6 Perguntas fundamentais para ler "Um clarão dentro da noite
Em: 02/01/2022, às 12H43
[Entretextos] - O que torna “Um clarão dentro da noite” um livro de contos moderno ou contemporâneo, a temática, essencialmente urbana, ou a elaboração da linguagem?
[J. L. Rocha Nascimento] - Acredito que tudo passa pelo tratamento que é dado à linguagem. O conto moderno não é somente aquele cuja temática é urbana. Dependendo da concepção da linguagem, dos experimentos formais, um tema teluriano ou ambientado no meio rural pode ser considerado moderno. Dito de outro modo: um conto de temática rural pode ser enquadrado como conto moderno, isso vai depender da forma como ele será concebido. Essa é uma preocupação sempre presente na minha contística: a de sempre trabalhar a palavra e nunca dizer tudo, nunca entregar todas as respostas, sempre que possível entrego só fragmentos, pois essa é uma das características do conto moderno, como bem destacou o Rogério Newton no prefácio do livro: o conto moderno nem sempre vai direto ao ponto, por vezes, apenas sugere ou mal coloca o dedo na ferida. Há sempre um não dito, o contista não deve dizer tudo.
Nesse sentido, grande parte dos contos tem uma textura bem aberta, como se fosse função do leitor a de preencher os espaços deixados em aberto. É o caso dos contos como “Jim Morrison sobe aos céus”, talvez o exemplo mais radical, onde eu apenas ameaço contar e não conto, pelo não conto tudo. “Nos braços de Sheherazade”, “Falando com ela”, “O corvo”, “Heptagrama” e “Esopiana” são exemplos também de contos cujas lacunas precisam ser colmatadas pelo leitor.
[Entretextos] - Apesar de ser escrito numa linguagem direta, ágil, bem fluída, excetuados os contos memorialistas, todos os demais são perpassados por metáforas, alegorias e um pouco de surrealismo. Trata-se de um recurso de estilo para não deixar a crítica social neles veiculada tão evidente e direta?
[J. L. Rocha Nascimento] - Sim, é verdade. Em alguns contos, eu abuso das metáforas e tem muito de realismo fantástico também. O exemplo mais emblemático talvez seja o conto “O corvo”. Para além da uma interpretação literal, quem martela o cérebro da personagem é uma doença degenerativa. Isso se repete em “O testemunho”. Mas o conto pode ser lido como uma um protesto contra as tiranias, contra as distopias, de que é exemplo também o conto “Esopiana”, que remete a Esopo, autor das grandes fábulas, mas que na verdade, se trata de uma fábula do mal, de uma fábula da infâmia. A par disso, há também crítica social e política de forma direta, sem arrodeios, como é o caso do conto “O discurso”, “O anjo vingador” e “Folha seca”. Em matéria de alegoria, o melhor exemplo é o conto “Heptagrama” que, na verdade, é uma releitura que eu faço da lenda piauiense “Cabeça de Cuia”.
Sendo assim, pode-se dizer a linguagem figurada, além de ser um recurso estilístico, tem também o objetivo de contar outra história por trás da história aparente. Há um discurso que é posto e há também um discurso pressuposto, que se movimenta nas entrelinhas da narrativa.
No que se refere ao realismo fantástico ou surrealismo são representativos os contos “Nos braços de Sheherazade”, ”Falando com ela”, “Novela liberada para este horário” e “Mr. Marlboro”, talvez o exemplo mais radical, um repto contra o fumo e faço isso de uma maneira bem inusitada: o personagem, viciado em cigarro, no desespero, fuma-se a si próprio.
[Entretextos] - A intertextualidade parece ser outro elemento sempre presente no seu livro, correto?
[J. L. Rocha Nascimento] - Sim. O livro é atravessado por intertextualidade. Dificilmente será encontrado no livro um conto com uma única camada de leitura. Talvez isso ocorra em “A lenda”, porque se trata de um conto vertido da tradição oral, mas nos demais sempre haverá intertextualidade, referências que remeterão o leitor para outras formas de manifestações culturais como a música, a outros textos literários, à filosofia, e, sobretudo, ao cinema. A referência ao cinema está presente não somente no conteúdo, como em contos como “Rick e Ilsa sempre terão Paris para se lembrar”, “Ela, o menino e as aventuras de Tarzan” e “Margaridas Vermelhas”, mas também na forma como a narrativa é construída. Em alguns contos, como “O anjo vingador”, “Folha seca” e “Nos braços de Sheherazade”, a própria forma de linguagem é muito parecida com a do cinema, cheia de fragmentações, justaposições, diálogos e cortes rápidos e outros experimentos formais semelhantes aos usados na linguagem cinematográfica, como bem lembrou o Rogério Newton, em seu prefácio. Aliás, a intertextualidade é perceptível a partir do modo como o livro é estruturado. Não tem índice, tem um roteiro, como se fosse um filme. Divide-se em duas partes. Cada uma das partes é composta por contos unidos por uma identidade temática comum. Na primeira, há um misto de memorialismo, sonhos e surrealismo, na qual prevalece uma linguagem lúdica e fantasiosa. A segunda parte, a mais densa do livro, é povoada por temas mais universais e mais complexos, como morte, violência, loucura e demência. É na segunda parte que se encontram as personagens mais elaboradas psicologicamente. As duas partes, que são se constituem nos dois eixos centrais do livro, são antecedidas pelo conto de abertura e separadas por um conto no meio delas, que eu chamo de interlúdio. Após o final da segunda parte do livro, último conto propriamente dito, segue o epílogo do livro.
