A CORTINA BRANCA - PARTE I
Por Margarete Hülsendeger Em: 02/01/2012, às 11H39
Já passava da meia-noite e Marta ainda estava debruçada sobre uma pilha de papéis. Há horas ela escrevia, riscava e corrigia. Precisava terminar a correção das provas, pois seu prazo para a entrega das notas era até amanhã. Cansada, ela olhou para o que ainda faltava: trinta provas, uma turma inteira.
Sentindo todos os músculos do corpo doloridos, ela largou a caneta e esfregou os olhos. De uma garrafa térmica, mantida a noite inteira ao seu lado, serviu-se de mais uma xícara de café.
Marta gostava do seu trabalho. Gostava mesmo, não era algo dito apenas da boca para fora. Ensinar estava no seu sangue e desde menina era o que queria fazer. No entanto, às vezes desejava que algumas coisas fossem diferentes.
Sua escola era pública e ficava em um dos bairros mais pobres da cidade. Algumas crianças iam à aula sem o café da manhã ou, no caso das aulas à tarde, sem o almoço. Marta sabia que muitas delas frequentavam o colégio em busca do alimento que não tinham em suas casas. Havia dias em que depois de uma aula, após ver muitos daqueles rostinhos perguntando ansiosos sobre qual seria o lanche ou o almoço, ela simplesmente desabava. Suas colegas diziam que ela era sentimental demais e que aquela era uma realidade que não lhe cabia mudar. Marta não aceitava esse raciocínio. Era absurdo. Desumano.
Largando a xícara de café sobre a mesa, voltou a se concentrar nas provas. Estava chegando ao final da correção quando uma frase em uma das avaliações chamou a sua atenção:
Profa Tô com medo. Ele não me deicha em paz.
Surpresa, Marta leu, no cabeçalho, o nome do aluno. Seu espanto se tornou ainda maior. O que esse recado, escrito numa letra miúda, quase ilegível, queria dizer? Era um pedido de socorro ou uma brincadeira de criança? Preocupada, Marta separou essa prova das demais. Amanhã, ou melhor, hoje, quando chegasse ao colégio, tentaria descobrir o que estava acontecendo. Agora era preciso terminar e, quem sabe, dormir um pouco.
Duas horas da manhã. No posto de enfermagem, Sílvia colocava em dia a ficha dos doentes. Remédios que precisavam ser administrados, dosagem, horário, quem precisava de cuidados especiais, quem deveria ser preparado para a cirurgia.
A rotina no interior de um hospital público era muitas vezes massacrante. Noites sem dormir, num corre-corre ininterrupto atendendo pacientes acomodados em camas improvisadas nos corredores e até mesmo em cadeiras. Ela e seus colegas tentavam fazer o melhor que podiam, mas tudo parecia ser sempre insuficiente. E o resultado acabava sendo a raiva dirigida contra enfermeiros e médicos pelos doentes e seus familiares. Ela já havia perdido a conta de quantas vezes fora agredida por algum parente inconformado com a situação.
Havia dias em que a sua vontade era a de deixar toda essa loucura para trás. No entanto, ela não tinha para onde ir. Aquela era a sua profissão e aquele era o seu trabalho. Com um susto, ao olhar o relógio, Sílvia percebeu que já tinha passado a hora da sua ronda. Apressada, guardou os formulários e com outra prancheta nas mãos deixou o posto e dirigiu-se aos quartos para verificar se tudo estava em ordem.
Marta, virada para o quadro, ouvia, sem intervir, os murmúrios e as risadinhas dos alunos. Eram normais as brincadeiras enquanto eles copiavam a tarefa e ela não se importava com isso. Quando o último exercício foi posto no quadro limpou as mãos sujas de giz e sentou para realizar a chamada. Conforme as crianças respondiam, Marta permanecia atenta tentando perceber qualquer sinal de que alguma coisa estivesse errada.
Quando Luis respondeu, ela o olhou com interesse. Era um menino de uns doze anos, um pouco gordinho, usava óculos e se sentava meio encolhido na cadeira. Ao contrário das outras crianças, ele não estava envolvido em nenhuma brincadeira. Quieto, permanecia de cabeça baixa, fazendo o exercício que havia sido proposto.
Discretamente, Marta retirou a prova da pasta e voltou a ler a frase. Não sabia o que pensar. Pelo que podia ver, tudo estava bem, ele apenas parecia ser uma criança tímida e introvertida, nada mais. Poucos minutos antes de soar o sinal para o fim da aula ela devolveu as provas aos alunos, deixando a de Luis por último. Quando apenas os dois estavam na sala, ela o chamou:
- Luis, você pode me dizer o que significa essa frase em sua prova?
O menino, assustado, não conseguia olhá-la nos olhos e num murmúrio respondeu:
- Que frase, profa?
- Essa aqui, você está vendo? Do que ou de quem você está com medo? – disse, apontando para a frase assinalada na prova.
Silêncio.
- Luis, o que está acontecendo? – Marta voltou a perguntar.
- Nada, profa. Não ‘tá acontecendo nada. Isso aí foi só uma brincadeira. Eu juro.
- Luis, você tem certeza? Se você está com algum problema, pode me falar.
- Não, precisa não – respondeu agitado o menino. – Eu ‘tava só brincando!
Marta percebeu que não adiantava insistir.
- Tudo bem, Luis, eu acredito em você. Mas se um dia você estiver precisando de ajuda, não precisa ter medo, pode vir falar comigo, certo?
- ‘Tá – respondeu Luis enquanto apressadamente colocava a prova dentro da mochila e saia correndo da sala.
Marta ficou olhando para a porta ainda sem saber o que pensar. Com certeza, Luis estava escondendo alguma coisa. Contudo, enquanto ele não se abrisse, ela nada podia fazer. Resolveu, então, ficar alerta. Se algo estivesse acontecendo ela ia acabar descobrindo.
- Como foi hoje na escola? – perguntou mais uma vez a mãe.
- Bem – disse o menino.
- Bem como? As aulas foram legais? Como foi com seus amigos? Faz tempo que você não fala deles.
Durante todo o jantar Sílvia havia tentado puxar assunto com o filho. Ele, no entanto, só respondia com monossílabos. Essa atitude a estava deixando ansiosa, pois o filho sempre fora um menino falante, cheio de novidades sobre o colégio e os amigos.
- Mãe, não tenho nada p’ra contar. ‘Tá tudo bem. Posso sair da mesa? – perguntou aflito, para depois completar – ‘Tô sem fome.
- Mas você não comeu nada!
- ‘Tô sem fome – repetiu e sem esperar pela permissão deixou a mesa e foi se trancar no quarto.
Sílvia olhou para o lugar vazio sentindo um aperto no coração. Não conseguia entender o que andava acontecendo com o filho. Só podia ser algo relacionado com a escola. O problema é que ela ainda não havia tido tempo de ir ao colégio conversar com os professores. Da última vez, quando terminou o seu turno no hospital, estava tão esgotada que o seu único desejo era seguir direto para casa descansar. No entanto, ela sabia que precisava dar um jeito. Decidida, resolveu ir no dia seguinte, depois do trabalho, até o colégio. Quem sabe conversando com os professores descobria o que estava acontecendo? Com essa decisão tomada, sentiu-se mais calma. Amanhã, tinha certeza, tudo estaria resolvido.
Continua...