa visão age em geral na tipificação das personagens, identificadas com um ou outro princípio.  Esse seu feitio, aliado à naturalidade dos diálogos, coloca José do Patrocínio entre os ficcionistas que reagiram contra as deformações românticas, embora fosse essa reação ainda considerada fraca e tímida, feita que era mais de intenções do que de realizações. Machado de Assis no magistral artigo de crítica, Instinto de Nacionalidade, datado de 24 de março de 1873, faz a seguinte observação sobre o romance brasileiro desse período:

 “...Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência literária. O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade, ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural. (...) O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e pitorescas... (...) Há boas páginas, como digo, e creio até que um  grande amor a este recurso da descrição , excelente, sem dúvida mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais. (...) Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico; os escritores que se vão buscar para fazer comparação com os nossos, porque há aqui muito amor a essas comparações – são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vitor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals. (...) Esta casta de obras, conserva-se aqui no puro domínio da imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. Seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões, os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres...”

Ainda com relação a Machado de Assis, salienta Lúcia Miguel Pereira:

“fiel aos esquemas românticos em seus primeiros livros, a concisão e a precisão da língua, assim como o deliberado repúdio das interjectivas descrições de paisagens e as cautelosas análises psicológicas, constituíam inegável novidade, que o enquadra, desde a sua primeira fase, entre os que não aceitavam integralmente as fórmulas reinantes. (...) O desajustamento entre Machado de Assis e os escritores de seu tempo provém, afinal, tanto da sua intrínseca superioridade como do fato de haver ele seguido o ritmo da vida política e social das classes dominantes, enquanto os outros se atrasavam, perdidos na busca do elemento típico. O seu comedimento, o seu urbanismo, a sua urbanidade, o seu gosto pelos meios-tons, o seu estilo e as suas atitudes sempre compostos, no bom e no mau sentido,  de compostura e de composição, as suas reservas, a sua falta de frescura, o seu ceticismo (aparente ou de superfície, porque essencialmente era sobretudo pessimista), e até o seu anglicismo eram qualidades que teve ou quis ter a gente mais representativa do Brasil de Pedro II”.

Por esse depoimento e outros mais de autores de diversas correntes da crítica brasileira, em todos os tempos, surpreendemos nas análises a unânime opinião quanto à grandeza de Machado de Assis, como escritor que se impôs acima de seus predecessores e  contemporâneos, mediante o exercício de uma prática literária, dominada pelo senso estético, pelo equilíbrio, pela inspiração e pela imaginação. Na obra machadiana fixam-se, em geral, duas fases literárias, uma inicial que compreende as publicações que vão de 1864 até o romance Iaiá Garcia, tido como de transição, e uma segunda, iniciada com o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, um dos marcos iniciais  de nosso realismo, publicado em 1881. Esta classificação não é meramente didática. Na advertência da nova edição do romance Ressurreição, em 1905, Machado de Assis declara:

 “Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dous ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então,  pertence à primeira fase de minha vida literária.”
 
Afrânio Coutinho contesta essa divisão nítida, uma vez que, para esse crítico, “há, antes, continuidade. E, se existe diferença, não há oposição, mas sim desabrochamento, amadurecimento”. É pertinente a colocação de Barreto Filho, quando afirma que Ressurreição é, dos primeiros livros de Machado, o que mais possui o ar de modernidade,

“deslocando o interesse do acontecimento objetivo para o estudo dos caracteres”, na linha portanto do romance psicológico a que se entregaria definitivamente, rompendo com a tendência ao romanesco então em voga.  Muito antes de Barreto Filho, na advertência da primeira edição de seu primeiro romance, Machado de Assis, quanto a isso, reconhecia: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro”.

Era esse trabalho de conscientização da técnica, presente na arte literária, que distanciava Machado de Assis dos demais escritores de seu tempo. Com idêntico propósito, mas utilizando diferente estratégia,  Eça de Queirós iniciou a sua carreira de romancista sob a dupla influência da teoria da arte < realista > e da crítica proudhoniana da sociedade burguesa, devendo a esta última juntar-se a influência de uma crítica das instituições nacionais esboçada por Herculano e desenvolvida pelos seus companheiros de Cenáculo.

