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O coronel

LUCILENE GOMES LIMA



Associam-se nas ficções da borracha o caráter perverso do seringalista e a sua ignorância a ponto de ser ele um tipo alienado do que ocorre no mundo, como o coronel Cipriano, do romance Coronel de barranco, que não acredita na possibilidade de haver concorrência da produção de borracha asiática com a amazônica até sofrer as conseqüências desastrosas da baixa de preço. Cipriano encarna a figura de um bronco enriquecido que, apesar de receber mercadorias finas nos aviamentos, desconhece a procedência e o valor delas. Desconhece também o contexto histórico local e mundial de sua época, julgando tolice se interessar por qualquer coisa que não seja produzir borracha em seu seringal. Menos caricata é a figura do seringalista de A selva, mas talhada pelo mesmo estigma de homem rude, conforme fica aduzido nessa passagem do romance em que ele manifesta inveja do guarda-livros por este possuir modos diferentes do seu, expressivos de polidez e educação:

Apenas aos sábados o jantar e as noitadas se animavam, mercê da presença de Binda, Caetano e Balbino. Corpos modelados no mesmo barro, veias dando curso ao mesmo sangue, Juca Tristão compreendia-os totalmente. Imperava sorridoso, e deixava-se adular. Podia beber em liberdade, dizer o que lhe aprouvesse, ser completamente ele, sem sentir a enervante noção duma vaga inferioridade, como lhe sucedia quando estava ao lado de Guerreiro. Passara a irritar-se, intimamente, com as falas mansas do guarda-livros e sua cortesia bondosa, pelo respeito que inoculavam. Sentira, pouco depois de voltar, que a simpatia dos seringueiros ia mais para o guarda-livros do que para ele; e essa verificação despeitava-o e exalava vastas suspeições. Quem sabia lá o que Guerreiro lhes havia insinuado! Também a ele seria fácil mostrar-se generoso e simpático, se administrasse fazenda alheia. De tudo quanto fosse mau se sacudia a chuva e só o bom se chamava a si; tratava-se com modos doces uns safados que não trabalhavam, vendia-se mais do que se devia vender, não se castigava o preguiçoso e desculpava-se o que não tinha desculpa nenhuma, porque quem perdia e quem pagava era o patrão, era o tolo, que já tinha idade para ter juízo! (24).

Esse trecho também é ilustrativo de que o seringalista justifica sua rudeza de caráter como algo inevitável no papel patronal que exerce. A mesma justificativa é dada em Regime das águas pela personagem de um fiscal de barracão: “[...] A lei, na selva, não podia ser outra que não aquela ditada pelo patrão. Só ele, a partir de seus propósitos e interesses sabia o que estava certo ou errado [...]”. (25).

Em virtude do constante decalque no perfil mau, grosseiro e injusto do seringalista, desponta nas ficções da borracha uma galeria de nomes que se tornam sempre destacados tão logo se enunciam os enredos: “Manuel Lobo”, de Terra de ninguém; Juca Tristão”, de A selva; “Jacinto Gazela, de No circo sem teto da Amazônia; “Cipriano”, de Coronel de barranco, Macário Gomes, de Dos ditos passados nos acercados do Cassianã, entre outros. Os nomes dos seringais, considerados feudos desses “coronéis” da borracha compõem uma curiosa toponímia para os conflitos que ali se dão: “Remanso”, “Paraíso”, “Vida Nova”, “Fé em Deus”.




Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: [email protected]


24) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A Selva, p. 272.
25) Francisco VASCONCELOS, Regime das águas, p. 28.