POR LUCILENE GOMES LIMA

O tempo pretérito, contudo, como indicador de uma ação decorrida, deve ser tomado com cautela no plano ficcional. Nunes alerta, baseado em argumentos de Kate Hamburger e Harald Weinrich, que “[...] na ficção criamos personagens, Eus fictícios originais, que se movem num plano de existência estética, relativamente ao qual as enunciações perdem o alcance factual de registros da experiência [...].[241] Desse modo, a ficção não se guia pela mesma lógica da gramática, que é a lógica do mundo real. O uso do tempo pretérito não indicaria uma ação passada, mas uma ação contada: “[...] O pretérito assinala que há narrativa e não o fato de que esta se realiza para trás no tempo que passou.”[242] Como exemplo de que não se narra necessariamente aquilo que já ocorreu estão as obras de ficção científica que também empregam o tempo pretérito e, por outro lado, situações ficcionais em que, mesmo utilizando o pretérito, indica-se que uma ação está se processando.

O narrador narra um tempo passado, atualizando-o no ato da enunciação. Não fala de um passado de forma distanciada, mas se põe em seu momento mesmo. A segunda pessoa do plural inclui narrador e leitor: “[...] Nós retornávamos à elaboração do nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz [...].”[243] Trata-se de uma situação mais complexa do que o recurso da retrospecção por meio da analepse em que o recuo narrativo “[...] é feito numa exposição separada, interrompendo a ação principal, que volta ao seu curso quando aquela termina [...]”.[244] O narrador aproveita-se do tempo lingüístico em que dialoga com o leitor a partir de um agora para dar ao passado um caráter de ubiqüidade; fazê-lo acontecer como presente ficcional.

A personagem é uma categoria narrativa que tem particular importância em O amante das amazonas e por isso não podemos deixar de considerar a concepção que Rogel Samuel expressa sobre ela em seu texto teórico Crítica da escrita: “[...] o próprio da natureza narrativa não é a ação (há romances sem ‘ação’, ou de ação reduzida [...] o próprio da natureza narrativa não é a ação, mas o personagem como nome (o ‘pai’, a ‘Capitu’, o ‘Peri’, a ‘Ceci’) como material sêmico desta moldura catalogável de rótulos, deste fichário do dito sobre o personagem”.[245] Na própria seleção dos capítulos do romance, estampa-se a proeminência que têm as personagens, uma vez que dos 23 capítulos que compõem o romance, 6 levam como título nomes de personagens (Paxiúba, Ferreira, Júlia, Frei Lothar, Ribamar, Benito). Ademais, os capítulos “O leque” e “Rua das Flores” podem ser considerados como enunciadores de personagens, pois detêm-se quase que exclusivamente nelas e não numa ação.

A menção feita por Samuel à personagem como material sêmico remete a terminologia proposta por A. J. Greimas em seu livro Semantique Structurale (1965),[246] que está  calcada na concepção semiológica, significativa de um rompimento com a noção de personagem como imitação do ser humano, concebendo-a como signo.[247] Samuel destaca que o texto ficcional é constituído de logros e que o seu logro fundamental é ocultar sua própria condição fictícia. Jogando com uma forma de exposição da personagem oposta a dessa ocultação, o narrador de O amante das amazonas revela o seu caráter ilusório: “Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, veja-o que ele é de papel, literário [...].”[248]