2. REALISMO / NATURALISMO EM EÇA DE QUEIRÓS

Nascido em 1845, ainda sob o signo das lutas civis que dividiam liberais e miguelistas, Eça percorre em Portugal momentos de transição entre as lutas dos liberais e as facções que representavam a velha monarquia deposta pela revolução de 1820. Consolidado o liberalismo, o país inicia, a partir de 1850,  um período de relativa estabilidade política, de progresso material e de intercâmbio com o resto da Europa que contribuiria mais tarde para enfraquecer o academismo e o tradicionalismo literário, capitaneado por Castilho, que reunia em torno de si jovens escritores aos quais protegia e por estes era tido como mestre.

Esse é o cenário em que, no ano de 1865, surge a Questão Coimbrã, confronto entre os detentores do status quo e um grupo de jovens escritores, tendo a frente o seu mais alto representante, Antero de Quental que, ao ser atingido por Castilho no posfácio dos Poemas da Mocidade, de Pinheiro Chagas, responde-lhe com a conhecida carta aberta, Bom-Senso e Bom Gosto, em cujo texto ressalta:

“Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele, confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Exa. precisa menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta anos de reflexão.”
 
Eça de Queirós, aos 19 anos, a tudo assistiu apenas como espectador. Estava pois aberto o caminho para uma nova investida dos jovens que formariam a geração de 70, bem diferente da nossa, composta que era de uma elite intelectual da qual Eça a integrava, com a sensibilidade para perceber o atraso cultural de Portugal, em relação ao restante da Europa. 

O ano de 1871 é decisivo na vida literária de Eça de Queirós.  Ao mesmo tempo em que inicia a colaboração nas Farpas, ao lado de Ramalho Ortigão, começando uma obra de renovações artísticas que teria profundas conseqüências políticas e sociais em Portugal, une-se aos companheiros do Cenáculo, nas tumultuadas Conferências do Casino Lisbonense. Eça de Queirós foi o quarto conferencista da série, conforme anunciara a Gazeta do Povo, de 10 de junho de 1871. Sua palestra, intitulada “A afirmação do realismo, como nova expressão da arte”, durou cerca de duas horas e começou a ser revolucionária pelo próprio traje do conferencista. Segundo o biógrafo Antônio Cabral, citado por Berilo Neves na obra Eça de Queirós: romântico ou naturalista?, o moço apresentou-se com “uma irrepreensível sobrecasaca abotoada, colete branco, plastron de cetim, sapatos de verniz, luvas cor-de-chumbo e colarinho alto”. O fato destoava do vulgar em uso – e por si já era um programa de revolta.  Eça apresentou a sua teoria do realismo, tendo como pontos mais importantes os seguintes:

“a obra literária deveria em  lº lugar tomar a sua matéria na vida contemporânea , sendo perfeitamente do seu tempo; 2º: deveria proceder pela experiência, pela fisiologia, ciência dos caracteres e dos temperamentos; 3º: ter o ideal moderno que rege as sociedades, isto é, justiça e verdade. Em contrário da primeira condição, na nossa literatura tudo é antigo. A nossa arte é de todos os tempos, menos do nosso. Veja-se o Eurico, o Monge de Cister, o Arco de Santana.”

Para exemplificar a doutrina do Realismo, citou Eça de Queirós o romance Madame Bovary, de Flaubert, no qual, para o autor “o adultério, tantas vezes cantado pelos românticos como um infortúnio poético que comove perniciosamente a suscetibilidade das almas cândidas, nos aparece pela primeira vez debaixo da sua forma anatômica, nu, retalhado e descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente. O amor ilegítimo e venal, com o seu pavoroso cortejo de alucinações, de remorsos, de terrores, de aviltamentos, de vergonhas, e de ruínas, surge aos nossos olhos gotejante de miséria e de podridão, pavoroso como um espectro diante do qual instintivamente se recua com repulsão e horror”.

