0

LUCILENE GOMES LIMA

 

Assim como a imagem do seringalista nas ficções da borracha parece fadada à vilania, a do seringueiro liga-se à sujeição. A sua condição de subjugado é ressaltada na descrição de homens tristes, cabisbaixos, apáticos. Freqüentemente, os seringueiros são comparados a escravos e as suas condições de recrutamento os põe, não raro, abaixo da condição humana: “Cinqüenta homens na proa. Seu Isidro vinha sempre à tardezinha ver como íamos passando. Contava-nos como se fôssemos animais [...]”[1]

            Apesar de não ser a tônica das obras sobre o ciclo,[2] a revolta dos seringueiros é abordada em algumas obras. Entre elas, Beiradão, onde é narrada a vingança dos seringueiros contra o proprietário do seringal “Boa-Vida”, um patrão cujo caráter sórdido leva os fregueses a lhe retribuírem na mesma moeda:

 

Deu-se, então, a tragédia. Aguardaram a saída do motor que deixara mercadorias para o verão inteiro, cercaram armazéns e o barracão, pela madrugada. O coronel não podia reagir, pois os empregados haviam retirado as armas, durante a noite.

Amarraram-no primeiramente, amarram a mulher, a cozinheira, as três filhas menores. Cevaram-se nas quatro, banquetearam-se em frente das vítimas todas despidas, cunhatãs foram pisoteadas, após o geral [...][3]

 

            As sevícias sexuais são também a forma de vingança dos seringueiros no romance Terra firme, que obrigam o empregado a violentar o patrão seringalista. Nesse romance, o mundo do seringal não absorve a narrativa integralmente, mas o encaixe contido no segundo capítulo, constituindo a história do seringueiro nordestino Creto, narrada por ele próprio, abrange sua vinda para o seringal, o abandono da estrada de corte de seringueiras e a formação de um grupo de seringueiros e caucheiros do qual passa a ser o chefe. Suas andanças com esse grupo de homens pela mata lembram as de um chefe de cangaço. Ao final dessa narrativa, a vingança contra o coronel seringalista é, como nos outros casos, violenta.[4]

            O motivo que enseja o conto “Judas-Asvero” é igualmente uma revolta dos seringueiros, porém não tem como alvo o seringalista. Nesse conto, os seringueiros voltam-se contra si mesmos, construindo no sábado de aleluia um Judas a sua própria imagem para depois destruí-lo. Tal qual ocorre em outras obras, os seringueiros são vistos como seres martirizados, com “[...] existência imóvel, feita de idênticos dias de penúria, os meios- jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável Sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida pelo ano todo afora.”[5] Apesar disso, não se revoltam ante o desamparo por deus: “[...] não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se à desdita [...]. [6] Sem representar uma indignação direta contra o seringalista, o conto detém-se em uma revolta interiorizada, em uma autopunição: “[...] só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem – e este pecado é o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência [...]”.[7] Ao mesmo tempo em que o Judas representa o sofrimento do seringueiro, acarretando piedade por sua condição, é também uma figura que desperta medo: “[...] À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o ‘pelo sinal’ e aperrando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.”[8] A imagem final do conto, os Judas–espantalhos que vão descendo o rio, juntando-se num festival fantasmagórico, metaforiza a condição dos seringueiros recrutados, embarcados e despejados ao longo dos rios onde se instalam os seringais:

 

E vai descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados...[9]

 

 

 

A escassez e a ausência do ser feminino no seringal

 

            O segundo aspecto que aparece com maior freqüência nas ficções da borracha é a escassez ou mesmo ausência da mulher no ambiente do seringal.[10] Sobre o desdobramento que o problema da escassez da mulher teve e poderia ter na ficção, Benchimol observa:

 

A grande angústia do tapiri era a solidão. E solidão é falta de mulher e amor. Isso até já se tornou tema comum e obrigatório em todo romance sobre a Amazônia. O seringueiro daqueles tempos, e ainda hoje, com intensidade já muito diminuída pela imigração do elemento feminino que passou a acompanhar o homem, ou era um homossexual ou um onanista. Há ainda análise minuciosa a ser feita entre o sexo e a seringa, entre a mulher, o tapiri e a ‘urbs’. Talvez resida numa bem estudada psicanálise da seringa, as origens daquelas alucinações dos ‘aureos tempos da borracha’[...].[11]

 

            A escassez da mulher no seringal possibilita aos ficcionistas enfoques em permutas, violências sexuais contra mulheres de idade avançada ou meninas impúberes e ainda violência contra os companheiros de mulheres que são atacados e mortos por outros seringueiros desejosos de as possuírem. A ausência da mulher possibilita enfocar a prática do bestialismo, através do qual o seringueiro procura satisfazer o instinto sexual com fêmeas animais, entre elas a fêmea do boto e a égua.

            A transferência da mulher de um seringueiro devedor para outro seringueiro é assunto do conto “Maiby”, contido no livro Inferno verde.



[1] Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 66.

[2] Dos romances amazônicos sobre o ciclo, Terra encharcada, do escritor paraense Jarbas Passarinho, é o único a transformar a revolta dos seringueiros na trama central da história.

[3] Álvaro MAIA, Beiradão, p. 120.

[4] Antísthenes PINTO, Terra firme, p. 17-47.

[5] Euclides da CUNHA, Amazônia: um paraíso perdido,  p. 117-118.

[6] Amazônia: um paraíso perdido, p. 118-119.

[7] Ibid., p. 119.

[8] Ibid., p. 124.

[9] Ibid., p. 125.

[10] No caso de algumas narrativas, esse aspecto chega a ser central. Não obstante, a escassez e a ausência da mulher no seringal são abordadas na maioria das obras referentes ao ciclo. É necessário ressaltar que o aspecto abordado anteriormente – a dicotomia explorador–explorado – está relacionado ao problema da ausência da mulher à medida que é em razão da forma de exploração estabelecida pelos patrões, através dos regulamentos, que a presença da mulher é proibida ou limitada. Ou seja, a ganância do patrão impede a constituição da família a fim de que o freguês, vivendo exclusivamente para a extração do látex, possa produzir mais.

[11] Samuel BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 53.