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LUCILENE GOMES LIMA

Mesmo não existindo um vínculo empregatício legal entre o seringalista e o seringueiro, o primeiro impunha ao segundo um regulamento, determinando os seus direitos e deveres. Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se estendia aos gerentes de depósitos, guarda-livros, encarregados de escrita, empregados de balcão, comboieiros, fiscais, empregados de campo, diaristas. Um regulamento de 1934, dos seringais de Octávio Reis, transcrito por Samuel Benchimol em seu livro Romanceiro da batalha da borracha, esclarece, na abertura, a necessidade de sua existência.

 

‘Toda a nação tem as suas leis para por ellas reger-se, e se, estas leis não são obedecidas por seus habitantes será uma nação em completa desorganização, onde não poderá haver garantias para os que nella vivem, nem para quem com ella mantiver negócios.

Sucede o mesmo com toda a sociedade que tem os seus estatutos para por elles regerem-se os seus sócios, e se não se obedece  a elles será uma sociedade desbaratada e sem duração. Até nas casas de famílias, para serem bem organizadas, teem que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a desorganização, e dahi os resultantes desgostos de família, que infelizmente é o que mais acontece.

Como, pelo que vemos, tudo precisa de organização e ordem. Um Seringal, por exemplo, onde habitam centenas e centenas de almas, com diversos costumes, sexos diversos, e até nacionalidades diversas, não póde deixar de ter o seu regulamento, pelo qual todos os seus habitantes possam orientar-se de seus deveres de acordo com as posições e trabalho de cada um’.[1]

 

            O caráter mercantil do seringal é substituído em determinada passagem do regulamento pelo conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal somos uma só família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção de raça, crença religiosa, nacionalidade e posição [...].”[2] Nos deveres dos gerentes encarregados dos depósitos, o regulamento prescreve na linha “h” a exata importância do freguês ou seringueiro nas relações “familiares” do seringal: “[...] o freguez só é amigo e cumpridor dos seus deveres quando tem saldo.”[3] A lógica mercantil do lucro é ressaltada na linha “c”, componente dos deveres dos empregados de balcão:

 

[...] o productor perde dois ou treis dias para vir do centro reclamar uma caixa de fósforo que lhe saia por engano a mais na sua conta, deixando de produzir muitas vezes por este pequeno engano, borracha que lhe daria para comprar uma lata, ficando por este facto mal visto tanto o empregado do balcão como o guarda-livros que forneceu a nota, e por muitos são ainda considerados de ladrões. Portanto é preciso a maxima attenção para não se enganar nem a favor nem contra a casa.[4]

 

            Nos deveres do extrator, é explicitada a sua exclusiva condição de trabalho: “[...] Deve ter em consideração que quando vem para os seringaes e se colloca como extractor, é para produzir borracha [...]”[5] e de negociação do produto de seu trabalho: “(e) fazer as suas transacções somente com o deposito onde trabalha para engrandecimento deste, e não o fazer com outro deposito, mesmo que seja da mesma firma, muito menos com pessoas extranhas à casa [...][6].

            Na visão do seringalista, a seringueira, fonte da riqueza, “hévea-ouro”, requer o carinho e o respeito do seringueiro pois, diferentemente do que parece explicitar o regulamento, ela o transforma em homem livre, apesar de sua ignorância o prender unicamente ao trabalho de extração:

 

[...] Portanto, devemos ter carinho para com a seringueira que nos proporciona tantos dias felizes e não sejaes ingratos, senhores extractores, para com a árvore bendita que vos proporciona um trabalho remunerador, que vos livra do chichote do capataz, que faz do extractor senhor de si proprio, dono de sua casa, sabendo a que horas que come e que dorme, vivendo em contacto diario com a sua familia, tendo o conceito de todos, merecendo a estima do patrão que trata o bom productor como um de seus melhores amigos. Pensem e reflictam que não há outro mister que favoreça ao homem inculto tantas vantagens, - digo inculto  porque para cortar seringa não precisa ser formado em cousa alguma, basta somente ter caracter e vergonha para ser um bom seringueiro.[7]

 

            Num regulamento como esse, que Benchimol ajuíza não ter sido determinado por um seringalista desumano, apesar de admitir que os tiranos existiam, é possível perceber que os seringueiros tinham mais deveres do que direitos. As situações que prenderam o seringueiro ao seringalista na condição de semi-escravo deram margem à expressão vilanesca da figura do seringalista na prosa de ficção, como adiante se verá.

