A BORDA DO MAR - O CANTO DO FANTASIOSO - ENSAIO DE ANA MARIA BERNARDELLI
Por Diego Mendes Sousa Em: 12/08/2025, às 17H53

A Borda do Mar – O Canto do Fantasioso
Por Ana Maria Bernardelli
Da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
Poeta Diego Mendes Sousa – peço-lhe licença para utilizar os primeiros versos de seus 29 poemas de A Borda do Mar de Riatla como base para um breve comentário sobre o fantasioso em sua obra.
Minha proposta reside na análise de sua linguagem, entendendo-a como um espaço onde o inconsciente emerge e o significado é construído de forma orgânica e imprevisível.
Vejo sua poesia como arena onde o Semiótico irrompe, driblando a ordem Simbólica, revelando facetas sutis e, muitas vezes, ocultas da experiência humana. Essa perspectiva desloca a análise para além do literal, evidenciando a forma como suas imagens criam mundos e realidades inesperadas que, surpreendentemente, convergem para o eu profundo do poeta.
O fantasioso, nesse contexto, não se limita a desvio do real, mas torna-se um campo fértil para que pulsões e desejos, muitas vezes reprimidos, se manifestem com liberdade. Tal abordagem nos conduz a uma reflexão sobre a própria constituição do sujeito, destacando a fluidez e a instabilidade dos significados, e promovendo uma reconfiguração radical de como pensamos o sujeito e suas manifestações na linguagem e na sociedade.
Trata-se, assim, de uma reflexão que busca honrar sua obra e, ao mesmo tempo, ampliar o diálogo entre poesia e teoria crítica contemporânea.
Para que as ideias fiquem mais claras e afirmativas inseri microimagens ou pequenos sopros narrativos entre os versos — frases curtas, quase como interlúdios — que não quebrem o ritmo, mas aumentem a sensação de sonho e deslocamento do real.
A ideia é criar pontes fantásticas entre um verso e outro, para que o texto se torne mais fluido e ainda mais onírico com o uso de “entremeios”: elementos de metamorfose, misturas improváveis, quebra de lógica temporal, sensações sinestésicas e personificação do inanimado
Veja:
Mergulho na infância feito raiz — e as árvores me devolvem nomes que nunca usei.
Venho de outras paragens — onde as estrelas caminham sobre a terra como pássaros cegos.
Os verbos do viver são — conchas que guardam mares inteiros.
Procuro-te, cigarra, entre as árvores — teu canto abre portas no verão e dissolve o pó do tempo.
Guarda o presságio em tuas mãos — nele adormecem rios que sonham com asas.
Faminto à custa da terra — mastigo o vento como pão quente ao amanhecer.
Somente mente a mente do poeta — e nessa mentira cabem jardins que flutuam no ar.
O homem adrede é existência debalde — mas semeia faróis no quintal da noite.
Comprei o tempo por quase nada — e guardei suas horas num vidro de marés.
Água da flor de laranjeira na intuição — perfume que move relógios.
Chama prescrita do céu, divago — e o firmamento me empresta seus sapatos para atravessar nuvens.
Poesia: o enigma para varar o tempo — um túnel feito de pássaros e vozes esquecidas.
Refundar o tempo — como quem borda com luz o tecido das horas.
Do nada tudo vem — e as raízes florescem em pleno céu.
No túnel intransigente — as paredes respiram e me contam histórias que nunca vivi.
Ó tristeza estremecida — que dança no varal da memória como lençóis molhados de luar.
Troa o céu na tristonha cidade — e cada trovão abre o cofre das lembranças.
Meu cântico é uma origem — escrita com tinta de rio e pólen de madrugada.
Que rosto tão sofrido — espelha-se na água e transforma-se em peixe.
Parnaíba — palavra que desliza como canoa sobre espelhos líquidos.
Inclino-me — e o horizonte me oferece um copo de brisa.
