A cantoria segundo um cantador
Por Bráulio Tavares Em: 09/09/2021, às 22H19
[Bráulio Tavares]
Um sinal de amadurecimento na Cantoria de Viola é o fato de que quase todo ano aparece um livro a respeito da grande arte, só que não é escrito por um diletante “de fora” como eu, nem por um pesquisador acadêmico – é escrito por um cantador ou um ex-cantador, alguém que conhece o ofício pelo lado de dentro.
É diferente, não porque “só os cantadores podem explicar a cantoria”, mas porque quanto mais ângulos de visão e de interpretação tivermos sobre um fenômeno, maior a possibilidade de que surjam verdades a seu respeito. Tem coisas na cantoria que um cantador não enxerga, mas um jornalista pode enxergar, pela formação que tem; um sociólogo pode enxergar outras, com os instrumentos de que dispõe; um psicólogo; um musicista; um historiador; e pode ir armando a fila.
E o cantador tem, é claro, o seu lugar de fala, o seu lugar de olho privilegiado, de séculos de tradição assimilados desde a infância. E tem, no dizer de Camões, “um saber só de experiências feito”. Ter experiência não é necessariamente ter a “última palavra” sobre um assunto. Essa palavra pode até ser a da teoria pura. Mas sem ouvir a palavra da experiência, o que a teoria tem a dizer?
Desafio no Repente – A Poética da Cantoria na Contemporaneidade (Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2019) é o livro do cantador Edmilson Ferreira, resultado da sua dissertação de mestrado no CCHLA da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação da Profa. Dra. Beliza Áurea de Arruda Melo.
O livro tem quatro partes, organizadas de acordo com o modelo clássico das teses. Na primeira, ele define o objeto de estudo, dando uma geral nas principais teorizações sobre a Cantoria – uma forma híbrida de arte, que nem todo mundo soube teorizar direito. Edmilson fornece uma boa bibliografia (cheia de obras desconhecidas que me deixaram com as pontas dos dedos coçando), e equilibra sua fontes entre os estudiosos clássicos do repente (Câmara Cascudo, F. Coutinho Filho, etc.), e pesquisadores contemporâneos (como minha amiga e mestra Idelette Muzart).
Vi com satisfação o tanto de vezes que ele cita os comentários de Paul Zumthor, um teórico muito importante daquilo que a gente chama “as Literaturas da Voz”. Um grande obstáculo para o entendimento correto da arte da cantoria por meio de livros é que um livro não tem como reproduzir o seu aspecto oral, vocal, sonoro.
Nem vou falar do som da viola, das toadas musicais, da riqueza de formas melódicas que há na cantoria. A mera articulação dos versos é um dado essencial para perceber o que os violeiros estão tentando fazer – inventar frases na hora, obedecendo a esquemas complexos de ritmo, rima, cadência, prosódia. E esse dado se perde no verso escrito. (Esta questão é abordada na Parte 3, “O Corpo Repentista”.)
A segunda parte tem um teor mais histórico, resumindo a evolução da poética do improviso entre nós. E Edmilson toca numa questão importante, a ausência de documentação a respeito desse fenômeno que, além de ser essencialmente oral, era praticado, ao longo dos séculos da colonização, por “gente sem importância” social. Há enormes buracos na história da cantoria. Ele observa:
Vale lembrar que mesmo as expressões artísticas vindas da Europa chegaram profundamente influenciadas pela passagem dos árabes no Ocidente europeu medieval. (...) Se o modelo basilar para a poética dos repentistas chega com os colonizadores e com os escravos, não é possível se pensar numa lacuna de quase três séculos para a aparição dos primeiros focos da cantoria de repente. (pág. 71)
Eu vejo de maneira parecida, embora a meu ver haja uma ilha solitária nesse mar de anonimato, que é a figura ímpar de Gregório de Matos (1636-1696), que não era um cantador no sentido moderno da palavra, mas é decerto um precursor da sua arte poética. Motes e glosas em setissílabo estão presente em sua obra, e dele se contam muitos episódios de versos feitos na hora por provocação ou desafio de pessoas em volta.
Como a arte da glosa declamada sempre foi viva em Portugal, não há porque duvidar que o luso-brasileiro Gregório, que vivia raparigando nos bares com uma viola a tiracolo, fosse também um praticante desse tipo de verso. Verso que duzentos anos depois iria florescer no sertão nordestino, em forma de arte e profissão.
A seguir Edmilson questiona um dos fatos mais estabelecidos (pelo que eu saiba) na historiografia do repente: a sua origem na Serra do Teixeira, em meados do século 19. Como eu sou paraibano, considero esse marco histórico algo mais indiscutível do que o Descobrimento do Brasil. Concordo com Edmilson, porém, ser muito improvável que uma tal floração de talentos amadurecidos e plenos, no espaço de poucas décadas, não tenha sido precedida por um vagaroso acúmulo de “massa crítica” que infelizmente não foi resgatada pela História.
