A epopeia dos Miranda
Por Reginaldo Miranda Em: 18/11/2025, às 06H19
À guisa de apresentação
A memória da família Miranda inscreve-se no vasto movimento de deslocamento das linhagens portuguesas que, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, transpuseram o Atlântico e colaboraram decisivamente para a formação do Brasil colonial. Procedentes de Miranda do Douro e de Vila Real, espaços de antiga tradição cristã-vetusta no norte de Portugal, esses ascendentes figuram entre os pioneiros agentes da ocupação da Bahia e, posteriormente, dos sertões piauienses, onde fincaram o moirão inicial de seus currais e consolidaram núcleos de povoamento duradouros. Trata-se, portanto, de uma história familiar que se articula à própria história da expansão luso-brasileira, compartilhando com tantas outras linhagens o ímpeto migratório que marcou as eras quinhentista, seiscentista e setecentista.
É nesse horizonte que se situa o poema ora apresentado. Longe de constituir mero exercício memorialístico, ele se propõe a reconstituir, por meio da forma épica, alguns dos eixos simbólicos que estruturam a trajetória dos pioneiros: a ancestralidade guerreira evocada na Reconquista contra o domínio mouro, a travessia marítima que uniu o Velho e o Novo Mundo, o labor colonizador que moldou paisagens e sociabilidades e, por fim, o estabelecimento das primeiras fazendas, marcos fundacionais da permanência da linhagem em solo brasileiro.
A tessitura formal dos versos, distribuídos em seis cantos e um epílogo, recorre ao decassílabo heroico, cultivando quintilhas de rima ajustada. O léxico arcaizante, por sua vez, cumpre dupla função: reaproxima o leitor do ambiente mental do classicismo renascentista e reproduz a musicalidade camoniana, cuja tradição épica forneceu o impulso inicial desta composição. Assim, a obra situa-se na confluência entre poesia, história e memória, erguendo-se como gesto literário que revisita as raízes da família Miranda e, simultaneamente, as raízes mais profundas da experiência colonizadora lusa.
A EPOPEIA DOS MIRANDA[1]
Do Alto Douro ao Sertão do Piauí
Reginaldo Miranda[2]
À memória de nossos antepassados,
cuja coragem e fé moldaram o destino de duas pátrias.
Canto I – Do Douro às Armas da Fé
Essa estirpe do Douro altaneira[3]
Muitos séculos guarda de memória;
Desde a lida contra a horda estrangeira,
Defendeu com fé pura e guerreira[4]
Da Lusitânia o nome e a glória.[5]
Nas batalhas de dura peleja,
Sob o pendão[6] do rei português,
Um herói se levanta e remeja[7]:
Nunca cai, pois no peito remeja
Da Pátria e de Deus altivez.
II – Obrão de Miranda
De Miranda bradou forte Obrão[8],
Cavaleiro da fé lusitana:
“Não deixemos ao mouro um só grão![9]
Com suor, com sangue, espada à mão,
Limparemos a terra profana!”
E plantou sua estirpe valente,
Do Douro às campinas reais;[10]
Pelas terras de Espanha, presente,
Fez-se tronco de sangue eminente,
Que gerou gerações imortais.
III – À Descoberta do Novo Mundo
Eis que o tempo nos leva, e no giro
De mil e quinhentos e além[11],
Uma frota se ergue no oceano e mira
O Brasil, que em brumas suspira[12],
Terra nova de sonho e de bem.
Entre as naus vai Simão de Miranda[13],
Capitão de olhar firme e profundo;
Vê o verde das matas que manda
Luz divina, que em tudo comanda,
Revelando o esplendor do Novo Mundo.
IV – A Semente no Sertão
Desde então prosperou essa gente,
De Miranda o brasão floresceu[14];
No trabalho constante e prudente,
Fez do chão a riqueza presente,
E o gado nos vales cresceu.
Da Bahia, com força e esperança,
Seguiram por serras e rios;
E no Piauí, sua herança
Transformou a mais rude andança
Em jardins de suor e desafios.[15]
V – Fundação da fazenda Buriti
Entre os campos agrestes, dest'Este,
No vale do nobre Piauí[16],
Faz Buriti[17], com honra celeste,
De Miranda o labor que não ceste,[18]
Testemunho que vive ali.
E ali novas vidas brotaram,
Filhos, netos, varões e irmãs;
Pelo solo as fazendas se alastram,
E os destinos do sangue se ataram
Como elos que o tempo não desfaz.[19]
VI – A Expansão e o Legado
Daquelas fazendas remotas
Ao Gurgueia, Itaueira e Canindé,[20]
Seguiram as almas devotas,
Abrindo clareiras e rotas,
Pelas veredas da fé.
