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Entretanto, para o prosseguimento de minha reflexão sobre o ativo exercício de escrita ficcional do primeiro narrador, logo depois da morte dos “parentes” e da ascensão narrativa ao plano mítico, plano este reservado para a inserção do “lendário e eterno”[xxxi] Paxiúba, continuo a exigir aqui o auxílio filosófico de Gaston Bachelard.

 

“O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária”. O primeiro narrador, submetido ao segundo, despertou, primeiramente, por intermédio de uma consciência ativada, extraordinariamente impressionada com a descoberta ficcional do plano mítico amazonense, constituído a partir da insígnia do bugre Paxiúba. Se ele, enquanto um sobrevivente do ataque dos Numas, ataque este que ocasionou o incêndio da floresta, e, por conseqüência, a morte dos “parentes”, levado pela correnteza do “igarapé de treva fria e rápida”, não se lembra de como se salvou, em contrapartida, tem a certeza de que “uma correnteza negra [o abraçou, o envolveu, o levou]. Ele também tem o conhecimento de que [bateu] “em paus e pedras”, mas que [prosseguiu], “noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento de [seu] sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre as sombras, segredos e lágrimas”, sentindo tudo a se dissolver ... Sim”.

 

Bachelard diz: “O indivíduo não é a soma de suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares. Assim se criam em nós os mistérios familiares, que se designam em raros símbolos”. O narrador de O Amante das Amazonas (o primeiro, o segundo, o terceiro; quantos forem) concentra em si as impressões vivenciais, singulares, do criador ficcional pós-moderno. Os “mistérios familiares”, cerceadores, realçados na filosofia bachelardiana, acenam as suas presenças incomodantes nesta ficção extraordinária (extraordinária aqui não possui sentido encomiástico; o meu propósito para exibi-la é interpretativo-reflexivo). Assim, os raros símbolos (os símbolos importantes que povoaram/povoam/povoarão o amplo imaginário-em-aberto do segundo narrador), restritos a esses mistérios familiares convertem-se em arcabouço heróico, porque as “verdades” da mitologia indígena brasileira, “verdades” oriundas dos conceitos vivenciais exemplares, adquiridos desde a infância e adolescência, sempre fizeram parte da vida do criador ficcional da pós-modernidade brasileira. E permanecerão ativadas, enquanto vigorar o seu itinerário existencial como cidadão do mundo.