A DESPEDIDA DE CADA  DIA

                                The evil that men do lives after them.

                                           William Shakespeare ((1564-1616)

                            

                                                CUNHA E SILVA FILHO

         A vida é um romance machadiano, e, fosse citar um dos títulos, não hesitaria em citar Dom Casmurro (1899)  Nesta crônica,  direi por quê. Quero me prevenir  de conceitos livrescos ou solenemente  eruditos   ou  highbrow  à Aldous Huxley (1894-1963)[1] que  tantas vezes   nos atrapalham  e nos  desviam  para a ausência de pensamento  próprio ou de natureza antropofágica.

         Está o mundo muito livresco e a acumulação  é gigantesca.  Há teorias para tudo  até para baboseiras  aplaudidas  aqui e alhures  e, se falo em alhures, falo  do exterior, dos outros  países  desse planeta  ruidoso  e com  traços apocalípticos,  de vez que,   numa palavra,   o que muda é só a língua, traço, de resto,  que  não se modificou  por causa  da conhecida  Torre de Babel sobre  A  qual  até  linguistas,  como  Mario Pei. não deixam de fazer  uma  alusão ainda que  não seja   para  corroborar  a existência ou não do fato.

         A alma humana, valendo-me de William Shakespeare (1564-1616) e do próprio Machado de Assis (1839-1908), mutatis mutandis - que não me deixem   mentir -  é  tão  igual  quanto  todos nós que nos chamamos, amiúde e com  alguma arrogância  mal disfarçada,  de humanos. Que humanos  podemos  denominar  uma pessoa que,  por querer  disputar ficar com uma cadeira   num local e não o conseguindo, mata estupidamente   uma outra  que desejava  também a  mesma cadeira?

            Quanto de humano  temos em  nós em ações  brutais  e selvagens como estas?  Quanto de verdadeiramente  humano  somos  todos nós? Não sei. Talvez ninguém o saiba. Há uma descida de esgotamentos  e exaurimento de traços solidários  na natureza   humana  que há tempos está  nos   igualando  a monstros sociais, tanto  em indivíduos  ditos escolarizados  quanto  em  pessoas  sem  instrução.

           Vejam as duas imagens emblemáticas do que estou  tentando  passar-lhe aqui,  caro leitor. Uma é a conversa dos coveiros da tragédia Hamlet, a qual foi publicada  c.1598-1604;  “provavelmente, segundo  os co-autores do livro An outline-history of English literature,  c. 1600.[2]

             Hamlet, sem peias na língua, nos dá  a medida  certa  do que somos   e fazemos   jus ao pulvis sumus. A outra é da daquela fieira de  notícias de falecimentos, ao longo dos capítulos do romance machadiano, Dom Casmurro, aos quais, faz muito tempo,  me referi  num artigo  publicado, em jornal de Teresina,  em duas partes  de título: “Sentimento cruel em Machado de Assis “[3]

          Ora,  tanto uma imagem  quanto a  outra,  o  ponto  comum  um se me afigura, é óbvio,  um acontecimento  esperado a qualquer   momento.  Somos  aparentemente alguma coisa  apenas enquanto vivemos.  E entre a vida e a morte,  o fio é muito tênue,  inesperado, repentino,   provocador  da surpresas,    do  inacreditável,  de um abrir e fechar dos olhos,   do que não imaginávamos que seria  assim  ou assado,   alegre ou triste,  barulhento  ou silencioso.

           Tanto quanto a imagem  introspectiva de que, em idade  provecta,   por dentro, nos  achamos ainda moços e prontos  até  para amar  uma ou mais vezes.Temos a sensação  de que,  na vivência do presente,  do que, por mais de uma vez,  chamei de primado do presente (embora dando a esse sintagma  um sentido  diferente,  o de  privilegiarmos  só  o instante  vivido   em detrimento  dos dois  outros   tempos, o passado e o  futuro (que também são  realidades ponderáveis e latentes ), temos a  forte  sensação  de que  não morreremos.

          Não há ninguém  que não tenha   experimentado  essa sensação   de eternidade, sensação que  localizo  mais nos momentos de nossas vidas  mais felizes e mais    inebriantes. Essa sensação de eternidade  nos é muito cara  em algumas fases   de nossas vidas dado que ela  tem   o seu tanto   de fuga momentânea  ao sentimento   da finitude  da nossa curta  e  imprevisível  travessia   do começo  ao fim.

           Contudo,  a quem leu  uma obra e outra, como Dom Casmurro,  é o próprio narrador machadiano  e os coveiros, no caso de Hamlet,   que, volta e meia,  nos  vêm à lembranças    mostrando  que  a vanitas vanitatis  e o  pulvis sumus, ao final  e ao cabo,  ali estão   nos alertando  para  brevidade da vida    e que  os humanos e os desumanos    hão    de, uma vez   ou outra, serem  forçados  a engolir   a efemeridade  de nossos vícios, oportunismos, indiferenças, preconceitos, mesquinharias,  hipocrisias,    atos vis  e abomináveis.

             No mundo em que vivemos, sob o signo do imediatismo,  do hic  et nunc,   somos  um tanto meio iludidos  pelo dinâmica da multiplicidade  de incidentes e acidentes  que nos  tomam   de assalto  a mente, já por si mesma   atolada  nos  apelos ao presente utilitarista e dionisíaco. Sem tempo  e azo  de pensar  em si mesmo, muito menos  deixando o hedonismo  escapar  para  um  reflexão  metafísica em direção a  um mergulho  denso, profundo, visceral,  em  direção  a questões   como  a transitoriedade dos homens,  dos objetos e das coisas  que nos cercam   e, ao contrário, nos fazem  ver, diante de nós,  não mais  pessoas, porém interesses  imediatos  e inconfessáveis.

         Vida material,  amizades datadas  ou descartáveis, prazeres, nos quais  campeiam  as futilidades, a superficialidade,  as  “mentiras convencionais  de nossa  civilização”,  momentâneas de bons dias   insossos, beijos e  abraços  virtuais, muitas vezes  vazios de sentidos, mero ritualismo   de protocolos sociais   e handshakes   do mundo do business,  gestualidades mecânicas, verdadeiras     sensaborias  pós –modernas.

         Não é de causar  espécie  quem mesmo,  no último dia de despedida,  o ritual,  sobretudo no mundo  da high society, se revista  da suntuosidade  nas vestimentas  e nos gestos  sombrios   exigidos   pelas convenções sociais com indefectíveis óculos escuros   de grife a prantear  quem também na vida  passou  ou agiu  da mesma  forma  e com  os mesmos  privilégios.

        Assim caminha a humanidade, deixando atrás de si o diálogo final  dos coveiros shakespearianos sobre  o destino dos homens  e os capítulos machadianos assinalando fleumaticamente  a nota fúnebre  de seus personagens  - perdedores  ou vencedores -, tragados pelo voracidade do tempo.

 

[1] PEI, Mario. All about  language.London:  The Bodle Head, 1956, p.9

[2] OTIS, William Bradley and Needleman, Morriss H. An  outline history of English literature. Volume 1: To Dryden New York: Barnes & Noble Inc., 1965, p. 204.

[3] SILVA FILHO, Cunha e. Sentimento cruel em Machado de Assis. Jornal Estado do Piauí, Teresina, 1981( 1ª parte);  Sentimento  cruel em Machado de Assis (final). Jornal  Estado do Piauí, 1981.

(  Texto  revisto  e melhorado)