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NEUZA MACHADO
 

SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

 

 

 

 

 

NMACHADO

 

© Neuza Machado, 2008

 

Todos os direitos reservados e protegidos por lei.

Proibida a duplicação e reprodução deste volume ou parte dele,

sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da autora e/ou herdeiros diretos.

 

ISBN  978-85-904306-5-0

 

Editor(a)

NEUZA MACHADO

 

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NEUZA MACHADO

 

Revisão

NEUZA MACHADO

 

 

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

 

SNEL – SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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Machado, Neuza, 1946

 M129f                  O Fogo da Labareda da Serpente.: sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel. Neuza Machado.     1. ed. – Rio de Janeiro: N. Machado, 2008. 105p.

 

ISBN 978-85-904306-5-0

 

    1. Rogel Samuel, 1943 – O Amante das Amazonas.

    2. Samuel, Rogel, 1943 – Crítica e Interpretação.

    I. Título.

                                                                                          

08-2187.                                                                             CDD: 869.93

                                                                                              CDU: 821.134.3 (81) - 3

 

02.06.08                                    03.06.08                                                                                                                                              006934

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PREFIXO EDITORIAL No 904306 – AGÊNCIA BRASILEIRA DO ISBN

 

NEUZA MACHADO

 

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Impresso no Brasil

Printed in Brazil


 

 

M

anifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade, humanidade esta quase sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense), e, acima de sua aparência exterior, a matéria épica se faz presente no relato ficcional, realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.

Se me encontro aqui como apreciadora de obra ficcional da pós-modernidade, envolta em minhas próprias teorizações analítico-fenomenológicas sobre um assunto no qual eu mesma me alterco constantemente, confirmo que em O Amante das Amazonas há um altíssimo grau de entropia no sistema de narração (ausência da ordem narrativa à moda tradicional). Para explicitar o seu personagem mítico-ficcional Paxiúba, o criador pós-modernista de Segunda Geração se vale dos enclaves narrativos, tão do gosto dos escritores pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração. Entretanto, enquanto autor-criador de um novo direcionamento estético-ficcional, mais de acordo com a vivência do homem do século XXI, objetivou abandonar o estereótipo (lugar comum) do personagem reificado (inacreditável, fantasioso) da primeira fase, procurando descortiná-lo por meio de um olhar diferenciado (o ser mítico a se transformar em humano), circunscrito a insólitos acontecimentos dinamizados. (Preciso esclarecer que os escritores do final do século XX, dos anos 80 para cá, perceberam as qualidades intrínsecas das regras sócio-culturais do século XXI, e, por sua vez, como participante ativo daquele momento, o narrador rogeliano enxergou criativamente a mudança que já se avizinhava).

 

A entropia narrativa, no século XX, surgiu das pioneiras modalidades sócio-culturais capitalistas, intermediárias de uma novíssima ciência, baseada em um conjunto de métodos científicos, de novas modalidades existenciais que visavam resolver os problemas do homem pós-moderno. Fundamentado-se em normas predominantemente científicas e em transmissões de notícias generalizadas oferecidas pelos meios de comunicação em evidência naquele momento (rádio, televisão e cinema), as mensagens saíam de uma realidade cotidiana, poderosa, mas que já chegavam descaracterizadas aos destinatários, propiciando espetáculos insólitos. Assim, a técnica discursiva da propaganda impôs suas diretrizes no universo ficcional da pós-modernidade, naquela Primeira Geração de escritores ficcionistas, obrigando-os a “criar” seus textos ─ sintagmáticos ou paradigmáticos ─ pelo ponto de vista de uma realidade liquidificada, reduzida a diversas cópias (ou colcha-de-retalhos, ou patchwork quilt) de conceitos vitais diversificados e entrelaçados, conceitos esses vistos pelos críticos da literatura do final do século XX como simulacros de uma realidade há muito despojada de suas características fundamentais.

