(*) Dílson Lages Monteiro

“Toda grande distância pode ser celeste”.

“As coisas começam deveras é por detrás do que há”.

Tomo duas assertivas poético-aforísticas, entre as centenas de construções de Guimarães Rosa em Tutameia, para referendar o que em cada um de nós reverbera: como não se absorver pela escritura de um escritor cuja preocupação é inserir o leitor, pelos interditos, na própria fabulação que constrói?

O poeta Carlos Drummond de Andrade não resistiu ao caráter excepcional dessa linguagem de interditos poéticos de um escritor cuja prosa era também, em sua materialização, poesia. Tomado pelo fascínio da inventividade de Rosa e, em memória do autor de Sagarana, em 1967, resumiu  em versos a essência do grande prosador mineiro, a natureza aberta de sua obra, por meio das marcas discursivo-estilísticas  do  próprio Guimarães,  em perguntas que são também respostas e, ainda assim, deixam dúvidas sobre seu grau de certezas:

 

Um chamado João

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

 

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

 

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

 

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

 

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso
cada qual em sua cor de água
sem misturar, sem conflitar?

 

E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

 

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

 

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

 

Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

 

Também não resistiu à natureza dialogal da obra de Guimarães Rosa o tradutor e crítico literário Paulo Rónai, realizando alguns dos mais sólidos estudos sobre a obra do romancista mineiro. De acordo com Rónai, as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor, resultaram na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Reforçando esse traço temático, diz o pesquisador que, em Guimarães, “nunca se rompeu a comunhão com a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujas espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angústia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: ‘Viver é uma obrigação sempre imediata’” (p.20).

Segundo Rónai, o caráter aberto da obra de Guimarães se explicaria por um  estilo determinado pela fala popular:

“A translineação desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e, no entanto, determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e o sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloquente, a facilidade com que se adapta o seu cabedal de expressões às situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilísticos” (p.20-21).

A partir dessas percepções, conclui o crítico: “(...) As maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético, são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular” (p.20).

 

***

 

A crítica acadêmica apresentou-se nas últimas décadas como um campo autônomo que redimensionou o lugar da literatura como manifestação artística. Preocupada em examinar os elementos materiais que sustentam a dimensão estética do discurso literário, essa forma de exame do texto literário se tornou mais do que um campo promissor da ciência, um roteiro palpável para a leitura de obras literárias. Não bastasse isso, tratou essa crítica de renovar-se no permanente diálogo com outros campos do saber, dando mais segurança à valoração de obras, estabelecendo princípios para que se defina com maior propriedade o cânone.

Se até meados do século XX essa função era determinada predominantemente pela crítica de rodapé, exercida nos jornais, de feição principalmente impressionista, historiográfico-sociológica ou temático-biográfica, hoje, embora ainda exerçam inquestionável contribuição os poucos suplementos culturais que ainda resistem nesse mister, às vezes, até cooptando das universidades suas vozes mais lúcidas, é a crítica oriunda dos mestrados e doutorados um dos mais sólidos e confiáveis  olhares na mensuração do texto literário: a crítica acadêmica ou universitária desenvolveu métodos e critérios próprios que a consolidaram como instrumento de primeira grandeza nos estudos literários, apesar de se reverterem da designação de “ensaio” e de tentarem se configurar como gênero autônomo, regularmente, preso às salas das universidades.

Francisca Marta Magalhães de Brito, professora de grandiosa contribuição ao magistério piauiense nas esferas pública e privada, professora aposentada do Instituto Federal do Piauí e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), incorpora-se ao conjunto de pesquisadores que crê na autonomia do fenômeno literário, ao se propor com destreza e argúcia a mergulhar sobre a obra de um escritor já muito debatido e estudado: Guimarães Rosa. Em “Viagens para fim de ida: os contos críticos de Tutameia”, busca a pesquisadora, à luz de correntes linguísticas contemporâneas, a análise da obra em si mesma e de seus elementos intrínsecos, detendo-se no estudo das funções do paratexto, embora seja um de seus objetivos fundamentais aquilatar a contribuição do leitor na cosmovisão da obra. Ao mergulhar nesse propósito, vai além dos conceitos e interpretações já estabelecidos sobre a obra de Rosa mais burilada do ponto de vista formal.

