ELMAR CARVALHO
Eu tinha 17 anos de idade. Estava levemente tocado pelo álcool. Voltava de uma festa onde dançara a noite toda e ingerira algumas talagada de pinga, uma serrana muita forte, de rachar pulmão. Minha casa ficava a uns dois quilômetros do local do forró, realizado no povoado Varjota. Quando cheguei na encruzilhada das veredas, com a ajuda de minha lanterna, avistei um prato sobre o qual havia uma galinha com farofa, ao redor de umas velas já apagadas, perto de uma garrafa de cachaça. Não tive dúvida, era um despacho. Falava-se que um morador da redondeza, de nome José Grilo, era um macumbeiro. Segundo os comentários, vinha gente de longe para consultá-lo e lhe encomendar trabalho. Com a audácia da idade e a fome aguçada pelas talagadas de calibrina que tomara, não hesitei em comer boa parte da galinha e da farofa, e de quebra ainda tomei umas cinco doses da branquinha.
Ainda estava turvo quando prossegui pelo caminho macio, por causa da areia. Ainda faltava aproximadamente um quilômetro para eu chegar à casa de meus pais. Menos de cem metros adiante, senti-me incomodado pelo sapato direito. Certamente havia entrado areia nele, e isso me irritava o pé. Retirei o calçado, e derramei o conteúdo. Mas não andei noventa metros, e já novamente o mesmo problema voltou. Retirei novamente a areia. Imaginei que o velho sapato deveria ter algum furo, embora eu não tivesse ainda notado esse defeito. Na quinta vez em que tive que parar, já o sol havia saído, de modo que resolvi vistoriar detida e atentamente o calçado. Devo confessar que desta feita estava tomado de ira. Furioso, retirei bruscamente o surrado e escangalhado sapato. Tomado de pavor, constatei que ele não tinha areia. Pude observar que o seu conteúdo era a farofa que eu havia comido; a mesma cor, a mesma textura, a mesma granulação. No susto, derrubei o calçado.
Embora ainda assombrado, recolhi o objeto e o bati com fúria no tronco de uma árvore, para retirar toda a farofa que ele poderia conter. Reparei, então, que com as batidas a farofa jorrava do sapato. Era como se estivesse sendo vomitada a iguaria do despacho que eu havia comido. Horrorizado, atirei o calçado numa moita, e fui correndo para minha casa, que já estava a uns quatrocentos metros. Cheguei esbaforido, a respirar ruidosamente. Meu pai, madrugador, estava sentado em um tamborete, no terreiro da casa. Ao me ver chegar correndo, ficou apreensivo, e me perguntou:
– O que é que tu tem? Qual o motivo dessa desabalada e amalucada carreira?
Arfante e ainda muito nervoso com o que vira, respondi-lhe:
– Estou assustado com o meu sapato direito, que passou a vomitar a farofa da macumba, que comi...
– Tu tá é bebo bosta. Vai logo dormir e deixa de conversa besta!
Só então notei que de nada mais me serviria o sapato esquerdo, que ainda usava, sem o outro, que se transformara numa cornucópia, a vomitar incessantemente farofa de despacho. Se ao menos ele jorrasse moedas de ouro, como a cornucópia de verdade... Claro que nessa época eu nunca havia ouvido falar em cornucópia, o chifre mitológico da fartura. Eu era um caboclo analfabeto, nascido e criado no mato. Mas foi por causa do meu sapato roto, que se tornara uma cornucópia de couro, que tomei a decisão de ir para cidade, para trabalhar e me formar, no objetivo de conseguir uma vida melhor. Por coincidência ou não, a logomarca da empresa de que sou executivo é uma cornucópia. Não preciso dizer que sou diretor de um grande banco.