O conto de abertura, que dá título ao livro, livro abre com o conto “Um clarão dentro da noite”, que dá título ao livro e é uma espécie de abre-alas do livro, um “São João Batista” que anuncia o que vem em seguida.
Tal como nos cinemas de antigamente onde se dava uma parada para trocar o rolo, há um interlúdio no livro separando a primeira e a segunda parte. Trata-se do conto “Rick e Ilsa sempre terão Paris para lembrar”, que é uma narrativa autônoma, visto que não guarda nenhuma relação com os demais temas e é contada sob duas perspectivas distintas, a do homem e da mulher.
Por fim, surge o epílogo com o conto “No ninho dos poetas”, que faz o fechamento do livro e também remete ao início, eis que s trata de um livro circular, cuja leitura pode se iniciar tanto pelo fim como pelo começo.
De acrescentar que no livro há duas espécies de intertextualidade: uma externa, outra interna. A externa é aquela que dialoga com outros autores como Rubem Fonseca, Kafka, Borges e Jim Morrison, poeta e líder do grupo de rock The Doors e com outras formas de manifestação cultural, como o cinema e a música.
A intertextualidade que eu chamo de externa está presente em contos como “Folha Seca”, “Ela, o menino e as Aventuras de Tarzan”, “Rick e Ilsa sempre terão Paris para se lembrar”, só pra ficar nesses exemplos.
A intertextualidade que chamo de interna é aquela decorrente do diálogo que os próprios contos estabelecem entre si. Por exemplo, na parte I do livro, “Mr Marlboro” dialoga com “Margaridas Vermelhas”, a “Outra” com “Pelo Retrovisor”, “Nos braços de Sheherazade” com “Heptagrama”, Na parte II, “O Anjo vingador” dialoga diretamente com “Folha Seca”, que recebe a visita do próprio anjo vingador, interferindo, inclusive, nos atos do Folha seca. “O corvo” dialoga com o “Testemunho”, “Falando com ela” com “Até quando me levarão flores” e “O discurso” com “Esopiana” Por fim, “No ninho dos poetas”, por se tratar de um meta-conto dialoga com o conjunto da obra.
[Entretextos] - A propósito do conto “No ninho dos poetas” parece se tratar de uma bem humorada crítica aos poetas, seria isso?
[J. L. Rocha Nascimento] - Há várias leituras para o conto. E uma delas é a de que o conto tem que ser lido como um repto em favor do conto, se é que isso é possível, e não contra a poesia ou os poetas. É preciso que se deixe isso bem claro para que não haja mal entendidos. Nada contra a poesia. Há no conto é uma verdadeira metalinguagem. Trata-se de um metaconto, portanto, e fala das agruras de um contista que, por acaso, se vê num habitat de poetas, é confundido como poeta e, quando se revela contista, praticamente é expulso do lugar. E por conta disso resolve escrever um livro de contos, que foi a maneira que ele encontrou para se fazer ouvir e protestar contra aquilo que, na perspectiva dele, é uma forma de discriminação por não ser poeta.
Qual a linguagem de segundo nível no conto? Teresina, assim como qualquer lugar, tem muito mais poeta do que contista. Talvez por conta da falsa ideia de que fazer poesia é mais fácil do que escrever um texto em prosa, um conto ou crônica, novela ou romance. Quando, na verdade, na minha perspectiva pelo menos, fazer poesia é bem mais difícil. É como diz o poeta Paulo Machado no poema “Testamento”, mais ou menos assim: “fazer poemas é fácil como amordaçar um lobo”. Pelo menos a poesia de boa qualidade. Então por conta desse falso senso comum teórico, o conto fica meio que encoberto pela poesia. Pouca gente escreve conto. E quem envereda pela narrativa curta enfrenta mais dificuldades de penetração do que o poeta. Então o conto “No ninho dos poetas” é um libelo contra o esquecimento do conto. É uma espécie de protesto contra o seu encobrimento. A personagem é um contista e ele quer chamar atenção, que ser ouvido, quer ser lido. Não tem nada contra a poesia (de boa qualidade), apenas quer ser ouvido também. E a história é contada de uma forma bem humorada, é bem verdade. Em síntese, é uma brincadeira que eu faço com os poetas, sem qualquer ofensa. Tenho muitos amigos escritores que só fazem poesia. E eu ainda pretendo publicar um livro de poesia, talvez um único livro, quem sabe.
[Entretextos] - Por que o conto?
[J. L. Rocha Nascimento] - Por que quando eu comecei a escrever, no final dos anos setenta, vivia-se no Brasil um “boom” da literatura. E a principal forma de expressão do movimento naquela época era o conto, a narrativa curta. Então fui tocado por isso, segui o mesmo caminho.
[Entretextos] - Quais os autores que influenciaram a sua produção literária e quais os filmes que estão presentes ou foram referenciados direta ou indiretamente na produção dos contos de “Um clarão dentro da noite”?
[J. L. Rocha Nascimento] - Numa lista meramente exemplificativa, os autores que mais me influenciaram foram: externamente, Kafka, Borges, Gabriel Garcia Marques, Julio Cortazar, Juan Rulfo, Henry Miller e Henry James. No Brasil, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Antonio, José J. Veiga, Campos de Carvalho, Machado de Assis e Hilda Hilst, dentre outros.
Os filmes presentes no livro, pela ordem: Casablanca, Taxi Driver, Gilda, Apocalipse Now, Uma aventura na Martinica, os faroestes americanos e, sobretudo, os italianos, a lenda do Zorro e As aventuras de Tarzan.