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[Lucilene Gomes Lima] 

Convém ressaltar que as doenças que vitimaram milhares de nordestinos, entre elas o beribéri, advieram da própria qualidade de sua alimentação – geralmente produtos enlatados e pobres em proteínas. A dependência dessa alimentação que fazia parte dos produtos aviados pelos seringalistas não era uma decisão voluntária do seringueiro, constituía, na verdade, peça-chave no funcionamento do sistema de extração implantado nos seringais, uma vez que se os seringueiros passassem a se dedicar à agricultura de subsistência, à caça ou à pesca reduziriam o trabalho de coleta e beneficiamento primário do látex que deveriam cumprir rigorosamente na rotina de um dia de trabalho, ocasionando, portanto, menor produção de borracha.

O historiador Arthur Reis acredita que as condições a que estava sujeito o seringueiro se justificam por um processo natural e não como fruto de uma exploração econômica inescrupulosa:

 

Tais relações [...] devem ser explicadas pela barbaria do meio-natureza e do meio-sociedade em formação. Porque, se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este não se comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de acordo com o primarismo de sua inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que negocia às escondidas a produção de sua safra, lesando o seringalista, entrega-se à madraçaria, diminuindo a produção ou extraindo  látex por processo proibido para aumentar a purgação e dispor de safra maior que lhe garantirá saldo-credor.[1]

 

As relações que procedem de um processo de espoliação econômica transformam-se, nessa percepção, num jogo de vingança. A suspeição sobre a honestidade do seringalista ao lançar a dívida do seringueiro nos livros mercantis foi, por outro lado, levantada pelo historiador, ao ressaltar que havia a possibilidade de os seringalistas usarem de expedientes desonestos para manterem os seringueiros sempre devendo e, em virtude disso, trabalhando para eles.

O seringueiro, mais do que expropriado do justo valor do seu trabalho, sofre, na maioria dos casos, a expropriação do direito de constituir família. Para muitos seringalistas, mulheres e filhos, tal como a agricultura de subsistência, significavam redução de produção nos seringais. Daí o ser feminino tornar-se escasso no momento de alta exploração dos seringais, em oposição às famílias caboclas que caracterizavam os primeiros tempos de exploração. A imagem de solidão do seringueiro e as histórias de seus desregramentos sexuais têm como fonte de inspiração a ausência ou escassez da mulher no meio onde se constituíam os seringais.

 



[1] Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 178.