No entanto, mesmo existindo entropia narrativa em O Amante das Amazonas, ou seja, os enclaves se entrelaçando e se justapondo ao longo dos parágrafos, não há trechos inacabados e indefinidos, como vários críticos observaram em algumas narrativas ficcionais de alguns escritores da Primeira Geração Pós-Moderna/Pós-Modernista. Nas duas dimensões ficcionais sintagmáticas do Manixi ─ histórica e mítica ─, além da linguagem da comunicação visual, comumente sempre detectada nas narrativas do pós-modernismo da primeira fase, há, no decorrer narrativo, uma razão diferenciada que busca um final compensador, equilibrado, ou seja, ressalta-se a provocação subjetiva, verticalizante, do narrador intelectual que conhece bem o que sabe e o que faz, e, como tal, já vigorando no especialíssimo terceiro cogito da consciência individualizante.

O bugre Paxiúba, que chega dizendo “Bons dias” à lavadeira Zilda (nesta segunda etapa da narrativa), não é um simples personagem reificado. Ele possui um nome que o dignifica. Em seus domínios míticos, ele é Pati’ ïwa que, em tupi, significa “palmeira dos igapós”, uma planta palmácea, das regiões amazonenses alagadas pela chuva (igapós), que mede cerca de dez a quinze metros de altura. A dimensão ficcional do Manixi (o Palácio e as terras que o cercam) pertence à matéria mítica. O bugre Paxiúba traduz a heroicidade dos lendários habitantes de um lugar de pura maravilha (e a palavra maravilha aqui não possui sentido telúrico). Aquele índio mestiço ─ filho de uma índia caxinauá e de um negro barbadiano ─ jamais poderá ser conceituado como um personagem sem nome, o que caracterizou as narrativas do Primeiro Momento Pós-Moderno/Pós-Modernista.  Paxiúba não poderá ser avaliado como um personagem menor, sem qualidade literária, a se debater no Caos das chamadas narrativas insólitas, porque sua grandeza mítica se solidifica até ao final narrativo, mesmo quando o núcleo ficcional  se traslada para a Cidade de Manaus.

No máximo, se me predisponho a avaliá-lo somente pelo ponto de vista das regras estruturais da ficção (analise cientificista), uma vez que o próprio narrador concedeu-me esta incursão teórico-crítica, ao revelá-lo como “espetáculo bom de ver, mas literário”, ou seja, índio-bugre “enorme tetrápode”, aventuro-me a dizer que o caboclo Paxiúba se presentificou, na ficção rogeliana, por meio da narração simbólica, passada de geração a geração, como demonstrativo do valor das origens do homem amazonense. Assim, aqui, por intermédio da palavra do escritor, nomeando-o como “literário”, apresenta-se uma diferenciada força da matéria mítico-ficcional. Todos os adjetivos qualificativos, utilizados pelo ficcionista, impelem o leitor a concebê-lo como um ser extraordinário. E o extraordinário jamais significará a realidade vital sedimentada no racionalismo cientificista. A perfeição mítica, dos primeiros segmentos narrativos, o coloca em uma posição privilegiada: Paxiúba, o “poderosamente selvagem”, possui uma “musculatura nobre de dar inveja às secularmente conceituadas estátuas do Louvre, pois possui a cabeça erguida sobre o pescoço grosso, sólido, de muito, e guerreira, assassina, arisca subjetividade”. E quem confirma a grandeza de Paxiúba, sabe o por quê de tal afirmação. As estátuas do Museu do Louvre foram, muitas vezes, analisadas, ou mesmo interpretadas pelo escritor, um homem que nunca se recusou às aventuras das viagens internacionais, um conhecedor inconteste das reverenciadas obras dos grandes artistas de todos os tempos, obras estas destacadas nas famosas paredes e galerias do Museu francês.

 “A água doce é a verdadeira água mítica”[i], assim afirmou Gaston Bachelard. Paxiúba “se introduz na história e então fala” porque, para criar o espaço tridimensional do Manixi sócio-mítico-ficcional , patrocinado pelo elemento água (garantindo-lhe perenidade), e para, posteriormente, lançá-lo no imaginário-em-aberto do leitor reflexivo, o narrador pós-modernista de Segunda Geração percebeu a necessidade de uma outra renovada e poderosa chave, para abrir-lhe a porta da dimensão mítica, sobrenatural, de uma terra desconhecida. Na primeira etapa da narrativa rogeliana, a chave resguardada pelos “parentes” possibilitou ao narrador-personagem Ribamar de Sousa a interação com os aspectos históricos visíveis daquela realidade diferenciada. O tio Genaro e o irmão Antônio, possuidores da primeira chave, conheciam somente as duas margens conceituais do Igarapé do Inferno e umas poucas trilhas terrestres do Manixi. Não eram natos do lugar, portanto, não poderiam propiciar ao narrador do século XX um incomum reconhecimento das peculiaridades mítico-ficcionais, ainda não nomeadas, daquele fabuloso espaço sócio-substancial. Por conseguinte, urgia encontrar uma solução que o levasse a interagir com as aquáticas sinuosidades desconhecidas da narrativa, ou seja, intuir uma singular chave transcendental. E eis que Paxiúba se introduz na história, diferenciado dos “parentes”, revelando o poder de fala dos antigos narradores de tempos heróicos.