Diz ele:
Atribuir ao Teixeira o gene da cantoria, considerando que se trata da continuidade de uma manifestação já existente há séculos, denota uma preferência pelo lugar escolhido. Tal preferência pode ser dos pesquisadores, mas também pode ser de quem os financia, de quem os acolhe, de quem os informa, de quem mantém com esses estudiosos vínculos de amizade. (pág. 72)
É a tragédia e a glória da historiografia em qualquer tempo e lugar: acabar contando a história dos informantes encontrados, das fontes disponíveis, dos sobreviventes, dos grupos ou das famílias que registram sua própria história, guardam fotografias e manuscritos, são capazes de fornecer certidões, documentos, recortes de jornal... Com isso, passam à frente dos que nada guardaram, nada preservaram, nada salvaram do vasto naufrágio social que é a memória brasileira.
Posso usar para a cantoria uma imagem que em outros textos já usei para a literatura fantástica produzida no Brasil: uma pirâmide soterrada. Um enorme repositório de informações que foi ocultado pelo tempo (em muitos casos, foi destruído pelo tempo). A história de nossa poesia improvisada é como um imenso lago onde ali aparece uma ilha, Gregório de Matos, acolá um pequeno arquipélago, a Escola do Teixeira, mais adiante outras ilhas afastadas, Inácio da Catingueira, Fabião das Queimadas... São os que por variados motivos (entre eles os que Edmilson aponta) escaparam do esquecimento.
Ainda na segunda parte do livro há uma sequência de capítulos importantes em que Edmilson aborda as formas contemporâneas de verso improvisado. Longe de substituírem a cantoria, elas são uma ampliação, uma extensão do mesmo impulso criativo, seguindo as formas tradicionais.
Existem, por exemplo, numerosos grupos de WhatsApp realizado disputas poéticas; ele cita o “Clube do Repentista”, “Clube do Repente”, “Repente de Canto a Canto”, “Rede Cordel e Repente”, “Amantes da Cantoria”, “Fã Clube dos Poetas”, “Divulgando a Poesia”, “Política Cordel Cantoria” e outros. Da página 87 à 147 há um rico material a respeito das várias modalidades de competição, inclusive com reprodução visual das mensagens em tela de celular.
Basicamente (cada grupo pratica variantes) o desafio ocorre entre uma dupla previamente escolhida, com data e hora marcada. Os participantes do grupo ligam-se todos no horário combinado, mas não participam, devendo guardar silêncio, enquanto o apresentador dá as instruções necessárias e fornece os motes e assuntos. Os versos são postados alternadamente pelos poetas.
Há disputas isoladas de A contra B, e há também os torneios, com os poetas (nunca em duplas – isoladamente) se enfrentando e se eliminando num sistema de chaves, como nos torneios de futebol, até o confronto final entre os dois que ainda não foram derrotados. Um júri acompanha o desenrolar do desafio, e em seguida (às vezes no dia seguinte) proclama o resultado.
Como se vê, é uma atividade muito diferente tanto da cantoria tradicional, “de pé de parede”, quanto dos festivais de repentistas. Os versos são escritos, e não cantados. A disputa é entre indivíduos e não entre duplas. Há muito mais tempo para pensar o verso... Tudo isso demonstra que não se trata de algo que venha a tornar a cantoria obsoleta. É uma modalidade a mais que se está criando – tal como as “Mesas de Glosa” ou “Rodas de Glosa” que tanto sucesso vêm fazendo nos últimos anos, principalmente no Vale do Pajeú.
A quarta parte do livro, “Repentista ou Repetista”, traz de volta a velha discussão entre os versos improvisados (a razão de ser da Cantoria de Viola) e os versos escritos, preparados, decorados, etc. Uma discussão que não vai acabar tão cedo. Penso que ninguém se torna um profissional estabelecido num meio competitivo como o do Repente sem ser capaz de improvisar pra valer, de maneira consistente, em qualquer ambiente, com qualquer platéia, durante anos seguidos.
Por outro lado, a própria necessidade de se manter no “grupo da frente”, como numa maratona, obriga qualquer cantador a ter um vasto repertório de versos preparados, sejam trabalhos escritos com este fim, seja a reciclagem permanente de versos que, improvisados pra valer em certo momento, foram memorizados, e incorporados à “munição de reserva” para as horas de aperto.
O livro de Edmilson Ferreira reúne citações bibliográficas dos teóricos da literatura oral e depoimentos de cantadores da velha e da nova geração – uma das características do “novo repente” é inclusive o aparecimento de mulheres poetas, bem representadas no estudo.
Um título muito importante para a bibliografia do repente, e que já me abriu meia dúzia de caminhos para novas pesquisas.
Para quem se interessar, eis aqui o link da minha conversa com Edmilson Ferreira, no seu canal do YouTube, “Prosa de Mestre”, no mês de maio passado:
https://www.youtube.com/watch?v=TZPHVmbgMEg&t=4736s