Para a compreensão exata da importância do objeto de estudo da pesquisadora Marta Magalhães, examine-se o que diz o crítico literário piauiense Assis Brasil, em ensaio em que fornece uma visão geral sobre a obra Roseana:

“Nos dois últimos livros, publicados em vida pelo autor, Primeiras Estórias e Tutameia (Terceiras Estórias), ele romperia com a narrativa longa, com o plot delinado e adotaria a narrativa de flagrante, de “estados” mentais, emocionais ou episódicos, mas a sua experimentação no sistema linguístico continua às vezes mais exacerbada do que antes, e é onde, precisamente em Tutameia, nos daria a chave de todo o seu processo criador, através de prefácios-ensaios, dignos de um exageta “. (p.62)

São os efeitos (tanto sobre a obra em si, quanto sobre o leitor), gerados pelos prefácios-ensaios de que fala Assis Brasil, a matéria-prima em que se dissipam as anotações felizes de Marta Magalhães. Dividindo o estudo em três partes, a pesquisadora guia-se por apresentar inicialmente as bases teóricas de sua análise recorrendo ao estudo composicional do gênero conto e do intergênero, assim como de postulações que explicam a participação do leitor no preenchimento dos vazios que caracterizam o texto.

Em seguida, detém-se em examinar a presença da ficção nos quatro prefácios do livro, observando de que modo esses paratextos se relacionam, além do funcionamento metacognitivo deles como roteiro para a leitura dessa obra e como suporte para o entendimento das bases da criação artística de Rosa, as quais servem como arcabouço para a releitura da fortuna crítica do escritor. Nesse recorte, demonstram-se úteis também proposições da Estética da Recepção. Por fim, a pesquisadora focaliza-se em perscrutar o lugar da metaficção em cada conto, enfatizando as recorrências temático-discursivas mais relevantes que encaminham essa ficção a apresentar-se como criação elaborada para referendar, conscientemente, a concepção de obra aberta.

A sensação de estranhamento, sobre a qual se deteve o crítico literário Harold Broom, a fim definir a particularidade da literatura na determinação do cânone, encontrou em Guimarães Rosa terreno fértil. Sua obra, marcada pela viva presença da renovação lexical e da revelação de um pedaço do sertão que identifica o Brasil, tem as mãos conectadas também ao pós-moderno: conectada ao intertexto, conectada à metaficção. A esse propósito, ainda que a produção de Rosa esteja enquadrada no século XX, cabe visitar as anotações de Leyla Perrone-Moisés, em análise das mutações literárias no século XXI, para definir o que é o pós-moderno. Entre os traços dessa literatura, destaca Perrone-Moisés:

“(...) A intertextualidade tornou-se generalizada, a referência e a citação, mais frequentes (...), usadas com humor; a metalinguagem passou a ser mais utilizada como recurso irônico; a mescla de referências à alta cultura e à cultura de massa tornou-se habitual”. (p.46)

Atenta a esses elementos, a presença de características pós-modernas em Guimarães Rosa, Marta Magalhães vai à procura, sobretudo, da inventividade e da fabulação da escritura de Rosa, a partir do exame dos efeitos de sentidos da metaficção, para não apenas destacar o lugar de Tutameia no conjunto da obra do autor de Grande Sertões Veredas, mas também para resignificar sua essência formal e temática: a ironia e a ambiguidade; a ciência e a fé. Além disso, para ressaltar o significado dos prefácios de Tutameia:

“(...) Verdadeiros ensaios sobre poética, a discussão sobre a arte em geral, sobre poesia, ficção, filosofia e modos de percepção do mundo e do homem ali se instauram”. (p.94)

Situam-se os esforços da pesquisadora Francisca Marta Magalhães de Brito como indispensável contribuição aos que, fascinados pela obra de Guimarães Rosa, desejam redescobri-la por meio do percurso que, com maior exatidão, mais bem encaminha o leitor pela natureza de um estilo único e inconfundível de um escritor que, renomeando a própria linguagem, viveu a língua para renomear o mundo e a si mesmo.

 

Referências:

BRASIL, Francisco de Assis Almeida. A nova literatura I – o romance. Rio de Janeiro: Ed. Americana, 1973.

BRITO, Francisca Martha Magalhães. A Metaficção em Tutameia: contos e prefácios em diálogo com uma teoria ficcional. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2017.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

RÓNAI, Paulo. 1985. “Os prefácios de Tutameia” e “As estórias de Tutaméia”. In: ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras Estórias). 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 215-225.