“A voz como era?”, indaga o primeiro narrador, maravilhado com a sua nova direção ficcional. Paxiúba, o bruto, possui o poder da voz que representa o herói mítico. Assim, como uma divindade semi-humana, possui voz tonitruante. Somente os heróis mitificados possuem voz poderosa. Este “herói” é o possuidor da chave simbólica que fará o primeiro narrador, agora também mitificado, a percorrer com o próprio olhar diferenciado, a mão dinamizada e o imaginário fantasticamente iluminado, os limites mágicos do Manixi. “Ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho, mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar”, revela o primeiro narrador. As lembranças fazem parte da memória, e na memória se concentra o poder mítico. A memória mítica só resguarda tempos heróicos e seres extra-reais, mesmo assim, não se pode duvidar de sua verdade. A verdade mítica será sempre renovada, revestida por novas roupagens. Neste intervalo narrativo-ficcional, o narrador terá de passar pela iniciação do conhecimento primordial e sobrenatural. Páginas adiante, o segundo e verdadeiro narrador entrará ficcionalmente e vitoriosamente no “quarto escuro” do repouso fervilhante, para de lá sair renovado. Neste segundo momento ficcional, Paxiúba é o representante da chave mítica (chave mágica). A terceira chave, transcendental (oriunda do plano da consciência dinamizada), aquela que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor Pós-Moderno/Pós-Modernista de Segunda Geração, desde o início da narrativa, só será percebida e interpretada pelos leitores-eleitos “incomodados” quando o segundo narrador se predispuser a aparecer no fluxo interativo do recontar renovado.

No entanto, este narrador da pós-modernidade, narrador do escritor do final do século XX e princípio do século XXI, querendo ou não, pois se vê envolvido pelas diferenciadas normas ficcionais de seu momento social, terá de se valer da técnica do olhar simulador para apresentar o Manixi, o espaço sócio-ficcional de sua narrativa. Assim, o Palácio do Manixi e as terras que o rodeiam terão de aparecer em toda a sua grandiosidade e imponência, à moda dos simulacros televisivos e cinematográficos que imperaram (imperam) em sua atualidade. Por enquanto, a saída digna, irrepreensível, para que, posteriormente, o verdadeiro narrador possa desmistificar a sua própria realidade vital e a sua outra diferenciada realidade sócio-ficcional, é buscar nos domínios do mito uma diretriz qualificada que apresente, aos leitores do momento e aos leitores do futuro, a suntuosidade exigida pelo hodierno momento histórico das grandezas simuladas. O arcabouço mítico será sempre uma dimensão que em todo tempo satisfará tais requisitos. Paxiúba é o guardião da chave. O narrador terá de elevá-lo à categoria de herói mítico-ficcional. No entanto, como semi-humano, o seu aparecer glorioso, ao longo da segunda etapa da narrativa, não representará um simulacro. A verdade da ficção-arte do Pós-Moderno/Pós-Modernismo de Segunda Geração ultrapassa os limites da simulação do fingir depreciativo (simulacro), para, em seguida, alcançar a glória do fingir da literatura-arte (recriar). E convenhamos: são poucos os escritores eleitos para tal missão, neste tempo presente de incomuns calamidades.

“Mas o olho burro tudo vê, e registra (...)”. O teórico da literatura de orientação fenomenológica, neste início de século e de milênio, não poderá desprestigiar as expressões ficcionais que o “incomodam”.



[i] BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 1. ed. de 1989. São Paulo: Martins Fontes, 1998: 158.