Sento o coração nas anáguas dos sonhos — e ouço conchas cochicharem versos.
Deixarei de ser poeta quando me atirar na queda — e as nuvens me receberem como filho pródigo.
Segue o rio e sua majestosa correnteza — carregando cidades como barcos de papel.
Atormentado assombro que no ser se infiltra — como névoa que aprende a falar.
Às carreiras, o menino disse adeus ao mar — e levou na palma a espuma de mil dias.
Reprofundo pássaro da lucidez — que pousa nos ombros da noite.
O coração foi a pique! — e afundou levando mapas que só a memória sabe ler
Era o fim de mais uma tarde — mas as pedras ainda acendiam pequenas fogueiras de sol.
A fusão desses versos forma um tecido que escapa ao controle da lógica cotidiana. Cada imagem se ergue como uma ilha cercada de mares imaginários, mas, quando vistas em conjunto, revelam um arquipélago: o eu profundo do poeta.
O fantasioso aqui não é simples ornamento; é uma fuga ativa do real. Ele funciona como um atalho para o inconsciente, permitindo que o poeta acesse lembranças, afetos e pulsões que o mundo concreto costuma silenciar. As cigarras entre árvores, as anáguas dos sonhos, o túnel intransigente e o pássaro da lucidez não pertencem a um mesmo espaço físico, mas coexistem no território da palavra.
No contexto poético, o fantasioso desvia-se da linha reta da experiência objetiva e mergulha no plano do sonho e da fabulação, onde até as dores ganham outra textura. É a capacidade de criar mundos que não existem e, ao mesmo tempo, fazê-los soar inevitavelmente verdadeiros — porque convergem para aquilo que, no íntimo, cada leitor reconhece como seu: a infância enraizada, a perda, a saudade, a invenção como sobrevivência.
No fundo, essa orquestra de imagens não descreve “o mundo”, mas o mundo do poeta, onde o tempo pode ser comprado “por quase nada” e refundado “do nada”, e onde dizer adeus ao mar é também dizer olá a uma eternidade interior.
Tal é a amplitude fantasiosa que uma gama de criação é permitida a cada leitor:
A Borda do Mar – Tecelagem do Fantasioso
Mergulho na infância feito raiz.
Venho de outras paragens, como quem retorna pela primeira vez.
Os verbos do viver são bússolas secretas.
Procuro-te, cigarra, entre as árvores, na música das tardes quentes.
Guarda o presságio em tuas mãos — nele repousa o orvalho dos destinos.
Faminto à custa da terra, bebo o silêncio dos caminhos.
Somente mente a mente do poeta, inventando o que ainda não cabe no mundo.
O homem adrede é existência debalde, mas teima em acender faróis na noite.
Comprei o tempo por quase nada — água da flor de laranjeira na intuição.
Chama prescrita do céu, divago entre constelações não mapeadas.
Poesia: o enigma para varar o tempo,
refundar o tempo,
do nada tudo vem.
No túnel intransigente, ecoa um chamado antigo.
Ó tristeza estremecida, que dança no varal da memória.
Troa o céu na tristonha cidade, mas meu cântico é uma origem.
Que rosto tão sofrido se debruça sobre Parnaíba?
Inclino-me, sento o coração nas anáguas dos sonhos.
Deixarei de ser poeta quando me atirar na queda.
Segue o rio e sua majestosa correnteza,
atormentado assombro que no ser se infiltra.
Às carreiras, o menino disse adeus ao mar,
reprofundo pássaro da lucidez.
Era o fim de mais uma tarde — ou o começo de todas elas.
A literatura é isso: criação do poeta e recriação do leitor.
Um gesto que nasce na mão de quem escreve e renasce no olhar de quem lê; a travessia entre a voz e o silêncio, entre o sonho lançado e o sonho recolhido.
Ana Maria Bernardelli é ensaísta e crítica da literatura, formada em Língua e Literatura Francesa pela Université de Nancy, na França.