0

O Manixi, o que me acena provocativamente, não é o Manixi real dos manuais geográficos da região amazonense. Encontro-me, aqui, acanhada pelo mítico-ficcional Seringal Manixi e por seu Palácio magnificente, “supremo, inominável, majestoso”[xxxv]; inclusive, por seu dono extraordinário, cuja alcunha reputada é Pierre Bataillon, “um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá”[xxxvi]; além de deparar-me enlaçada nas inúmeras questões pós-modernas deste diferenciado romance. Entretanto, para deslindá-lo reflexivamente, com convicção teórico-interpretativa, buscando o plano do silêncio fenomenológico à moda dos atuais pensamentos interativos, ou do filósofo francês Gaston Bachelard, ou pela poderosa lente genealógica de Michel Foucault, não me furtarei a um cotejamento com a realidade histórico-geográfica do Amazonas, confrontando-a com o sistema mítico-social da ficção rogeliana, em benefício de esclarecimentos interpretativos. Por conseguinte, buscarei, no texto ficcional pós-moderno, as informações proveitosas ao meu interativo e reflexivo pensamento dialetizado.

 

O Manixi da narrativa rogeliana poderá ser visto pelo mesmo prisma que revelou aos leitores universais o Sertão ficcional de Guimarães Rosa. Assim como o Sertão roseano, oriundo do sertão de Minas Gerais, que “está em todo lugar”, como diz Riobaldo (o personagem-narrador de Guimarães Rosa), do mesmo modo percebo o Manixi ficcional rogeliano. Assim como o Sertão de Guimarães Rosa foi visto, por mim, em meu livro, Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do cogito(1) ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada a partir da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o espaço ficcional do Manixi será aqui interpretado. A narrativa revelou-me - e revelará aos futuros leitores rogelianos - as íntimas lembranças (memória) e recordações (matéria poética) do narrador amazonense, sobre a sua “casa primordial” inesquecível. Os sentidos vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos, gustativos), provindos da infância e adolescência, vividos ali, permaneceram/permanecem intensos e persistentes em suas lembranças poetizadas, mesmo que ele esteja hoje distanciado geograficamente de seu lugar de nascimento, e são percebidos liricamente (matéria lírica interferindo no relato ficcional) ao longo da narrativa. Quem se lembra (recorda ficcionalmente) do Igarapé do Inferno (por que “do Inferno”?) e de toda aquela paisagem dantesca é o segundo narrador, originário do entrópico século XX. O personagem-narrador Ribamar de Sousa apenas se coloca como o porta-voz de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara ficcional do criador singular atavicamente preso às lembranças e recordações do passado, fossem boas ou más).

(Imagem: gravura de Heloisa Pires Ferreira)