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Lucilene Gomes Lima 


    Esse depoimento foi obtido, de acordo com o que informa o autor, no período de 1942 a 1944, quando o ciclo já atravessara a crise que levara a queda vertiginosa do preço da borracha. Ainda assim, permanecem significativos no relato os mesmos motivos que levaram à imigração a partir da segunda metade do século XIX.

 No auge da imigração, compreendido no triênio 1898/1900, a realidade com que o transumante se deparava, a começar pela viagem que o levaria aos seringais, era desanimadora dos sonhos de riqueza e das promessas de facilidade na região amazônica. Viajavam nos porões dos barcos conhecidos como gaiolas ou vaticanos e chatas.[1] A passagem, segundo o que lhes informavam quando eram recrutados, seria paga pelo governo. Ao chegarem aos seringais, os brabos,[2] aspirantes a seringueiros, descobriam que a passagem assim como as despesas de viagem, as ferramentas necessárias à extração do látex e os mantimentos para sobrevivência eram o primeiro débito que contraíam para o trabalho nos seringais. A saga, muitas vezes inglória, do nordestino na Amazônia, seduzido por um eldorado que existia na sua fantasia e não na realidade, é sintetizada por Miranda Neto:

 

O nordestino na Amazônia começava sempre a trabalhar endividado, pois via de regra obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totalidade ou parte da viagem, com os instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação. Para alimentar-se dependia do suprimento que, em regime de estrito monopólio, realizava o mesmo empresário com o qual estava endividado e que lhe comprava o produto. As grandes distâncias e a precariedade de sua situação financeira reduziam-no a um regime de servidão. Entre as longas caminhadas na floresta e a solidão das cabanas rudimentares onde habitava, esgotava-se sua vida, num isolamento que talvez nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem. Demais, os perigos da floresta e a insalubridade do meio encurtavam sua vida de trabalho.[3]



[1] Segundo Arthur C. F. Reis, os gaiolas eram navios a vapor construídos na Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Estados Unidos. Apropriados para a navegação na região amazônica, possuíam as laterais abertas para possibilitar o arejamento. O nome desses barcos viera do hábito de os passageiros amarrarem redes uma por cima das outras semelhando uma gaiola. Os vaticanos eram gaiolas de maior porte que lembravam aos seringueiros, pelo porte, a residência papal e daí receberem essa denominação. Ao gaiola que possuía fundo chato, dava-se o nome de “chata” ou “chatinha” quando possuía menor porte. O autor observa que os porões, onde viajavam os passageiros de terceira classe, cheiravam mal e ostentavam “uma promiscuidade aterradora [...]” (O seringal e o seringueiro,  p. 198-99).

[2] “Brabo” era a alcunha que recebia o nordestino inexperiente na operação de coleta do látex e desconhecedor das particularidades do meio em que era recém-chegado. Quando, enfim, dominava as técnicas do trabalho e adquiria independência para se movimentar no meio, reconhecendo-lhe os perigos e os segredos, o nordestino passava a receber a alcunha de “manso” e já podia ser considerado seringueiro.

[3] Manoel José de MIRANDA NETO, O dilema da Amazônia,  p. 45-6.