Ergueram-se Jerumenha, Bom Jesus,
Bertolínia, Canto, Floriano;
Entre o sol e o labor que conduz,
Brilha sempre o mesmo arcano[21]:
Ser Miranda — herdeiro lusitano.
Epílogo
Ó descendência ilustre e segura,[22]
Que do Douro chegaste ao Brasil,
Conserva em teu nome a bravura
Da alma fiel, forte e pura,
Que venceu mar, guerra e péril.[23]
Do passado herdaste a firmeza,
Do futuro, a missão que te guia;
E em cada Miranda há a grandeza
De quem fez da honra e nobreza
Eterna e viva poesia.
[1] Poema de feição camoniana, tanto na forma quanto no espírito épico, estruturado em seus cantos e um epílogo.
[2] Da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfica do Piauí e da Academia de Letras do Médio-Parnaíba.
[3] Douro altaneira – referência ao vale do rio Douro, berço da família Miranda e de muitas outras famílias fidalgas do norte de Portugal; altaneira vem de “alto” + sufixo -eiro, significando “elevada, nobre”.
[4] Fé guerreira – alusão à Reconquista (sécs. VIII–XV), quando os reinos cristãos combateram a ocupação muçulmana na Península Ibérica.
[5] Lusitânia – antigo nome romano da região correspondente ao atual Portugal.
[6] Pendão – bandeira militar medieval, símbolo do rei e da nação.
[7] Remeja – verbo antigo (de remejar, “vibrar, brilhar, reluzir”), usado aqui para sugerir o ardor heroico.
[8] Obrão de Miranda – Personagem mítico fundador da família que teria lutado ao lado de seu rei nas batalhas de Guadalete (711) e Covadonga (722), embora não tenhamos localizado seu nome em alguns cantos que narram esses feitos. Do arcaico “Obrão” (de obra, significando “aquele que constrói”).
[9] “Não deixemos ao mouro um só grão” – ecoa o fervor religioso da Reconquista, semelhante aos juramentos de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Canto I.
[10] Campinas reais – metáfora da expansão territorial da nobreza portuguesa. Os pioneiros que vieram para a Bahia e passaram ao Piauí, Domingos de Miranda Ferraz e Antônio de Miranda Ferraz, eram naturais de Vila Real, na província de Trás-os-Montes e Alto Douro.
[11] “De mil e quinhentos” – referência direta à chegada da frota de Cabral ao Brasil (1500).
[12] O vocabulário “miras, brumas, esplendor” ecoa a linguagem camoniana usada para descrever visões épicas (Os Lusíadas, Canto II).
[13] Simão de Miranda – navegante português que comandou uma nau na esquadra de Pedro Álvares Cabral; nesse canto, encarna o português que atravessa o Atlântico no espírito dos descobrimentos.
[14] Brasão floresceu – metáfora heráldica, típica da poesia épica portuguesa, indicando a prosperidade da casa familiar.
[15] Jardins de suor – expressão camoniana (cf. “flores de sangue” em Os Lusíadas, VII, 14), simbolizando esforço e conquista.
[16] Piauí – Rio Piauí, no sertão de Dentro, cujo nome estendeu-se ao Estado, onde chegaram os Miranda no início da colonização. Topônimo indígena tupi: piá (“peixe”) + uí (“rio”), “rio dos peixes”.
[17] Buriti – Fazenda fundada pelo capitão-mor João Rodrigues de Miranda, no vale do Riacho Fundo, afluente do rio Piauí. É a origem das cidades de Canto do Buriti e Brejo do Piauí. Palavra de origem tupi (m’buri’ti), designa palmeira de regiões úmidas; símbolo de vida sertaneja.
[18] Ceste – forma arcaica de cesse (do verbo cessar), aqui usada para manter o ritmo e o sabor arcaico.
[19] Elos que o tempo não desfaz – fórmula épica tradicional para expressar a continuidade de uma linhagem.
[20] Gurgueia, Itaueira e Canindé – rios que possuem toponímica indígena, são testemunhos da expansão do gado e da colonização no sertão seiscentista e setecentista.
[21] Arcano – do latim arcanus, “mistério sagrado”; aqui, a força ancestral que sustenta a linhagem.
[22] Descendência ilustre – retoma o tópico da gloria perennis, a glória imortal das casas nobres, típica da epopeia renascentista.
[23] Péril – forma poética de perigo, do latim periculum; usada em Camões e nos poetas seiscentistas.