 

 

 

Os seringueiros

 

            Os nordestinos chegaram em grandes levas à Amazônia, banidos por períodos de seca inclemente ocorridos no final da década de 1870.[8] A vinda dos imigrantes nordestinos constituía uma dupla solução para os governos do Norte e Nordeste: aumentava a oferta de mão-de-obra nos seringais amazônicos e diminuía o excedente populacional no Nordeste, que aumentara com o desenvolvimento da economia algodoeira no início do século XIX. O interesse dos governos amazônicos nessa mão-de-obra, com o fito de aumentar a extração do látex, levou-os a organizarem um serviço de propaganda e a promoverem a concessão de subsídios para gastos de transporte. Desde 1852, a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, criada pelo Barão de Mauá, iniciara uma linha regular de transportes que favoreceria o transporte de mercadorias e também dos milhares de nordestinos arrebanhados para o trabalho de coleta do látex.

            O deslocamento de pessoas para o trabalho nos seringais já ocorria antes da imigração nordestina. Segundo nos informa Rodrigues, os seringalistas pioneiros que descobriam uma área rica em seringueiras passavam a explorá-la e convidavam famílias tapuias a trabalharem nesses incipientes seringais, oferecendo-lhes “avultados lucros”. Tal como ocorreria mais tarde com os nordestinos, essas famílias recebiam um adiantamento em mercadorias, roupas e munições para ser pago com seringa. Os que aceitavam a oferta abandonavam suas criações e lavouras e acompanhavam o patrão. Ressalta o autor que desse modo “seguiam familias e extinguiram-se povoações inteiras”.[9] Apesar desse quadro, foi o deslocamento dos nordestinos que transformou radicalmente o contingente de mão-de-obra nos seringais e alterou a formação populacional da Amazônia no século XIX.[10]

            Há quase uma unanimidade no motivo que levou o nordestino a abandonar sua terra e rumar para a Amazônia para trabalhar nos seringais. A seca e, em decorrência dela, a falta de condições de sobrevivência, justifica a maioria dos casos. Há, porém algumas situações em que o êxodo foi motivado pelo gosto da aventura e/ou pelo desejo de fazer fortuna, sendo que o último motivo, na maioria das vezes, está consorciado com a condição de flagelado do imigrante, conforme se nota nesse depoimento de um agricultor, colhido no livro Romanceiro da batalha da borracha, de Samuel Benchimol:

 

‘Vim mode conhecer isso aqui. Todos me diziam que o Amazonas era uma terra de bondade. Se ajuntava dinheiro com ciscador. Era só apanhar dinheiro com as mãos e voltar. Então, eu disse comigo, que eu ainda hei de conhecer essa terra. Gosto do inverno, sem comparação. Eu estava em União. A moda lá é vir pro Amazonas. É só o que se fala por lá. A animação no Ceará é grande. Só se fala no Amazonas, nas suas riquezas, nas suas facilidades. As coisas por lá andam mesmo ruim. A terra anda virando pó. Está tão seca que nem língua de papagaio. Não há ninguém que podendo vir não vem.

Sempre tive vontade de conhecer isto aqui. Todo mundo me falava nela. Eu vim antes que fosse tarde demais. Dois anos que faz seca. Estamos entrando no terceiro.



[1] Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 97.

[2] Ibid.,  p. 97.

[3] Ibid., p. 98.

[4] Ibid., p. 99.

[5] Samuel BENCHIMOL, p. 102.

[6] Ibid., p. 102.

[7] Ibid., p. 103-4

[8] Antônio J. S. Loureiro registra que os primeiros imigrantes cearenses e maranhenses chegaram ao baixo Purus e a Codajás na segunda metade do século XIX. O município de Lábrea foi atingido em 1871 pelos imigrantes nordestinos, seguido de Canutama em 1874, Boca do Acre e Antimari em 1878. Em 1882, os nordestinos já estavam no Acre boliviano onde fundaram o seringal Empresa que daria origem a Rio Branco, configurando a ocupação do território por brasileiros. A penetração no rio Juruá atingiu Carauari e Eirunepé em 1890; Cruzeiro do Sul em 1904; Feijó em 1906 e Tarauacá em 1907 (Amazônia: 10.000 anos, p. 167).

[9] João B. RODRIGUES,  As heveas ou seringueiras: informações,  p. 34.

[10] Antônio J. S. Loureiro destaca que com o advento da imigração nordestina “a cultura amazônica colonial transformou-se na cultura amazônico-nordestina, resultante do equilíbrio entre o elemento nativo e o migrante nordestino, que se adaptava e se incorporava à região, a ponto de serem raros os habitantes do Amazonas, que não possuam sangue ‘cearense’ em suas veias” (Amazônia: 10.000 anos, p. 156).