É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde.
Clarice Lispector
Mais uma encomenda estava sendo esperada. Cabia a Ela a responsabilidade de enviá-la ao seu destino. O Chefe fora muito claro nas suas instruções. Ele lhe passara, além do dia da entrega e da quantidade, as condições gerais da “mercadoria”: três machos jovens, da espécie humana, em perfeito estado de conservação. Um pouco imaturos, mas fisicamente perfeitos. O tipo de trabalho que Ela costumava chamar de “três em um”. Pura rotina.
Como estava dentro do prazo, aguardou, sem pressa, a oportunidade certa para agir. Esperar nunca havia sido um problema. Ao contrário. A paciência sempre fora uma de suas maiores virtudes.
O momento perfeito para colocar-se em ação surgiu quando os três receberam convites para a mesma festa, no final de semana. Ela, de imediato, sentiu a animação que os dominou. Festa, para eles, era sinônimo de conversa, dança e, principalmente, de muita bebida. Ficou ainda mais satisfeita quando os ouviu combinar que iriam todos juntos no mesmo carro. Com certeza, isso facilitaria muito o seu trabalho.
Na noite da festa, como Ela previra, houve muita conversa, dança e, é claro, bebida. Quando, enfim, resolveram ir embora os três já estavam bastante “altos”.
– Nesse ritmo – pensou Ela – a entrega da encomenda ocorrrerá no horário e sem nenhuma dificuldade. Pura rotina.
No entanto, houve um momento no qual Ela pressentiu que a situação podia ter-se complicado. Um deles, mesmo “alto”, resolveu colocar o cinto de segurança. Pior. Iniciou uma discussão, porque queria que os outros também o colocassem. Nesse ponto, apesar de ser contra as regras, Ela decidiu intervir. Com muito jeito – sem que eles percebessem – convenceu os dois indecisos que o cinto era perfeitamente dispensável e que todos estavam seguros. O único que não se deixou convencer foi o autor da polêmica. Ela, entretanto, não viu motivos para se preocupar. Esse era só um detalhe, poderia ser resolvido mais tarde.
Com esse problema solucionado, o carro, finalmente, começou a se mover. A arrancada foi brusca, lançando todos para trás.
– Maldita inércia! – Ela reclamou. Tinha receio que seus efeitos pudessem colocar de novo em discussão o uso, ou não, do cinto de segurança. Felizmente, nenhum deles sequer notou que seus corpos haviam sido jogados para trás, na tentativa de permanecer em repouso.
Os três sentiam-se bem. Alegres e falantes. Preso dessa euforia, o motorista nem percebeu quando pisou mais fundo no acelerador. Rapidamente o ponteiro do velocímetro chegou à marca dos 150 km/h.
A partir daí Ela limitou-se, apenas, a observar. Pura rotina.
Cantando e falando bobagens eles não viram a curva na estrada. O carro, sem controle, escapou dela, em linha reta e com velocidade de 150 km/h. Apavorado o motorista ainda tentou frear, mas não conseguiu. E o inevitável aconteceu. O carro bateu contra uma árvore.
Ninguém ouviu o barulho da colisão. Era um lugar solitário. Esperando-os, calmamente, ao lado da árvore, estava Ela.
Satisfeita preparava-se para comemorar o sucesso de mais uma missão cumprida quando sentiu que algo estava errado. Desconfiada aproximou-se do carro. O que viu a deixou muito aborrecida. O responsável pela polêmica sobre o uso do cinto de segurança não fora arremessado para frente, como a boa e velha inércia assim o determinava. Ele estava tonto e assustado, mas bem.
– Maldito cinto de segurança! – Ela esbravejou.
A entrega da encomenda havia sido irremediavelmente comprometida. Um estaria faltando. Resignada, afinal não podia ganhar todas, virou-se e seguiu o seu caminho, já pensando na sua próxima missão.
Publicado originalmente no site Argumento.net, coluna QUEDA LIVRE, em setembro de 2008.