E acrescenta ainda:  

“O realismo é a crítica do homem, é a arte que nos pinta a nossos próprios olhos para nos conhecermos, a ver se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que a sociedade tem de mau. O seu processo é a análise, o seu fito, a verdade absoluta.”

Pouco mais duraram as conferências do Casino Lisbonense. Coube a Adolfo Coelho fazer a última de todas – pois o Marquês Antônio José de Ávila e Bolama, ministro do Reino, encerrou-as com a portaria de 26 de junho de 1871, por considerá-las prejudiciais à ordem pública a aos interesses do regime. Nesse dia deveria falar Salomão Sáraga, amigo de Eça, e seu companheiro do Cenáculo.   Mesmo com a proibição, as conferências do Casino provocaram grande impacto no cenário ultra-romântico, sobretudo na acanhada atmosfera mental da sociedade portuguesa. Na concepção de Adolfo Casais Monteiro, com os intelectuais de 1870,“não se dá somente uma revolução nas letras, mas o primeiro passo concertado para a integração de Portugal na Europa. Integração que nem por sombras existia antes, já que todos os escritores portugueses tinham sido, pela ausência dela autênticos exilados na própria pátria, forçados a viver num país de surdos-mudos um destino errado, por forças das condições do meio, no qual desde o século XVI a Contra-Reforma fazia reinar, culturalmente,  uma atmosfera de sacristia de aldeia.”

3. REALISMO / NATURALISMO EM MACHADO E EÇA

 Para Sílvio Romero, estava lançado o grito de revolta, que levaria Portugal ao Realismo, e à República. Essa foi a época em que, no Brasil também germinaram as sementes da Idéia Nova. A ciência invocava-se a cada passo, para justificar, não só os novos conceitos de Arte, como ainda os novos fundamentos da Política.

 Machado de Assis atravessou os estilos romântico, naturalista, parnasiano e simbolista, logrando escapar dos rigores das escolas. Estudou-as todas muito bem teórica e praticamente. Delas soube tirar o necessário para nutrir as suas criações sem se deixar levar pelos excessos, com o intento de produzir uma obra perene e universal. Refletiu intensamente sobre o problema estético. O ensaio já citado “Instinto de Nacionalidade”, produto de longa elaboração mental, é objeto da seguinte apreciação de Afrânio Coutinho:

“Suas colocações do problema da arte nacional, da influência do povo no estilo, do equilíbrio entre a nacionalidade e a universalidade, ao lado de reflexões sobre os vários aspectos técnicos da arte literária nos diversos gêneros, mostram como o artista estava àquela altura plenamente consciente de seu ofício e aguardava apenas se lhe amadurecesse a capacidade de realização através dos experimentos que vinha tentando.”

 Na crítica sobre “O primo Basílio”, datada de abril de 1878, expõe por outro ângulo a sua concepção de arte literária, em específico sobre o realismo. No artigo que sucede à publicação do ensaio, 15 dias após, em resposta à reação do público, Machado aconselha aos jovens talentos que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca, embora no verdor dos anos. E declara ao final:

 “Este messianismo literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi, decerto, em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas, mas corrigir o excesso de sua aplicação. Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética.”

  Sua posição equilibrada em relação ao Romantismo também persiste no que concerne ao Realismo. Como de resto num grande artista, a capacidade teórica acordava mais cedo do que a capacidade prática. É o que também ocorre com Eça de Queirós, uma vez que os seus postulados sobre a literatura nova confirmam-se também na prática, a ponto de reconhecer suas fraquezas e alguns senões porventura existentes na obra que realizara. Exemplo do que se afirma é a autocrítica de Eça, feita em carta dirigida a Ramalho Ortigão:

“acabei o Primo Basílio – uma obra falsa, ridícula, afetada, disforme, piegas e papoulosa, isto é, tendo a propriedade da papoula: sonolificente. O estilo tem limpidez, fibra, transparência, precisão, netteté. (refere-se ele aqui à clareza, evidência). Mas a vida não vive. Falta a poigne. Os personagens  - e você verá – não têm a vida que nós temos: não são inteiramente des images decoupeéss – mas têm uma musculatura gelatinosa: oscilam, fazem beiço como os queijos da Serra, empapam, derretem.”

 Ao fazer essa autocrítica, Eça ainda desconhecia a crítica de Machado de Assis que apontou falhas quanto à caracterização das personagens Luísa, Jorge e Basílio, classificando-as de títeres, as quais, para João Gaspar Simões, foram postas em ação para demonstrarem uma tese, é a tese que importa, e o romancista, por mais que faça para explicar as reações das personagens, não consegue imprimir-lhes aquela vida interior, irresistível, timbre das verdadeiras criações novelísticas. Se Eça tinha o propósito de castigar o adultério, na obra apenas conseguiu advertir as adúlteras: caso quisessem evitar morrer de desgosto, que queimassem as cartas dos amantes e escolhessem melhor suas criadas, conforme a observação de Machado de Assis:

 “A boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério. Se Juliana, a criada de Luísa, não se apoderasse das cartas pecaminosas, o marido da adúltera, de volta a Lisboa, receberia nos braços a esposa desiludida do amante como se fosse a mais pura das mulheres.”
 
Superada a fase naturalista que o impediu de realizar algo que pudesse exprimir com êxito o que de melhor tinha para nos oferecer, Eça passa a empreender sua deserção do Naturalismo e prepara terreno para construção de obras primas como Os Maias e a Ilustre Casa de Ramires.
Também a Machado de Assis não lhe pouparam críticas em início de carreira. Este foi alvo do rigor de Barreto Filho que, referindo-se aos Contos Fluminenses e às Histórias da meia-noite, declarou: “são medíocres, tateantes, sem convicção interior; são peças de principiante, feitas de um material escolhido arbitrariamente, sem a verificação íntima de seu valor, e primariamente trabalhado. Valem pelo equilíbrio que procura estabelecer entre a tendência romântica e a realista, no tratar o tema amoroso, que é o predominante”.  

CONCLUSÃO

Tanto em Machado de Assis, quanto em Eça de Queirós, a expressão do realismo insere-se num processo evolutivo, seguindo a cronologia de publicação das obras. Nas  primeiras produções dos dois autores são perceptíveis os recursos que seriam  posteriormente desenvolvidos e apurados. Os traços mais característicos da escola tomam em cada qual uma dimensão específica e particular, decorrente da ideologia da época, cuja filosofia, oposta ao idealismo romântico, orientava a construção de um mundo ficcional regido pela probabilidade científica. É conveniente que se levem em conta também nesse julgamento as influências de leitura que direcionaram a criação literária de ambos e, finalmente, a concepção estética que professaram nos ensaios e trabalhos de crítica, bem ou mal aplicados nas obras que produziram em suas diferentes fases literárias.  

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS
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BARRETO FILHO. O romancista Machado de Assis: Obra completa . COUTINHO, Afrânio (org.), Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na Literatura Brasileira. In Machado de Assis  -Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

FERREIRA, Alberto. Perspectiva do Romantismo Português. Lisboa, Moraes, 1979.

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa de ficção de 1870 a 1920. Rio de Janeiro : José Olympio / MEC, 1973.

MONTEIRO, Adolfo Casais. Entre 70 e 90. A poesia portuguesa contemporânea. Lisboa : Sá da Costa, 1977.

NEVES, Berilo. Eça de Queirós: romântico ou naturalista? Rio de Janeiro : DIN, 1951.

QUENTAL, Antero de. Questão Coimbrã (1865). PASSONI, Célia A. N. Eça de Queirós – A ilustre casa de Ramires / O primo Basílio; resumos, comentários, exercícios. São Paulo : Núcleo, 1991.

RAMALHETE, Clovis. Eça de Queirós. São Paulo : Martins, 1965.

SIMÕES, João Gaspar. Estudo crítico biográfico de Eça de Queirós. Obra Completa. Rio de Janeiro : Aguilar, 1970.

(*) Carlos Evandro Martins Eulálio é professor e crítico literário.